Windhoek – Este tema, da acumulação primitiva do Capital, vem a propósito na sequência do discurso do Presidente de Angola, Eng.º José Eduardo dos Santos(JES), alusivo às celebrações do 40º Aniversário da Independência de Angola, que teve lugar no dia 11 de Novembro de 2015, em Luanda, com a presença de estadistas e dignatários nacionais e estrangeiros.

Fonte: Club-k.net
Neste discurso, feito a margem do acto central, na véspera do dia da independência, oPresidente foi bastante acutilante e tocou em vários aspectos, em que ele enalteceu a resistência do povo angolano contra a colonização portuguesa, destacou a luta de libertação nacional e realçou as divergências profundas entre os três Movimentos de Libertação de Angola, nomeadamente, FNLA, MPLA e UNITA.

Este pronunciamento traz consigo muitos aspectos positivos que devem ser bem encarrados e analisados com cabeça fria e realista. Por outro lado, este discurso irá servir de matéria de pesquisa e de estudo para compreender melhor o pensamento politico deste estadista que exerce o poder em Angola durante 38anos consecutivos.

Convém ter em conta o facto de que, o JES foi formado na Rússia, num País Marxista-leninista, que chefiou o Bloco do Leste durante a Guerra-fria. O JES não só estudou o Marxismo-leninismo-estalinismo, mas fundou o Estado monopartidário em Angola, assente no Socialismo científico, no internacionalismo proletário, no anti-capitalismo e no pro-ateísmo.

Pela força das circunstâncias, resultante da pressão militar, politica e diplomática, exercida pela UNITA, como Opositor principal daquela época, Angola vinha adoptaro multipartidarismo e a economia do mercado, sob o sistema capitalista. Ele próprio, o JES, num dos seus pronunciamentos afirmava que, a democracia tivera sido imposta.

Na teoria, isso tem sustentado a tese de que, o MPLA ainda defendesse os princípios fundamentais do socialismo, consubstanciados na defesa dos trabalhadores, das camadas mais desfavorecidas, da classe média, da distribuição justa da riqueza, da promoção do estado social e do empoderamento sustentável dos cidadãos angolanos, sem qualquer discriminação social, étnica, racial, sexo, cultural, politica ou religiosa.

Pois, os partidos da esquerda e do centro-esquerda apoiam-se na política de promover uma classe média vasta e estável, com vista a reduzir gradual e drasticamente os estratos sociais pobres e desfavorecidos, Por isso, a preocupação de um Estado Social, democráticoe de direito não consiste em promover os capitalistas e os grupos económicos financeiros, mas sim, de reduzirsubstancialmente a hegemonia e o monopólio do imperialismo financeiro, das multinacionais, que dominam o mercado internacional através das instituições financeiras, das indústrias pesadas e das tecnologias de ponta, em todos domínios.

É uma utopia pensar que Angola esteja a altura de competir no mercado internacional com as multinacionais ocidentais e asiáticas, com níveis elevados de tecnologias, do sistema financeiro e da organização administrativa do Estado.

Nós somos um Estado que ainda não é capaz de fornecer energia e água potável à Cidade Capital de Luanda, sem falar do País. Chegando ao ponto de o próprio Governador de Luanda (Bento Bento) não poder manter água corrente e luz eléctrica em sua própria casa, na Maianga, perto da Sede da CASA-CE. Tem sido sempre visto uma cisterna a abastecer água na sua residência, com um grande gerador no quintal. Por isso, o JES não foi feliz ao levantar esta tese da acumulação primitiva do capital para promover os capitalistas como forma de garantir a independência de Angola.

Por outro lado, esta tese confirma o estado real do MPLA, que de facto,se transformou num partido da grande burguesia, com monopólio absolutodos meios de produção, aliando-se aos interesses das multinacionais ocidentais e asiáticas, no exercício da exploração da força do trabalho angolana, sem este último ter acesso fácil ao mercado nacional e ao mercado global. A Lei Geral do Trabalho, aprovadaeste ano no Parlamento Angolano, revela nitidamente este fenómeno, da subjugação e exploração extrema e impiedosa dos trabalhadores angolanos, diante as empresas que operam neste País.

Qual é, afinal, o significado real da acumulação primitiva do capital?

Em termos simples e práticos, a acumulação primitiva do capital é um processo segundo o qual, os governantes fazem uso dos seus estatutospolíticos para servir-se asi próprios, apoderando-se dos fundos públicos e do património do Estado para a promoção dos negócios privados. Tirando a vantagem de ser gestorespúblicos para tomar liberdade de estabelecer o monopólio do mercado, afastando e bloqueando os outros, e impondo as regras arbitrárias a favor dos interesses da sua classe.

Neste contexto, a acumulação primitiva do capital permite os governantes e gestores públicos puxar os investimentos estrangeiros para as suas empresas. Na execução do OGE os governantes estabelecem obstáculos e criam o monopólio na adjudicação dos projectos e das obras a favor das suas empresas. O processo da acumulação primitiva do capital passa pela sobrefacturação excessiva das obras executadas, no quadro do Orçamento Geral do Estado; que resulta-se na má-qualidade de obras, que se vê por toda parte do País.

São criadas, para este efeito, as empresas fantasmas para desviar as receitas provenientes de sectores públicos, como da indústria petrolífera. O sector diamantífero, dominado pelos militares de altas patentes, faz parte do sistema da acumulaçãoprimitiva do capital, em que as receitas deste importante sector da economia do país não são encaminhadas ao Cofre do Estado.

A ocupação das terras comunitárias e familiares pela classe dominante no poder é o cerne da teoria da acumulação primitiva do capital, sob o princípio segundo o qual, “a terra é a propriedade originária do Estado.”Neste caso, o Estado refere-se à classe dominante no poder.

A partidarização e a personalização das instituições públicas, incluindo os órgãos de soberania e os aparelhos do Estado, constituem mecanismos eficazespara proteger e salvaguardar o processo da acumulação primitiva do capital, sem que haja quaisquer entraves ou medidas legais de controlo e de fiscalização da gestão do erário público.

Os desvios e atrasos deliberados de salários e de pensões de reformas dos ex-militares e dos antigos combatentes e veteranos da pátria constituem espaços favoráveis da acumulação primitiva do capital. As Bolsas de estudos externos e internos, de Jovens angolanos, são constantemente desviadas ou atrasadas pelas autoridades competentes, como forma de acumulação primitiva de capital.

A exploração da mão-de-obra barata pelas empresas nacionais e estrangeiras é a forma mais gritante da acumulação primitiva do capital; a falta de contractos de trabalho; falta de seguros de trabalho;os despendimentos arbitrários e anárquicos; e ausência do salário mínimo justo, garantido por lei, sãoigualmenteformas mais flagrantes da acumulação primitiva do capital.

A acumulação primitiva do capital em Angola oferece vantagens enormes aos estrangeiros em detrimento dos nacionais. Em busca de acumulação primitiva do capital para “criar empresas e grupos económicos angolanos conscientes e fortes,”estabeleceu um sistema de monopólio que restringe o acesso aos investimentos e ao mercado interno e externo. Os grandes negócios e projectos existentes no mercado angolano são da família do JES e do círculo interno do seu poder. Em vez de abrir o mercado angolano para que os cidadãos possam competir-se livremente, criou-se os mecanismos artificiais de bloqueio.

A questão mais complexa da acumulação primitiva do capital, que contraria a tese do JES, é de que, ela não enriquece nem fortalece o Cofre do Estado; pelo contrário,é o alvo constante de desfalque e de desvios. A crise artificial que se verifica hoje no país é o produto da acumulação primitiva do capital.Se o País estivesse mesmo na crise, como que deu-se ao luxo de gastar centenas de milhões de dólares norte-americanos para as celebrações dos 40 anos daindependência? Não teria sido a altura de submeter-se ao regime de austeridade?

A acumulação primitiva do capital penetra e actua sobre as artérias principais das estruturas económicas do País, como por exemplo, do sector petrolífero. A SONANGOL (empresa pública dos combustíveis) está praticamente falida, composta por diversas empresas privadas dos próprios governantes, que sugam todas as receitas provenientes da indústria petrolífera, que são desencaminhadas para as contas privadas. Na realidade, o que fica reservado para a Conta do Estado é uma fatia insignificante.

A PUMANGOL, um gigante privado, um consórcio dos governantes, dominada pela Casa Militar, é uma empresa paralela à SONANGOL, que controla a maior percentagem dos combustíveis e seus derivados, estabelecendo uma espécie de monopólio no mercado de vendas, no contexto da acumulação primitiva do capital. Por várias vezes, constata-se carências de combustíveis nas bombas da SONANGOL. O que não acontece com a PUMANGOL.

As Telecomunicações e a Televisão são sectores estratégicos da acumulação primitiva do capital. A Unitel (empresa da Isabel dos Santos), por exemplo, gera receitas formidáveis que resultam da prática de preços exorbitantes, uma exploração primitiva de enriquecimento ilícito e injusto. A Unitel está-se a transformar num monopólio gigantesco, afastando gradualmente a Movícel, uma empresa pública. Há muitos angolanos que pretendem entrar neste sector importante, como operadores, a fim de transformá-lo mais competitivo, mais rentável, mais eficiente e mais barato. Porém, as portas estão bem cerradas, bem trancadase bem cardeadas.

A TV-Zimbo, a TPA-2 e a TPA-Internacionalsão espaços privilegiados da acumulação primitiva do capital, em que o capital público, investido nestas Agencias, é transformado em propriedade privada, da Cidade Alta. O Dr. William Tonet, por exemplo, tem projectos viáveis para entrar neste sector da Radio e da Televisão, com fim de estabelecer a concorrência leal, a competitividade e a diversidade da informação.

Mas, ele está bloqueado. Então, onde estará a virtude da promoção dos grupos económicos angolanos conscientes e fortes para competir nos mercados globais, e garantir a independência de Angola? Será que o William Tonet não é filho nato de Angola, não é consciente da angolanidade e não é capaz de competir neste mercado de informação?

A acumulação primitiva do capital tem o maior peso e incidência no sector bancário, na qual o branqueamento de capitais é um fenómeno assente. O exemplo mais concreto foi a novela do Banco Espirito Santos Angola (BESA), cujo capital foi dividido entre os dirigentes do Bureau Politico do MPLA e dos familiares do JES. O surgimento espontâneo e espectacular do Banco BIC (da Isabel dos Santos) expandiu rapidamente para todos cantos do País e no estrangeiro; financiado porBanco Nacional de Angola, a título de empréstimo. Porém, este Banco, até a data, não cumpriu com os seus compromissos. Ou seja, o Banco BIC constitui um gasoduto (pipeline) para desviar os fundos públicos, no contexto da acumulação primitiva do capital, defendida por JES.

O Fundo Soberano, presidido pelo Filomeno dos Santos, filho do JES, se enquadra igualmente neste esquema de transferência de capitais públicos para as contas privadas dos membros do poder e suas famílias. Pois, não se sabe, com certeza, o paradeiro dos capitais avultados depositados no Fundo Soberano, provenientes da indústria petrolífera.

A acumulação primitiva do capital tem igualmente maior incidência no sector comercial, em que foram criadas empresas comerciais públicas (Nosso Super,Poupa Lá, etc.) com cadeias de lojas, construídas e financiadas com o capital público. Logo, como primeiro passo, ficaram delapidadas e postas em falência; seguida de sua privatização, distribuídas entre os próprios governantes.
O mais flagrante, na acumulação primitiva do capital, é o facto de que,a maior parte de projectos e de obras financiados pela «Linha de Crédito da China»(calculado em cerca de 21 mil milhões de dólares norte americanos)estão sob a alçada da Dona Isabel dos Santos, com acesso restringido somente aos membros do círculo interno do poder.

Em Angola é difícil distinguir entre a propriedade do Estado e a propriedade privada. O sistema da acumulação primitiva do capital funciona na sombra do Estado, como forma de encobri-la e de viabilizar os desvios avultados do erário público. É nesta base que o Presidente José Eduardo dos Santos confunde a garantia da independência do país com a acumulação primitiva do capital.

As grandes corporações financeiras não são uma garantia ao um Estado. Pois, elas perseguem os seus interesses privados, que são os lucros. Não lhes interessam opatriotismo, desde que os seus investimentos geram lucros satisfatórios, nas condições e nas circunstâncias favoráveis.

Neste respeito, constatou-se nos Estados Unidos da Américae na Europa Ocidental a prática constante de «out-sourcing» de capitais (deslocação de industrias pesadas ao estrangeiro)para os mercados emergentes, como da China, onde os custos de produção são baixos, gerando lucros elevados. Causando, deste modo,taxas elevadas de desemprego nos Países de origem. Além, da fuga ao fisco através dos paraísos fiscais.

Portanto, as práticas deste género, deouto-sourcing e de paraísos fiscais, não podem ser consideradas comogarantia da independência de um País. Em Angola, por exemplo, os capitais adquiridos através da acumulação primitiva do capital uma boa partedeles estão sedeados e escondidos no estrangeiro ou nos paraísos fiscais, sem exercer qualquer impacto positivo sobre a economia nacional.

Convém destacar o facto de que, os grupos económicos multinacionais, de certo modo, estão na origem de desequilíbrios sociais e das assimetrias profundas que existem na maior parte dos países produtores de petróleo, sobretudo em Africa.Provocando conflitos e instabilidades sociais e políticas nessas regiões.

Nesta senda, a Nigéria é o exemplo evidente em que, as consequências da acumulação primitiva do capital pelas elites políticas, por via da indústria petrolífera, têm causadoas assimetrias regionais e as desigualdades sociais profundas, provocando conflitos políticos, militares, sociais, interétnicos e inter-religiosos – em grande escala.

Em Windhoek, alguém observou o seguinte: O PresidenteAngolano concedeu muito dinheiro ao estrangeiro. Agora, na fase da crise, por que os que tiveram acesso a esses«sacos azuis»não se preocuparam em trazer de volta este dinheiro e investi-lo na economia nacional, como gesto de boa-fé e de solidariedade? Tudo isso revela nitidamente que, a tese do JES não corresponde a verdade, é um subterfugio para apenas justificar as riquezas enormes que a sua família ostenta e a delapidação do Cofre do Estado Angolano.

Na base desta análise, a acumulação primitiva do capital estará em consonância com os princípios básicos de boa governação, da prestação de contas, da transparência da gestão pública, da igualdade de oportunidades, da probidade, e sobretudo, da distribuição justa da riqueza do País? Além disso, analisando bem os contornosda acumulação primitiva do capital existirá uma diferença substancial entre ela e a corrupção? Esta prática não viola os princípios fundamentais da Constituição da Republica de Angola e do Direito Internacional, que consagram a Boa Governação?

Em síntese, a acumulação primitiva do capital é caracterizada por desvios massivos dos recursos do Estado para a promoção indevida dos governantes, que se colocam como empresários, ou como grupos económicos, com fim de transformar-se em grandes capitalistas, em detrimento da maioria esmagadora dos angolanos.

Logo, a História contemporânea da Africa nos revela que, todo o capital realizado nos moldes da acumulação primitiva, no fim do consulado deste poder tem sido alvo de confisco, de repatriamento ou de congelamento pelas autoridades bancárias dos países onde este capital estiver sedeado ou escondido.