Lisboa - "Vivo no caos. Engarrafamento é a palavra mais usada. Luanda é uma selva que atrai tudo. É como o buraco negro do Universo: quem cai ali, já não sai; quem quer sair, não consegue", conta o romancista e Prémio Pessoa 1997, em entrevista à VISÃO. Leia ou releia

Fonte: VISÃO

Há três anos sem publicar um romance, Pepetela, Prémio Camões 1997, revela agora um livro demolidor. Se o Passado Não Tivesse Asas (D. Quixote, 384 págs., €18,90) fala de “cacimbados”, os marcados pela guerra civil, numa narrativa a dois tempos: em 1995, Himba, menina de 13 anos separada dos pais num ataque militar na estrada, descobre os perigos de Luanda, cidade-leoa; em 2012, Sofia gere um restaurante frequentado pela elite, filhos do regime e do petróleo, na megalópole descontrolada.


Há traumas, corrupções, e óbvias memórias do autor, do tempo em que foi guerrilheiro do MPLA ou responsável no Ministério da Educação. “Por muito que um escritor queira esconder-se, tem sempre um rabo de fora”, diz ele.


Há que ler, pois, com outros olhos a epígrafe, repetida por um personagem nas últimas páginas: “Não vou ser um escravo desta ditadura de ganância, que parece ser o nosso destino.” Há literatura grande a pulsar nestas páginas, e até um piscar de olhos a Kafka, “um dos meus autores preferidos”, garante Pepetela: “A fé numa divindade tinha sumido do seu cérebro. Simplesmente, como quem acorda de um sono tranquilo, transformado numa barata monstruosa.” E há, obviamente, política sob a forma de um retrato cru dos últimos 20 anos de Angola. Tudo isto está nesta conversa, com ironia q.b.

Neste romance, há crianças a lutarem por comida dentro de contentores do lixo. Os órfãos da guerra civil eram “a” história por contar?

Era algo chocante e muito comentado, ver tantas crianças a dormirem na rua, sobretudo na Marginal de Luanda, no chão, sem uma manta, sem nada. Assisti a essas situações, aconteceram durante muito tempo na Ilha [do Cabo] ou na Mutamba. Eu sabia o que faziam, que cheiravam gasolina… Como conta um personagem, havia famílias que simplesmente colocavam os filhos na rua. “Safa-te.” Eram famílias numerosas em que a criança mais velha, com 12 ou 13 anos, era expulsa. Era uma boca a menos para alimentar. Nunca consegui perceber essa atitude, são pessoas no limite. Depois, começaram a haver gestos de solidariedade de organizações, da sociedade civil, da igreja, que criaram condições para que as crianças não ficassem ali. Mas a rua foi uma imagem que sempre me ficou. E eu precisava de escrever sobre isso.

Ao descrever a fome, as violações, levantou-se da cadeira muitas vezes?

Eu escrevo de pé, não posso ficar muito tempo sentado por causa das dores nas costas. Mas, de vez em quando, parava de escrever e saía. Abandonava o livro, pura e simplesmente. Era-me difícil.

Essas crianças foram “efeitos colaterais” das guerras, ou uma realidade específica de Angola?

Isto ultrapassa as guerras. Mas é quase inevitável que aconteça numa guerra: vemos isso agora, na Europa, com os refugiados. Qualquer pessoa, minimamente sensível, não pode fechar os olhos. Tentei tratar o assunto, fazendo um contraste entre duas histórias. Tenho muito a tentação de brincar com o leitor, complicando a minha vida como escritor. Fi-lo, por exemplo, em Lueji, O Nascimento de um Império (1990): duas histórias separadas por 500 anos, em que se passava de uma para outra na mesma frase. Era uma maldade para o leitor. Desta vez, fiz muito menos maldades.

Falou, em entrevistas, na ironia como uma marca dos escritores angolanos. Aqui, teve pudor em usá-la?

Sim, essa história era demasiado dolorosa. Contive-me até nas cenas mais violentas, quando o “normal” seria acrescentar uma certa violência… Mas houve um pudor em relação às crianças, não em relação ao leitor. Este deve estar preparado para tudo.

Descreve Luanda como “leoa feroz”. O que mudou em 20 anos?

As mudanças são bruscas e rápidas, até na configuração da cidade: passa-se numa rua, e, no dia seguinte, já há algo diferente. Vivo no caos. Veja-se o trânsito sempre bloqueado: engarrafamento é a palavra mais usada. Luanda é uma selva que atrai tudo. É como o buraco negro do Universo: quem cai ali, já não sai; quem quer sair, não consegue. Uma capital com sete milhões de habitantes é um problema para o país porque quase todo o investimento é feito ali: o resto do país fica ao deus-dará, abandonado pelos poderes públicos e pelas pessoas. É raro um jovem com formação sair de Luanda.

O retrato das jovens elites, no livro, é demolidor: uma geração com oportunidades e cursos de Harvard que não produziu uma elite capaz...

É como a vejo, até de forma subconsciente. Muitos desses jovens vivem da família, não fazem nada de bom. Há exceções, claro. Mas os indícios dão a entender que esses jovens estudaram para herdar. Podiam começar a trabalhar com os pais, até porque são cursos que se adaptam perfeitamente à riqueza familiar – economia, gestão, relações públicas, recursos humanos, direito... Mas dizem: “Bem, acabei de estudar, agora vou ficar uns tempos à vontade. Mais tarde, quando o pai estiver fora de uso, então assumo as coisas.” Esperemos que, nessa altura, ainda se lembrem do que estudaram.

No restaurante gerido por Sofia, o grupo de filhos das altas figuras do regime pagam com “cartões de platina cujos nomes não correspondiam”. É uma geração a quem foi dado tudo...

Em alguns casos, talvez, não foi dada a educação em casa. Noutros, a própria facilidade com que obtiveram tudo leva-os a não dar valor às possibilidades que sempre tiveram. Isso acontece em todos os países, e não só em Angola: há jovens que são educados com todas as facilidades, e, depois, não são capazes de trabalhar de forma correta e até de terem atitudes normais.

Esta imagem é ainda mais excessiva e fútil do que aquela que se consolidou nos últimos tempos: os que vinham fazer compras às lojas luxuosas.

Os que vêm às compras na Avenida da Liberdade continuam a vir. Há gente que vem para ver o futebol, ou que vai a Espanha ver os jogos do Real Madrid, como escrevo no livro. É uma realidade. Assim como existe um termo só usado por essas elites: “Encomendar um filho.” O povo não diz isso. Esse termo deu-me uma das chispas que fez aparecer este romance. Aliás, o meu primeiro título era Os Encomendados.

Lê-se sobre jantaradas regadas a caríssimo whisky com 24 anos, festas com drogas e “bacanais em que estão todos vestidos de branco como se fosse um ritual”. Evoca um quadro da queda do império romano…

Enquanto a cidade arde, toda a gente ri e dança. É um retrato da realidade atual, mas espero que não cheguemos à queda de Roma [risos].

Salomé, mulher decidida, envolvida em projetos que, quando reunia com bancários, “estes começavam a suar e a ter comichões estranhas, quando ouviam o seu apelido”, é um retrato de Isabel dos Santos?

Não. Aliás, eu nunca retrato pessoas reais em nenhum livro.

Radamel, o arquiteto argentino idealista que ajuda a construir escolas para os órfãos em Angola, não é inspirado no maestro venezuelano Gustavo Dudamel, regente da Orquestra Sinfónica Símon Bolívar, constituída com meninos desfavorecidos?

Não sei quem é Dudamel. Essa é uma coincidência. Temos uma história parecida em Angola: a orquestra Kaposoka, constituída com meninos que vivem num musseque, muito pobres. Eu brinco com os nomes dos personagens: aqui, pensei em Radamel Falcao [jogador de futebol colombiano].

O personagem Diego tem nome inspirado em Maradona. É o seu gosto pelo futebol?

É. Embora eu ache que o Messi está a ultrapassar o Maradona [risos]...

A dada altura, narra aqui a promoção a ministro do pai de Patrício, cujo filho se torna CEO de empresas que desconhece: ia “ficar a ver redes sociais, enquanto uma série de estrangeiros com muitos títulos e fraca experiência iam gerindo as empresas, combinando contratos com o ministério do pai, sem concursos públicos nem concorrentes, por vezes desviando para as suas próprias contas as comissões dos negócios, outras pondo nos depósitos offshore do novel ministro ou de algum familiar muito próximo.” A corrupção é um eterno problema?

Porque há três: a pequena corrupção, a média corrupção e a grande corrupção. A pequena corrupção é a do pequeno agente, um professor que vende notas, a do polícia a quem se paga a “gasosa” para evitar a multa. Essa pequena corrupção existe em muitos serviços, e é muito difícil de combater: as pessoas acham normal pagar uma “gasosa”. Por exemplo, eu saí de Portugal para França quando tinha 20 anos, graças a uma licença militar obrigatória – comprei-a a um sargento. Paguei. Disse: “Eu preciso de uma licença militar.” Mostrei-lhe uma nota de 500 escudos. Ele disse: “Sim, mas demora uma semana.” Pus-lhe mais 500 escudos. Ele disse: “Bom, demora dois dias.” “Preciso para hoje,”, disse eu. E dei- -lhe mais uma nota. Ele disse: “Aguarde aí.” Foi lá dentro, fez o tenente assinar, e entregou a licença. Nesse dia, apanhei o comboio e fugi. Isto era o Portugal de Salazar. Tive de o fazer, senão seria preso.

A grande corrupção, também aqui evocada, é compatível com a democracia?

Complica-a muito. O exemplo mais recente é o do Brasil: um terço da Câmara dos Representantes está indiciado criminalmente. E, por isso, fazem algo aparentemente ilegal como o impeachment. Foi um espetáculo deprimente. É o soft golpe. Já aconteceu nas Honduras, no Paraguai, no Brasil. Vamos ver qual será o próximo país: Chile?

Para alguém que lutou pelas suas convicções no terreno, como militante do MPLA na luta armada, é frustrante ver estas novas guerras travadas com bancos e bolsas?

É triste. Quando combatíamos, tínhamos o sonho. Esse sonho caiu. Conseguimos a Independência, mas criar uma sociedade melhor, mais justa?… Melhorou um bocadinho: a sociedade do tempo colonial era pior, uma grande parte dos angolanos vivia em condições quase de escravidão. Agora falta o resto: maior igualdade de oportunidades para todos, etc... A nível mundial vê-se que os grandes magnatas ganharam. Não foi o capitalismo a ganhar, foi o capital especulativo. Nesse aspeto, o mundo andou para trás. Mesmo as democracias europeias estão, até certo ponto, em perigo: podem ser engolidas por meia dúzia de senhores que dominam tudo. Basta um maluco para haver uma guerra mundial. Já houve um que provocou guerras incríveis: Bush. Agora, temos aí o Trump, à espera.

O “dinheiro a jorros do petróleo”, como descreve aqui, sustentou as elites. A crise do petróleo e a prisão de Luaty Beirão e dos outros ativistas coincidiu, e preconizou-se que algo radical ia acontecer. Qual é o seu comentário?

Creio que não [vai acontecer]. Há um processo em curso, que não foi acelerado por causa disso. Já passou o tempo. Porque, no fundo, talvez o regime seja mais sólido do que se pensa, ou deseja: aguentou-se perfeitamente. É uma constatação. Vamos ver o que o futuro reserva, muita coisa pode acontecer. As pessoas têm muita dificuldade em compreender Angola, sobretudo aqueles que dizem que a conhecem muito bem. Estão fora há 40 anos e fazem análises, caem dos patins, espatifam-se no chão. Nós, só rimos. Porque Angola é um país extremamente complexo. Não temos todos os dados, ninguém tem, e há muita especulação constante nas redes sociais…

Crê, então, que a questão em torno de Luaty Beirão e dos outros presos foi empolada nos media?

Há situações verdadeiras e que foram denunciadas, lá, mas há também algum empolamento. Os assuntos, quando saem, e quando são muito batidos fora de Angola, provocam reações contrárias aos desejos dessas pessoas. Funciona sempre pela negativa. Nós, angolanos, somos assim. E esse é o problema, que as pessoas fora de Angola não compreendem. Quanto mais barulho se fizer em torno de um assunto, mais se radicalizam as posições.

Em janeiro, António Lobo Antunes evocou-o numa crónica, referindo que, durante a guerra colonial, ambos estiveram em Ninda, e que, um dia, o Pepetela lhe disse: “Ainda bem que não te matei.” Como foi essa história?

Não coincidimos aí no tempo, houve um ano de diferença. Nós íamos atacar o tal quartel de Ninda, mas o Lobo Antunes já não estava lá. Anos mais tarde, depois de ler Os Cus de Judas, livro que tem parte da ação em Ninda, interroguei- -me: “Este andou por ali?” Pedi ao seu então editor, Nélson de Matos, para conhecer o Lobo Antunes. Tinha esta pergunta a fazer-lhe: quando é que ele tinha estado lá? Porque, por sorte, não houve esse ataque, que era para ser um violentíssimo ataque de artilharia para arrasar. E se ele estivesse lá podia ter morrido. O ataque não aconteceu porque o guia perdeu-se naquela mata complicada, de noite, e deixámos demasiadas pegadas que seriam descobertas. Tivemos que recuar. Por várias vezes, vim a Portugal, e, por várias razões, havia desencontros. Até que nos encontrámos, ele disse-me as datas, e eu, aliviado, afirmei: “Ah, então já não estavas lá.” Queria saber porque fiquei sempre com essa preocupação: eu podia ter matado à nascença o escritor que ele ia ser. Ficámos muito ligados por causa dessa história.