Luanda - Uma das teorias filosóficas mais bonitas do jusnaturalismo é certamente a contratualista de John Lock, Thomas Hobbes e Jean-Jaques Rousseau. Nas suas reflexões sobre o contrato social, aqueles grandes filósofos dos primórdios da modernidade partilhavam da ideia segundo a qual os seres humanos não eram naturalmente sociais, mas que a sociedade era espécie de um artifício que permitia às pessoas obter aquilo que não conseguiriam obter por si próprias. Os seres humanos sacrificam uma parte das suas liberdades e direitos para o alcance do bem comum por meio de um contrato social. O contrato social previa uma mudança entre o direito natural e o direito positivo. As acções individuais são escrutinadas à luz das disposições das leis humanas e quando estas acções não se conformam ao estipulado no contrato social, há repercussões. Sendo assim, pela necessidade de se controlar as paixões e crenças dos homens, cuja condição natural é dominada pelas fantasias do seu mundo mental imaginário, criou-se o Estado, que, segundo Hobbes, seria um homem artificial (O Leviatã), cuja força ultrapassa a de muitos homens naturais para garantir sua segurança, não apenas contra o inimigo comum, mas também contra as suas próprias paixões.

Fonte: Club-k.net

No nosso país, dá a impressão que muitos dos problemas que vivemos se devem à presença tímida do Estado ou por este não cumprir de forma cabal com o seu papel de controlo das paixões individuais dos cidadãos. Há um exagerado espirito de deixar andar em quase todos os sectores da vida do país. Por exemplo, a problemática do garimpo de água é tida como uma das grandes causas concorrentes para a fraca distribuição do líquido precioso em algumas zonas da cidade de Luanda. Alguns cidadãos desonestos, gananciosos e oportunistas desviam as condutas públicas de transporte de água para abastecerem os seus gigantescos tanques que depois vendem aos camiões cisternas.

 

No pretérito final de semana, fiquei espantado com o elevado número de camiões cisternas que, em média, de cinco em cinco minutos são abastecidos na zona da Rotunda do Camama em direcção ao Calemba II (lado esquerdo). Estive parado nas imediações do supermercado Nosso Super por quase uma hora e vi camiões cisternas entrando e saindo em alguns quintais das ruas ao redor daquele supermercado. Depois de algum tempo, resolvi percorrer algumas daquelas ruas para perceber melhor o fenómeno. Pela qualidade das casas erguidas naquela zona, facilmente se pode concluir que seus moradores têm algum poder de compra. Muitos homens e mulheres espreitavam para ver se o carro em que me fazia deslocar fosse de um órgão de segurança ou da EPAL e olhavam-me com suspeita. Foi a partir dai que me apercebi que aquela prática era bem conhecida pela EPAL e pela polícia nacional. Num passado recente houve algumas detenções e apreensões mediáticas de electro bombas naquelas residências. O incrível é que depois de algumas poucas semanas, a actividade de garimpo retornou como se nada tivesse acontecido. Os garimpeiros criaram laços de amizades e de cumplicidade com agentes da polícia nacional e com funcionários da EPAL. Aqueles locais passaram a ser “lavras” de salários extras para alguns agentes da polícia e funcionários da EPAL. Assim, o negócio desonesto é protegido e abençoado por funcionários e agentes desonestos. Uma vez que está na moda a identificação e condenação de indivíduos acusados de associação de malfeitores, aí está um grupo de criminosos e - alguns deles com casos recorrentes - que devem ser levados às barras dos tribunais. Esses são de facto criminosos e inimigos do país que agem à luz do dia e que não precisaríamos de perícia investigativa para serem apanhados com a “boca na botija”. Todas as denúncias públicas (mesmo que pareçam infundadas) devem ser investigadas e os resultados partilhados com a sociedade.

 

Eu sou de opinião que o estado não tem exercido o seu poder coercivo nas situações que de facto precisam da sua intervenção. Me parece que entre nós, só se tem mãos firmes contra aquelas pessoas que reivindicam contra as más práticas daqueles que detêm o poder político. Quando as pessoas que dirigem o país se sentem ameaçadas, aí agem imediatamente e as vezes recorrendo à medidas não proporcionais (como acontece com as manifestações pacíficas).

 

Muitos dos nossos problemas são bem conhecidos e as suas soluções, as vezes, passam por uma simples firmeza em combaterem-se as infracções. Não se pode admitir que se continue a desviar condutas e se faça “tráfico” de água nos mesmo locais quando existe um poder instituído! Não é correcto que algumas pessoas recebam facturas da EPAL todos os meses quando a água raramente sai nas suas torneiras.

 

De igual modo, não consigo compreender porquê se tem feito ouvidos de mercador às denúncias populares relativamente aos negócios dos dólares nos bancos. Tem havido várias denúncias de como alguns funcionários têm feito negócios com os dólares, colocando-os no mercado informal para dai retirarem grandes lucros. Como podemos ter um elevado número de homens da África Ocidental vendendo e comprando dólares nas ruas do bairro dos Mártires de Kifangondo em plena luz do dia e nada é feito? Não será Porque aqueles cidadãos do nosso continente são abastecidos e protegidos por alguns malfeitores que têm causado danos ao país? Muitos estão a enriquecer-se com as negociatas feitas com os Mamadús, enquanto o país se encontra de rastos. De quem era o embrulho de dólares (mais de um milhão) encontrado num dos aviões da TAAG no ano passado? Quais são as conclusões das investigações? Quando um caso tão grave como aquele é abafado e fica no nada, é uma prova que estamos perante a um caso de falta de seriedade. O mal deve ser combatido sem tréguas.

 

O mesmo se pode questionar em relação aos cartões de residência para estrangeiros emitidos pelos serviços de migração e estrangeiros. Como se explica que muitos estrangeiros tenham vistos de trabalho e cartões de residência quando vivem do sector informal? De quem são as empresas que emitem as declarações de serviços usados para o pedido de autorização de residência? Está mais do que evidente que existe uma associação de malfeitores e antipatriotas que têm facilitado aqueles estrangeiros. O mesmo se aplica em relação aos vistos de entrada. De forma legal, o visto de Angola é um dos mais difíceis de obter em África (nem sei como se pretende promover o turismo com estas restrições) mas com esquemas consegue-se sempre. As restrições têm sido bem utilizadas pelos vendedores de pátria para se enriquecerem.

 

A corrupção que vemos em quase todos os níveis da nossa sociedade se deve, em parte, à timidez em punir-se de forma sistemática e severa os infractores devido às “lavras” que têm abastecido muitos daqueles que deviam impor a legalidade. Um salário adiantado disponível sem qualquer esforço.

 

Os países ocidentais organizaram-se devido a sua coerência e rigidez em imporem a lei. Entre nós os casos de desorganização e falta de sistematização dos processos é preocupante. Por exemplo, é sabido que o pagamento de serviços ou multas na maioria das instituições públicas (excepto nos EPAL e ENDE) é feito somente por meio de depósitos bancários e multibanco. Não se aceitam pagamentos em cash porque se pretende assegurar que o dinheiro seja canalizado directamente na conta do tesouro. Então como se explica que nos pagamentos à fiscalização da Chicala, responsável pelo reboque das viaturas mal estacionadas na zona baixa da cidade, se exija pagamentos somente em cash? Para o bolso de quem vai aquele dinheiro?

 

Eu poderia citar vários exemplos para sustentar o meu argumento relativamente à desorganização em que o país se encontra, mas não o farei para não me alongar ainda mais, mas desafio cada um a reflectir sobre o que escrevi e, se calhar poderá chegar à mesma conclusão que eu.

 

Sei que o problema não está na ausência de um quadro legal que sustente a firmeza do Estado para combater alguns destes males, porque de boas leis estamos cheios. Não se deve permitir que pequenos grupos de malfeitores usem as funções que ocupam para prejudicar a maioria do povo, sob o olhar impávido do Estado. Se calhar precisamos chegar a um ponto que algumas pessoas que, de forma recorrente, usam as suas casas ou terrenos para praticar actos que prejudicam a maioria (como são os casos dos garimpeiros de água) percam as suas propriedades ou que estes sejam encerrados por um período de tempo. Isto poderá evitar com que as casas por onde passam as condutas de água sejam usadas por oportunistas que vêem naquilo como oportunidade de enriquecimento, prejudicando a maioria. Quando algumas pessoas perderem os seus terrenos e casas, se calhar poderemos começar a combater alguns destes males de forma dura. Mas o Estado deve estar mais presente na vida do cidadão. Nunca teremos um país organizado enquanto o Estado não exercer a autoridade aí onde ele é chamado a fazê-lo. Mas tudo deve começar-se a partir das próprias estruturas do topo. A corrupção e o enriquecimento ilícito devem ser combatidos a todos os níveis, começando com as estruturas dos dirigentes. A sociedade precisa de ver isto para que possa ter fé no poder e na autoridade do Estado, porque todos os nossos males e os principais prevaricadores são bem conhecidos. As nossas comunidades precisam de começar a viver e não continuarem a luta pela sobrevivência.