Luanda - A discussão e consulta pública do ante-projecto do Código Penal começou em 2004. Decorrido 12 anos, o diploma que vai substituir o código em vigor continua a criar dúvidas e incertezas. A despenalização do aborto, quem autoriza as escutas telefónicas, a pena de prisão até 30 anos e a falta de punição da mutilação sexual feminina são alguns dos temas mais polémicos.

Fonte: NG
Entre as várias dúvidas e incertezas da propostas de alteração do Código Penal, as principais colocam-se na pena máxima de 30 anos de prisão, bem como quem deve autorizar as escutas telefónicas, a forma como se deve punir os crimes que ofendem a dignidade sexual da mulher, a descriminalização do aborto e a não penalização das práticas de acusação de feitiçaria às crianças. No entanto, o projecto foi consensual em manter a imputabilidade para os 16 anos, tal como previsto no actual Código Penal.

A juíza do Tribunal Provincial de Luanda, Patrícia Araújo Pereira, defende que “alguns artigos e normas devem merecer um estudo ponderado, por não estarem, convenientemente, elaborados”. Para a magistrada, constitui uma “preocupação” a “não criminalização da mutilação sexual feminina”, uma prática que ainda é visível nalgumas comunidades. “A mutilação genital não pode ser confundida como ofensa à integridade física. E neste ante-projecto, foi suprimida.” Além disso, Patrícia Araújo Pereira aponta para uma “permissividade para aqueles que promovem a pornografia infantil”, lembrando que as penas propostas serão apenas de um a cinco anos”.

De acordo com a juíza, o aumento da pena máxima de prisão para 30 anos decorre de uma “decisão política”, mas devia obrigar o legislador penal a “repensar” as penas atribuídas aos crimes sexuais contra os menores. “As nossas crianças estarão à mercê dos prevaricadores com estas penalidades sugeridas neste código”, lamenta.

ARTIGOS “NEBULOSOS”

No rol das inquietações sobre a clareza dos termos utilizados no novo Código Penal está a separação entre os crimes informáticos e os cometidos através de meios informáticos. O advogado Celestino Quemba reconhece que a “distinção foi bem feita pelo legislador”, uma vez que “se fazia muita confusão” entre os dois tipos de crimes.

Por outro lado, advogada Ana Paula Godinho critica o legislador por não acolher a ideia de que “os crimes de difamação e contra a reserva da vida privada podem também ser cometidos através de meios informáticos”.

Em relação ao património, Ana Paula Godinho gostaria que as penas fossem revistas para “não criar apetência”. A advogada e docente universitária defende ainda que “as escutas telefónicas ilícitas ou não autorizadas” deviam constar no projecto, como crimes. Quem tem opinião diferente é o procurador-geral adjunto da República, Mota Liz, que lembra que existe uma “lei especial” que já regula as escutas telefónicas. “Em princípio, são os juízes que devem autorizar as escutas telefónicas,” sublinha.

CASTIGO AOS 16 ANOS

Na primeira versão do ante-projecto, a idade penal foi reduzida para 14 anos. A proposta não colheu consenso. Por isso, a imputabilidade mantém-se aos 16 anos. O ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Rui Mangueira, afirma que “dar um passo contrário traria consequências difíceis”. O ministro destaca a “descriminalização do aborto” como positiva neste ante-projecto

“PAIS PUNIDOS”

Outros especialistas mostram-se reticentes com a possibilidade da redução da idade penal. O sociólogo e docente universitário Moniz Pedro mostra-se “preocupado” com a redução da idade penal, porque tem a convicção de que os menores de 18 anos “não cometem crimes”. Apesar de terem “consciência dos seus actos” são “ingénuos”. O docente sugere a adopção de mecanismos para a reeducação e ressocialização dos menores em conflito com a lei. Também defende a realização de estudos para se apurar as “reais” causas que estão na base do cometimento de homicídios por parte de menores. Desconfia que estejam ligados à “falta de educação”, porque acredita que, “se os pais cumprissem o seu papel de provimento dos bens essenciais para o desenvolvimento da criança e o Estado criasse políticas públicas para a ocupação dos tempos livres de forma a prevenir condutas desviantes, não haveria tantos crimes entre os menores”.

Moniz Pedro entende que, se houver uma redução da idade penal para os 16 anos, os pais que tenham os filhos envolvidos em actos criminais, “devem também ser responsabilizados”, por “não garantirem a educação” dos filhos.

Duras punições

O documento estabelece o máximo de 25 anos de duração das penas de prisão, podendo chegar até aos 30 anos, em caso de reincidência criminosa e se o agente praticar vários crimes (concurso de crimes) ou em resultado da prorrogação da pena.

O ante-projecto elimina a distinção entre penas maiores e as correccionais, que existe no Código Penal em vigor. E define como principais penas: a pena de prisão e a multa. Retira também as penas mistas e fica tipificado, pela primeira vez, as penas acessórias.

Atendendo ao contexto actual, o legislador penal junta “velhos” crimes e cria uns novos: contra a família, contra as pessoas, contra a paz e a comunidade internacional, contra a segurança colectiva, contra a fé pública, contra o património, contra o mercado e o consumidor, contra a corrupção e informáticos.

Na Assembleia, deputados divididos

Quando finalizar as consultas públicas, o diploma vai ser submetido à apreciação do Conselho de Ministros, para depois ser discutido e aprovado pela Assembleia Nacional. O deputado da CASA-CE, Alexandre Sebastião André, “reprova” a despenalização do aborto. O parlamentar recorda que “Angola tem pouca população” e é preciso “manter a proibição” do aborto para que não seja uma “via de enriquecimento rápido com clínicas só para abortar”.

O deputado da CASA também se mostra contra a pena máxima de prisão de 30 anos, por ser “injusta e desumana”. “Esta pena vai criar um Estado repressivo. Daqui a pouco vamos instituir a pena de morte.”

Também o deputado do PRS, Benedito Daniel, considera que a “duração da pena de prisão até 30 anos” não obedece aos critérios sociais, uma vez que a esperança de vida dos angolanos é de 47 anos. “A justiça deve ser humanizada. O aborto deve ser criminalizado porque Angola precisa de população.”

O NG contactou a bancada parlamentar do MPLA, mas não houve qualquer reacção. O vice presidente da bancada parlamentar João Pinto negou-se a comentar pelo facto de a nova lei penal não ter chegado ainda ao plenário. Também não foi possível ouvir a opinião da UNITA.

O novo Código Penal é um projecto que consta da reforma da Justiça e do Direito, previsto no Plano Nacional de Desenvolvimento (PND). Actualmente, está ainda em vigor o Código aprovado em 1886.

Quase dois mil menores detidos

De acordo com dados oficiais, até Janeiro deste ano, a população prisional, entre os 16 e os 18 anos, era de 1.900 jovens, entre já condenados e detidos, acusados de homicídios, de crimes contra propriedade e de crimes contra a tranquilidade pública.

A maior parte destes jovens está detida no centro de reabilitação e reeducação de menores em conflito com a lei do Waku-Kungo, Kwanza-Sul, o único em funcionamento, entre os quatro existentes. Prevê-se, para os próximos dias, a transferência de todos para os centros de reeducação que serão inaugurados brevemente. Estão em construção mais três centros, em Luanda, Malanje e Huambo.

Destes, o de Malanje, situado na Damba, está prestes a entrar em funcionamento. Em Luanda, o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos construiu um centro de internamento para o acompanhamento, reeducação e reintegração social de menores dos 12 aos 16 anos. Tem a gestão e funcionamento sob a responsabilidade do Ministério da Reinserção Social (Minars). Situado no Calumbo, em Viana, acolhe 104 menores.

Ao todo, Angola tem 52 cadeias, construídas para acolher 22 mil reclusos, mas actualmente a população penal ultrapassa os 25 mil reclusos, segundo dados dos Serviços Prisionais.

Código: agora e o depois

O ante-projecto prevê agravar o furto, mas reduz as penas para o roubo, bigamia e violação sexual. Há vários crimes novos: o furto de energia e de água, a corrupção e sobre o mercado e o consumidor.

FURTO:

Depois: pena de prisão de três a sete anos, variando com o valor da coisa furtada.
Agora: pena de prisão de seis meses, seguida de multa, que varia tendo em conta o valor da coisa.

ROUBO:

Depois: pena de prisão de cinco a 10 anos, tendo em conta o valor do roubo. No qualificado, pena de prisão de seis meses até 15 anos, tendo em conta as circunstâncias do crime.

Agora: pena de prisão de 8 a 12 anos, variando a pena, atendendo as circunstâncias do crime.

BIGAMIA:

Depois: pena de prisão de 6 meses a dois anos.
Agora: pena de prisão de dois a oito anos

FURTO DE ENERGIA

Depois: novo crime, punido com uma pena prisão de 2 anos e multa até 240 dias.
Agora: não consta.

HOMICÍDIO:

Depois: pena de prisão de 10 a 16 anos e o homicídio qualificado a pena pode atingir os 25 anos, passível de prorrogar até 30 anos.
Agora: o homicídio simples é punido com uma pena de prisão de 16 a 20 anos e o qualificado atinge a pena de 24 anos.

AGRESSÃO SEXUAL

Depois: pena de prisão que vai de 6 meses a 10 anos.
Agora: pena de prisão de dois a oito anos.

DIFAMAÇÃO

Depois: pena de prisão de um ano e multa até 120 dias
Agora: pena de prisão de quatro meses e multa até um mês, sendo a menos grave.