Lisboa - O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa não deixa margem para dúvidas: «São por demais robustos e evidentes» os indícios de crimes de corrupção, branqueamento de capitais e falsidade informática contra o magistrado do Ministério Público (MP) Orlando Figueira no caso que envolve também o vice-Presidente de Angola, Manuel Vicente.

Fonte: SOL

Preso em fevereiro deste ano, aguardando o desfecho da investigação em casa, com pulseira eletrónica, por decisão da Relação, o procurador da República é suspeito de ter recebido ‘luvas’ de Manuel Vicente para arquivar um inquérito em que este era visado. No total, segundo o MP, o magistrado recebeu, entre 2012 - quando ainda estava em funções no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) - e 2015 - quando já estava de licença de longa duração na magistratura e a trabalhar como advogado -, cerca de meio milhão de euros de uma empresa angolana que se suspeita estar ligada a Manuel Vicente e à Sonangol, a petrolífera estatal angolana a que este presidiu. No entanto, «nunca prestou nenhum serviço» a essa sociedade, havendo mesmo factos que apontam que o contrato apresentado, de prestação de serviços jurídicos, foi forjado e depois usado para tentar iludir os investigadores.

 

No acórdão proferido no passado dia 22 de junho, a que o SOL teve acesso, os juízes da Relação, confrontados com um recurso de Orlando Figueira que contestava a situação de prisão preventiva, foram unânimes em considerar que a investigação do MP está bem sustentada: «Há coisas que, por tão evidentes e objetivas, à luz da verdade e da isenção só poderão ter uma perspetiva de entendimento. E esta, no caso dos autos, não pode deixar de conduzir à conclusão do direto e ativo envolvimento do arguido na prática dos factos descritos».

 

Orlando Figueira foi responsável, até 1 de setembro de 2012, quando lhe foi autorizada uma licença sem vencimento de longa duração, por diversos inquéritos em que cidadãos angolanos, a maioria por indícios de branqueamento de capitais, entre os quais Manuel Vicente.

BPA emprestou 130 mil euros sem garantias

Terá sido o advogado de Manuel Vicente, Paulo Blanco, também defensor de outros arguidos no referente processo, quem em 2011 abordou o procurador e logo chegaram a um entendimento. Para arquivar o inquérito sem deixar rasto do nome do vice-Presidente de José Eduardo dos Santos, Orlando Figueira teria de dar três passos fundamentais, enquanto a outra parte, para garantir a execução do plano, pagaria em tranches o montante combinado.

 

O magistrado, depois de um requerimento de Paulo Blanco, começou por fazer um despacho concedendo-lhe um prazo de 10 dias para fazer chegar aos autos documentos que comprovassem a origem lícita do dinheiro que Manuel Vicente usara para comprar um apartamento no empreendimento de luxo Estoril Sol Residence (aquisição que estava em causa nesse inquérito). Nesse mesmo dia, o magistrado conseguiu um empréstimo de 130 mil euros do Banco Privado Atlântico (BPA), detido na totalidade pela sociedade Atlântico Europa SA SGPS, que por sua vez é maioritariamente detida pelo BPA, com sede em Luanda, pela Global Pactum SA e pela Sonangol.

 

Mais tarde, durante as buscas que efetuou ao BPA, o MP deparou-se com uma excessiva bondade do banco: Orlando Figueira, cliente recém-chegado, conseguira o privilégio de não ter de prestar qualquer garantia que permitisse ressarcir a instituição em caso de incumprimento. Mas não só: até à data das buscas, em 2015, o arguido não tinha efetuado qualquer amortização tendo pago apenas uma pequena quantia referente a juros.

 

O passo seguinte do esquema, segundo o MP, passou por Orlando Figueira extrair uma certidão e autonomizar em inquérito próprio as suspeitas relativas a Manuel Vicente - e, ao fazê-lo, apagou todas as referências ao vice-Presidente de Angola que constavam do processo original.

 

Orlando Figueira assegura que este ‘apagão’ era normal e que deu conhecimento disso a Cândida Almeida, à época diretora do DCIAP. Esta terá concordado com o procedimento, uma vez que, tal como ele, também «estava ciente do melindre do caso, dado tratar-se de uma figura proeminente do regime angolano que se sabia que viria integrar o Governo a breve prazo».

 

O argumento não convence o MP, nem os juízes da Relação, relembrando-se que, no mesmo inquérito, eram suspeitas outras figuras públicas angolanas, igualmente com uma reputação política a defender, mas em relação às quais só em 2015 a investigação viria a ser arquivada. O que leva a concluir que a «separação de processos assentou única e exclusivamente no facto do arguido ter recebido dinheiro e colocações profissionais para agir desse modo e não com qualquer fundamento legal e processual justificador de tal tratamento excecional».

Uma conta em dólares e outra em euros, sem o BdP saber

Por outro lado, verificou-se que, quatro dias depois de Orlando Figueira ter autonomizado o inquérito de Manuel Vicente, a 16 de janeiro de 2012, o BPA abriu-lhe duas contas: uma em euros, a outra em dólares, cuja existência não foi comunicada ao Banco de Portugal como a lei obriga.

 

Um mês depois, o procurador arquivou o processo de Manuel Vicente. Após o advogado Paulo Blanco ter sido notificado da decisão, uma das contas bancárias abertas em nome de Figueira era recheada com 210 mil dólares provenientes de uma sociedade angolana, a Primagest. Esta tem sede em Angola e o capital tinha como procedência outra conta também no BPA, mas de Luanda.

 

Esta segunda tranche terá sido paga depois da elaboração de um ‘contrato fantasma’ celebrado em janeiro de 2012 com a Primagest. No primeiro interrogatório judicial, em que foi decretada a sua prisão preventiva, Orlando Figueira disse que tratou tudo com Paulo da Conceição Marques, membro do conselho fiscal da Atlântico Europa SGPS SA (que detém o BPA, que tem como uma das suas participadas a Sonangol). Na documentação apreendida, verificou-se que foi o advogado de Manuel Vicente quem redigiu a minuta desse contrato.

 

Segundo o MP, Paulo Blanco, que é também arguido, mantinha com o magistrado uma relação muito próxima, tendo sido ele inclusive quem lhe tratou do divórcio. Em troca, receberia de Orlando Figueira informações, peças processuais e documentos bancários em segredo de justiça, mesmo de pessoas que não estavam na sua esfera enquanto advogado. Segundo o MP, essa prática está «amplamente comprovada» por documentos «encontrados no escritório de Paulo Blanco e no facto deste último não lhe ter cobrado honorários, sendo tal demonstrativo de uma habitual troca de favores e ‘facilitismo’ à margem da lei e da legalidade que se estende à Procuradoria-Geral de Angola e a Manuel Vicente».

 

Outra das prebendas de que o magistrado se encontra indiciado é a sua colocação, a partir de 1 de setembro de 2012, já de licença na magistratura, no departamento de Compliance do Millennium BCP, como assessor jurídico no Activo Bank, com as já mencionadas ligações à Sonangol e a Manuel Vicente. Daí que o MP conclua que «toda esta factualidade (o emprego de fachada) e as declarações prestadas pelo arguido demonstram de forma clara que nunca prestou nenhum serviço à Primagest, pese embora tenha recebido desta entidade, entre 2012 e 2015, o montante aproximado de 500 mil euros».

‘Consultadoria verbal’

Quando foi confrontado com o empréstimo bancário de 130 mil euros, sem hipoteca de bens, e as tranches oriundas da Primagest, o arguido explicou-se de forma sui generis. Em relação ao primeiro, argumentou que as garantias dadas ao BPA foram de ordem «verbal» e quanto à sua relação profissional com a Primagest confessou que nunca se deslocou a Luanda para prestar qualquer serviço e que era Paulo da Conceição Marques, quando se deslocava a Lisboa, quem lhe colocava «as questões» e «pedia o parecer». Questionado se tinha provas do que afirmara, Orlando Figueira qualificou os serviços jurídicos prestados como «consultadoria verbal».

 

Graças ao esquema descrito, nada se saberia - não fora uma denúncia anónima enviada ao MP em 2015, que veio a dar origem ao inquérito.

 

Na sequência dessa denúncia, a Polícia Judiciária, desconhecendo que o magistrado trabalhava no Activo Bank, solicitou elementos bancários sobre o arguido, mal sabendo que acabara de entrar na toca do lobo. Dois dias depois, Orlando Figueira foi junto das Finanças corrigir as suas declarações de IRS referentes a 2012 e 2014, fazendo constar os valores recebidos, mas omitindo o nome da entidade pagadora - uma situação que o MP considera constituir um crime de falsidade informática. No seu entender, quando o arguido apresentou os valores recebidos pela Primagest como rendimentos de trabalho dependente, pretendeu «ocultar o crime» produzindo ou determinando «a administração tributária a produzir uma declaração fiscal de rendimentos não genuína por não conter os seus verdadeiros rendimentos auferidos em 2012, mas sim outros montantes recebidos a outro título».