Luanda - Nesta edição, O crime trouxe o Jornalista, activista, docente universitário e defensor dos Direitos Humanos, Domingos da Cruz, integrante do processo “15+2”, considerado como o “líder do agrupamento criminoso.” Crime que surgiu repentinamente no dia do acórdão proferido pelo juiz Januário Domingos. O revolucionário é de opinião que para existir tribunais em Angola é necessário que se refunde o Estado angolano e que os cidadãos se unam para construir novas instituições independentes. Domingos da cruz que ficou mais de três meses enclausurado numa cela solitária, considera a possibilidade de regressar a cadeia, pois, para o activista, quando o poder é absoluto, quando não existem instituições independentes, faz-se a vontade daquele a quem atribui o nome de “déspota”. Apesar de ter sido condenado na maior pena, oito anos e seis meses de prisão, o defensor de Direitos Humanos diz não ter mágoa do juiz Januário Domingos, do Presidente da República nem daqueles que participaram no processo, pelo contrário, perdoa porque sente pena e comiseração destes, pois, para ele, não existe melhor liberdade do que aquela conquistada através do perdão. “O perdão é também uma estratégia de sobrevivência, de libertação interior e de elevação moral.”, asseverou.


* Regina Gunza
Fonte: O Crime


Angola nunca teve eleições, o que Angola tem tido é simulacro eleitoral

Jornal O Crime (JC)- O que representa esta liberdade sob termo de identidade e residência para você?
Domingos da Cruz (DC) - Do ponto de vista psicológico e emocional, é muito melhor, se comparar com o período em que estávamos nas celas. É óbvio que, sob termo de identidade e residência, essa liberdade parcial dá-nos a possibilidade de estarmos ao lado das pessoas que amamos, também consegue-se ter uma alimentação melhor, cuidar da saúde de forma melhor, o que não é possível nos nossos estabelecimentos prisionais. Mas é preciso que se diga também que é óbvio que, do ponto de vista jurídico ou legal , ela não é propriamente liberdade desejável, mas, do ponto de vista psicológico sempre fui livre, apesar de estar nas celas, pelo que, apesar de ter esta limitação legal, sinto-me psicologicamente e plenamente livre.


Qual é a sua opinião sobre o sistema judicial angolano, uma vez que, apesar de o juiz da primeira instância, Januário Domingos, vos ter condenado a prisão efectiva, o Tribunal Supremo decidiu vos colocar em liberdade admitindo o pedido de habeas corpus interposto pelos vossos advogados?
[…] rigorosamente e numa perspectiva comparativa, à luz daquilo que se pode chamar de engenharia jurídica e funcionamento das instituições, eu entendo que Angola não tem um sistema judicial e como consequência lógica, rigorosamente não temos propriamente tribunais. Temos instituições com carácter formal e estas instituições submetem-se única e exclusivamente a vontade de um homem. Eu entendo que o Presidente da República é o alfa e o ómega do poder em Angola e neste sentido, aquilo que as pessoas equivocadamente chamam de tribunais, sistema judicial, do meu ponto de vista, não é nada mais do que mero serviço do Presidente da República. Neste sentido, a consequência lógica e razoável é que não terá sido tribunal nenhum a colocar-nos na condição em que estamos, mas sim o dono do poder absoluto. Pelo que, eu não vejo nenhuma intervenção do tribunal. O tirano, o déspota, usa essa gente como bem quer e entende, portanto, do meu ponto de vista, não há nenhuma independência dos tais tribunais e o facto de nos colocarem nesta condição não significa necessariamente que haja tal independência. Essa decisão de colocar-nos em casa é única e exclusivamente o reposicionamento político deste tirano, que é um caso único e raro no mundo, pela sua capacidade de infringir a maldade de múltiplas formas.

 
E se vos for dada a liberdade incondicional, a sua opinião se manterá intacta?
Sim. Manterá. Este é um sistema instalado, comparado a um cancro no corpo de alguém. Só sendo arrancado efectivamente a pessoa estará recuperada, pelo que, eu não vejo nenhuma decisão e liberdade incondicional como motivo para chamar o sistema entre aspas, judicial angolano como sendo independente. De acordo com o standard internacional, aqui não existe sistema judicial nenhum. Quem não sabe o que é isto, seja humilde. E tem duas opções para saber isto: ou vá viver num país democrático ou vá numa universidade de verdade para estudar teoria da democracia!

 
Então, o que deve ser feito para que haja tribunais em Angola e para que o sistema judicial seja independente?
Tem que se refundar o Estado. A refundação do estado pressupõe que os cidadãos se unam e construam as instituições. Existem exemplos claros sobre caminhos que se devem seguir, basta ver o que os outros fizeram na Tunísia para a refundação do Estado e não vejo esse grupo cheio de vícios a refundar o Estado, aliás, construir um sistema judicial independente seria uma contradição pela natureza do grupo hegemónico, tendo em conta aquilo que eles são. Por exemplo, vamos imaginar que tenhamos tribunais independentes, fruto de acções da vontade do grupo que actualmente está no poder, eles serão responsabilizados, tanto do ponto de vista político como jurídico, e diria que eles nem são capazes porque seria destruir-se a si mesmo.


Considera a possibilidade de regressar para a cadeia?
Não há dúvidas! Como deve calcular, tendo dito a pouco que o poder absoluto está na mão de um déspota, que não existem instituições independentes do ponto de vista legal, que ele é o alfa e o ómega de tudo o que existe no contesto institucional angolano, estamos a mercê da vontade única e não existe aquilo que chamam de império do direito, império da lei. Dependendo da vontade de um homem cruel e vil, a qualquer altura regressaremos  à prisão.
“Dentre os graus do inferno por que passei, Kakila foi a cadeia menos tenebrosa e Viana a mais sarcástica”


Qual é a realidade das cadeias de Luanda?
De uma forma geral, elas têm muitas insuficiências. Por exemplo, a alimentação é desagradável, a água é aquela sobre a qual várias vezes denunciou-se publicamente que é igualmente inadequada para o consumo humano. Nós não encontramos a nível das prisões, um sistema de reabilitação que permita a reintegração do recluso após o cumprimento da pena. Existem pessoas cujas penas já chegaram ao fim mas continuam na cadeia. Por exemplo, existem pessoas que foram condenadas a cinco anos de prisão maior, mas estão lá na cadeia a seis, sete anos. O excesso de prisão preventiva ainda continua a prevalecer, muitos com idade que de acordo com a lei deveriam estar no centro de reabilitação de menores, cumprem em prisões com adultos. No que diz respeito a saúde, há postos médicos em todas as prisões onde passei, mas infelizmente não tem medicamentos nem médicos, eu vi apenas enfermeiros. Isso também facilita na mortalidade de muitos presos, claro, associado também a alimentação, a sobrelotação, há pessoas que até hoje ainda dormem no chão porque não há espaço suficiente para todos os presos. Agora, pode-se também ainda assim identificar algumas virtudes, por exemplo, a gestão da prisão é participativa. Muitos presos contribuem para a recepção dos visitantes, para a limpeza da prisão, há agentes com um grau de humanidade que me parece aceitável, extraordinário. Tal como toda a sociedade no contexto de Angola, infelizmente está sob controlo dos Serviços de Informação, muitos desempenham lá dupla função, tu tens enfermeiros mas também agentes dos Serviços Secretos, tens o psicólogo ou reeducador mas também é agente dos Serviços Secretos, inclusive, usa-se também prisioneiros lá para desempenharem esse duplo papel, então, você está com alguém aí na cela (…), mas é igualmente um agente que está ali para prestar informações sobre o que se passa entre a população prisional. Mas, independentemente de tudo isso, não posso deixar de realçar que encontrei lá agentes com um grau de humanidade extraordinária que de certa forma maneira, é algum sinal de esperança para o futuro do país.


Alguma vez foi torturado nas cadeias por onde passou?
Não. Talvez por causa da minha postura, porque a forma como você lhe dá com este pessoal que trabalha nas prisões, de alguma maneira contribui ou não para que você seja torturado. Eu não estou a querer dizer que tive um posicionamento que foi o único facto que contribuiu para que eu não fosse torturado. Acho que também tem a ver com a natureza do próprio processo, pois, muitos reclusos comuns são agredidos, no nosso caso, alguns agentes de alguma maneira sentiam-se intimidados. Se eu torturar alguém deste processo, possivelmente poderei ser denunciado, isso vai para a imprensa, posso pôr em causa o meu emprego, ser responsabilizado pela moral social. A natureza do processo no fundo, foi no meu ponto de vista o factor central que contribuiu para que não fossemos torturados, embora alguns tivessem passado pela violência física.


Como era a sua relação com os reclusos?
Tive uma relação extraordinária, embora tu notes que muitas vezes existem pessoas que não se identificam com você ou com a causa da nossa luta. Além do mais, notei também que muitos tinham informação bastante, relativamente ao processo e eram bastante solidários também. Alguns diziam claramente, “olha, eu tenho plena consciência de que cometi um crime, por isso estou a ser responsabilizado por aquilo que fiz, mas tu não devias estar aqui”. De uma forma geral, foi sim boa. É óbvio que existem também alguns que tinham mesmo a ideia de que nós queríamos matar o presidente; uma ideia tosca, mas compreende-se perfeitamente porque também houve um grau de manipulação muito grande, com todo esse tóxico mediático vindo destes órgãos de comunicação social que nem se quer são dignos deste nome, são essencialmente instrumentos de propaganda. Nem todos são capazes de filtrar as informações com a consciência crítica necessária para chegar a uma conclusão razoável e justa. Além do mais, quem está naquele ambiente enclausurado, não viabiliza o acesso a informação necessária para julgar e ter uma conclusão mais sofisticada ou mais justa.


O que mais lhe chamou atenção nas cadeias por onde passou?
O simples facto de nunca ter ido a prisão, quase tudo chama a atenção, é tudo novidade. Por exemplo, você chegar na prisão e colocarem-te numa cela sem energia, ficas lá as escuras durante dias e você vai reclamando, depois, colocam a lâmpada e quando você olha para a cela em que está, tu percebes que era melhor se não tivessem colocado a lâmpada porque depois de colocarem a lâmpada, você consegue ver o grau de imundice em que estás. Estive numa cela em que a sanita é na cor do cacau, com ratos em estado de putrefacção, tudo isso é brutal do ponto de vista humano. É esta experiência que permite-nos chegar a conclusão que desse pessoal é possível esperar tudo. São capazes de tudo. Já nos deram provas bastantes. 
Outra coisa que me chamou a atenção, é ver os reclusos, numa condição tão dramática. Eu tenho a impressão de que os angolanos de uma forma geral absorvem o sofrimento com muita facilidade e dançam sobre o sofrimento, abraçam, vivem o sofrimento de forma muito prazerosa. Dá impressão que há aqui uma espécie de enfermidade colectiva, uma espécie de amor a opressão e surpreende-me o grau de felicidade das pessoas mesmo estando na prisão. Se tu olhares para uma prisão norte-americana ou norueguesa, tu vês como as pessoas estão permanentemente tristes, mas aqui não. As pessoas vivem como se tivessem uma vida normal e isso também me surpreende.
Mas também há outra coisa bem interessante, é o nível dos nossos agentes. A maior parte dos agentes são de um nível que você consegue compreender porquê é que exercem tanta violência. A maior parte das pessoas é de um nível que no meu entender não podia ser para os serviços que prestam e ainda assim, estão ali.


Qual foi a prisão que lhe ofereceu as condições mínimas para sobreviver?
DC- Para mim, Kakila foi a melhor. Embora a água não fosse boa, mas os agentes não se intrometem muito na vida dos presos, deixam-nos um bocado mais a vontade, além do mais, em Kakila, deu para estar num sitio espaçoso onde podíamos jogar futebol de salão, tínhamos uma área para a alimentação, pelo que, comparado a todas as outras prisões, como diria Dante na obra a Divina Comédia, no capítulo “O Inferno” em que apresenta os vários degraus do inferno, acho que o degrau menos tenebroso do inferno foi Kakila.


E o mais tenebroso qual foi?
Foi Viana. Colocaram-nos num lugar bastante desconfortável, espalharam-nos em diferentes alas. Calomboloca também, embora tivesse aquele tempo todo numa cela solitária, mas depois acostumei-me com a solidão, mas era uma solidão do ponto de vista ordinário, no sentido de que estava sozinho, mas, mais tarde, a solidão deixou de ser solidão porque eu dialogava comigo mesmo, com os livros e depois acostumei-me a aquele ambiente. É assim que, quando colocaram-me com presos comuns, eu pedi para voltar a cela solitária para ficar sozinho porque para mim, foi desconfortável estar com os outros presos, sobretudo, porque precisava de trabalhar a minha dimensão transcendental, intelectual, estando com os outros presos, não há aquele ambiente que te permite ler, pensar e fazer alguns apontamentos, já na cela solitária, era possível, então, dois, três dias depois, solicitei a transferência e senti-me muito bem estando ali sozinho trancado. Para voltar à solitária, a exigência e a moeda de troca da parte das autoridades angolanas (mas transmitidas pelo director da prisão), foi o fim da greve de fome. Preferi estar sozinho e pôr fim a greve. Estar sozinho e sentir-se melhor, foi bem explicado (a solidão) por Hannah Arendt , na sua obra, “Origem do totalitarismo”. Quando a Thomas Hobbes afirmou que “o homem é lobo do próprio homem”, permite compreender a felicidade que a solidão me causou.
“Se o PR sair do poder um dia, ele será lembrado como um homem cruel e mau”


Foi o activista que levou a maior pena, 8 anos e 6 meses de prisão maior. Ficou surpreendido com a pena?
Não, de modo nenhum! Surpreendido com a pena não. Do Eduardo dos Santos, eu espero o pior. Não nos esqueçamos de que neste país, sendo ele o alfa e o ómega no exercício do poder, o único que tem o monopólio para empregabilidade da violência e justifico a minha posição: quando você olha para a Constituição, ela lhe confere muitos poderes, por exemplo, o Presidente da República, de acordo com a Constituição é responsável pela diplomacia, pelo executivo, aliás, ele é o executivo, o resto são meros agentes auxiliares, desde os Ministros aos Secretários de Estado. No âmbito do sector de Defesa e Segurança, o único responsável é igualmente o Presidente, tudo o resto, submete-se a vontade dele. Historicamente, já deu provas do que o seu consulado é capaz, no que diz respeito a relação com a dignidade da pessoa humana, com a vida, portanto, existem provas bastantes de pessoas que morreram no seu consolado devido o facto de discordarem da forma como ele está a “desconduzir” o país, neste sentido, eu entendo que ele é capaz de coisas piores, então, dar-te 8 anos e 6 meses, é tranquilo, porque deviam ter-nos mortos, pelo que, não me surpreendeu nada. Deste déspota já não nada impossível no reino do mal. Se ele alguma vez teve uma ética, é a ética do mal.


Então, também não ficou surpreso, quando no dia da leitura da sentença surgiu mais um crime, o de associação de malfeitores ou agrupamento criminoso?
De modo nenhum, não me surpreendeu. Eles são capazes de coisas piores, aquilo é o de menos do que ele e os seus correligionários são capazes. Dele, eu espero que a qualquer altura me dê um tiro.


Que experiência de vida ganhou durante o período que esteve preso?
O simples facto de ter ido a uma prisão é uma experiência porque nunca tinha passado numa prisão. Quanto ao resto, há lições. Por exemplo, percebi a minha capacidade de me submeter a um sofrimento brutal como é de ficar isolado numa cela fechada durante mais de três meses, não sabia que tinha esta capacidade. Por outro lado, consegui também perceber que encontramo-nos num país em que as pessoas até hoje não conseguiram compreender ainda o valor da unidade porque afinal aquele que nos oprime, que é um e o seu grupo, e nós somos mais de vinte e sete milhões de pessoas, pelo que, se as pessoas tivessem consciência de que unindo-se seriamos capazes de rebentar a corda da opressão, seguramente teríamos um quadro diferente, portanto, esta é mais uma das lições.
A outra, é que percebe mais uma vez que o Presidente da República pode fazer tudo que quiser e não sai nada. Ele pode prender dez, vinte, trinta, quarenta pessoas, se quiser assassina-las, poderá fazer, se quiser triturá-las, arrasta-las como bem quiser e entender, não sai nada e os angolanos simplesmente limitam-se a ver. Esta é uma das experiências que tive, mas é preciso aproveitar também este momento para dizer que muita gente olha o nosso regresso para casa com triunfalismo, é melhor terem cuidado, não há triunfalismo nenhum porque a ditadura continua ali, vertical, basta notar que as coisas estão como estavam antes da nossa prisão e em muitos sectores, a sociedade está pior do que estava. Eles continuam a fazer o seu desmando, não sai absolutamente nada.


Quem é para si José Eduardo dos Santos?
Acho que sintetiza-se na seguinte frasezinha: um homem cruel.


O Presidente da República anunciou que vai abandonar a vida política em 2018, caso abandone, como acha que será lembrado pelos angolanos?
Será lembrado como uma pessoa má. Podemos sustentar de forma bastante simples, um homem que para deslocar-se cinco ou sete quilómetros da sua residência, leva o exército todo às ruas, só pode ser uma pessoa má. Quantas pessoas sob o seu consolado foram mortas? Vê o nível de miséria em que os angolanos se encontram, ele é um homem excepcional, na medida em que foi dos poucos a nível do mundo que em menos de cinco anos tornou a sua filha numa das pessoas mais ricas do mundo. Eu não tenho nenhuma informação de que ele terá herdado se quer uma cantina por exemplo, então, como é que alguém cuja família não lhe deixou alguma herança pode de repente tornar a filha numa das pessoas mais ricas do mundo? Neste sentido, eu tenho dito que, ao contrário do que as pessoas pensam, Angola é um dos países mais transparentes do mundo, as coisas são feitas às claras, aqueles que subtraem os bens públicos fazem-no tranquilamente sem qualquer dificuldade e as pessoas vêm o que se passa.


O presidente da República, numa das reuniões do Comité Central do MPLA, vinculou o caso “15+2” com a tentativa de golpe de estado que aconteceu a 27 de Maio de 1977. Qual é a sua opinião em relação a isso?
Eu acho isso uma afirmação bastante equivocada no sentido de que para já, as pessoas que o Presidente recomendou que fossem à prisão, nem sequer fazem parte do MPLA. É por isso que se fala de fraccionismo, o que terá acontecido no 27 de Maio. Fraccionismo porque era uma parte de militantes do MPLA em conflito com outra fracção, pelo que, nós não fizemos parte desse grupo hegemónico, do grupo opressor e dominante. Então, parece-me uma leitura bastante equivocada. Mas há outras razões sobre as quais vale a pena fazer referência para dizer que não faz sentido nenhum essa absurdidade que ele defendeu, porque não havia do nosso lado qualquer plano ou pretensão de fazer golpe de Estado, portanto, não se pode comparar a leitura de uma obra com um golpe de Estado. Além do mais, uma das questões importantes a levantar é, aquando do 27 de Maio de 1977, por acaso, havia envolvimento de material pesado como tanques de guerra, houve tentativa de terem o controlo da Rádio Nacional. Não sei quais são os elementos que ele pode encontrar neste grupo que mandou prender, para comparar com o que terá acontecido a 27 de Maio. Isto é irrazoável e demonstra também que tem insuficiências do ponto de vista da análise de conjuntura, o Presidente está com incapacidade de fazer uma análise mais refinada e que faça o mínimo de sentido, o que não me surpreende porque nos últimos cinco anos ele tem proferido muitos disparates e este é mais um entre vários disparates. Coitado. É descontrolo do tirano!
“Não sinto mágoa do Januário Domingos nem do PR, sinto pena e comiseração”


JC- Sente alguma mágoa do juiz Januário Domingos?
Não, mágoa não. Por acaso, estando na cela, eu me perguntava se seria capaz de perdoar a todos que estiveram envolvidos, os polícias, o pessoal da Direcção Nacional de Investigação Criminal, os Procuradores, o próprio Juiz, incluindo o Presidente da República, não, mágoa não. Basta fazer um exercício de introspecção, um exercício de elevação do ponto de vista ético para concluir que é contraproducente estar magoado, odiá-los, recriminá-los pelas seguintes razões: Nelson Mandela dizia que perdoar alguém é sinal de ascensão em humanidade, é também uma estratégia de sobrevivência porque quando você odeia alguém, corrói-se do ponto de vista psicológico e essa pessoa nem se quer sofre com o ódio que você dirige para ele, e neste sentido, vale a pena perdoar. Por outro lado, Mandela dizia que se você quer efectivamente ser livre, mesmo que alguém te tenha feito mal, é preciso perdoá-lo porque se não perdoares, não serás livre, porque você vai viver condicionado a esse ódio, a acção que essa pessoa fez, vai continuar a ter autoridade sobre ti porque você vive uma vida condicionada à aquilo que ele fez. Então, eu quero ser plenamente livre, portanto, dispo-me completamente deste ódio. Além do mais, o pessoal dá-me pena e digo de forma sincera, tenho comiseração, tanto do Juiz que é usado como um meio e instrumento do Presidente que depois de ter ficado no poder trinta e sete anos e não foi capaz de fazer diferença na vida das pessoas, fazer o bem e está na zona descendente da vida e quando olha para o seu passado, qual é o legado que ele há-de deixar. Eventualmente, ele não se preocupa com isso, se calhar o que lhe importa é mesmo a acumulação de riqueza roubada, mas se for alguém que tem o mínimo de consciência moral, nesse momento, suponho que na idade em que está, está desesperado, qual é o legado deste homem que durante muito tempo tinha tanto poder, tanto dinheiro e não conseguiu fazer diferença na vida das pessoas. Beyonce costuma dizer que o Poder tem que ser sinónimo de mais responsabilidade e Michelle Obama diz que quem tem poder deve fazer a diferença na vida dos outros. Ele não foi capaz de fazer diferença nas nossas vidas, pelo contrário, deixa muita gente magoada, completamente chocadas pela condição em que colocou mais de vinte e sete milhões de pessoas.


O Tribunal Supremo anunciou que vai instaurar um processo disciplinar contra o juiz Januário Domingos por vos ter condenado deliberadamente. Acredita que o juiz será punido?
A informação que tive acesso é que há recomendação da parte do Supremo para que se possa abrir um processo disciplinar contra o Juiz, mas tendo em conta a forma como o Juiz se posicionou ao longo do processo, para já, é demasiado claro que se pode abrir processo com duas acusações: denegação de justiça e abuso do poder, pelo simples facto de no dia da condenação ter havido um recurso com efeitos suspensivo e ainda assim, arbitrariamente ter-nos mandado para a prisão. Mas é óbvio que esta não é a decisão dele, ele simplesmente é um instrumento que foi usado pelo déspota para a concretização da sua vontade. Agora, eu não acredito que ele será responsabilizado e entendo que vale a pena avançar com uma acusação da nossa parte, porque apesar de perdoá-lo do ponto de vista moral, mas do ponto de vista legal, é necessário que ele seja responsabilizado, inclusive, numa conversa com os advogados, decidiu-se que a qualquer momento, avança-se a um processo contra o Juiz. Mas não dará em nada porque ele está sob protecção daquele que é o alfa e o ómega no exercício do poder em Angola, aquele que é o poder absoluto. Eventualmente, alguém dirá, e se não dará em nada, porquê é que insistem na abertura de um processo? E eu respondo: porque precisamos desempenhar também um papel pedagógico, ensinar, contribuir para que a sociedade actual e futura, saiba que um Juiz não pode agir de acordo com a sua vontade, que no fundo não é bem a vontade dele e sim do Presidente da República. Por outro lado, é necessário que os advogados respeitem-se a si mesmos porque num processo que houve tantos atropelos, eles precisam e têm de mostrar tecnicamente que sabiam dos atropelos, que sabem a lei e que não se podem deixar manipular na sua profissão. Têm de tomar uma posição. E, para que haja um registo histórico de que apesar de o juiz ter violado a lei, os advogados não condescenderam.


O que representa para si o dia 20 de Junho?
É uma data histórica. Nunca me esquecerei desta data, é como uma data de aniversário. Seguramente lembrar-nos-emos desta data e representa para mim aquilo que eu sempre defendo, o poder do cérebro humano. O cérebro humano é capaz de coisas extraordinárias, um projecto de ideias nas quais eu acreditei, protagonizou um acto de dimensão global e isso é o poder do cérebro. E, falando sobre o poder do cérebro, este é um dos problemas do povo angolano, não somos ensinados a conhecer e acreditar no poder do cérebro, só quando sabermos e acreditarmos é que teremos capacidade de elaborar projectos transformadores da realidade, na ciência, no desporto, na arte. Só conhecendo o poder do cérebro podemos criar e inventar!
“Nunca participo e não vou participar mais uma vez de uma farsa eleitoral”


Vai participar nas eleições de 2017?
Angola nunca teve eleições, o que Angola tem tido é simulacro eleitoral. Angola não é democrática, isso é uma autêntica ditadura e nas ditaduras também realiza-se eleições, tal como Hitler chegou ao poder por intermédio de eleições. Nas ditaduras, as eleições são instrumentos de legitimação dos tiranos diante dos seus parceiros internos e internacionais. É um instrumento para a construção da legitimidade, neste sentido, nas ditaduras, o resultado eleitoral é previsível, mas, por exemplo, você não sabe na Alemanha qual será o resultado antes de uma eleição e aqui já se sabe que alguém mais uma vez vai continuar no poder. Ingenuamente as pessoas aqui dizem “vai ganhar”. Ganha-se onde há eleições livres, justas, transparentes, numa palavra só, eleições verdadeiramente, nunca houve. Ora, o meu grau de lucidez não me permite participar numa palhaçada, numa farsa eleitoral, portanto, eu não me submeto a isso, sob pena de ser usado como um instrumento para o alcance dos objectivos do déspota e eu não aceito ser usado como um instrumento, pelo que, do ponto de vista psicológico, eu nunca participo e não vou participar mais uma vez de uma farsa.


Quanto a sua brochura “Ferramentas para destruir o ditador e evitar uma nova ditadura” quando estará nas bancas ou disponível fisicamente?
Como deve saber, o meu livro é a peça central do golpe do ponto de vista do grupo opressor, sendo a peça central do golpe e o processo ainda não transitou em julgado, não é adequado a impressão do livro, mas tão logo termine o processo, seguramente será impresso. Só não o faria quando me provarem que escrever um livro, publicá-lo e divulga-lo é crime. Eventualmente, não vão permitir que o livro seja impresso aqui, mas podemos fazer perfeitamente noutro lugar e ainda bem que o mundo tem mais de duzentos países, então, podemos fazer num outro lugar. Mas o livro já está publicado na internet e não há lugar melhor para divulgar hoje do que na internet, quem quiser pode baixá-lo no Rede Angola ou no MakAngola.


Acredita que o vosso processo mudou a consciência do povo angolano a lutar pelos seus direitos?
Como eu estava na prisão, não consegui ter esta ideia, mas as pessoas dizem que sim. Muitos dizem que o processo ajudou a fazer as pessoas perceberem que precisam lutar pelos seus direitos. Uns também dizem-me que afinal, Angola não é grande coisa enquanto país. Agora estão a perceber o que é Angola, as pessoas nem sequer conseguem ter acesso fácil ao arroz ou a massa, agora vão lutando para compra de sal, então, percebem que estavam enganados.


Viu algum desempenho dos meios de comunicação na cobertura do vosso caso?
Não há dúvidas, houve um desempenho extraordinário, aliás, o rumo que o processo tomou dependeu muito da cobertura noticiosa, do nível de denúncias que eram feitas em relação a maneira como o processo estava a ser produzido, mas claro, também havia o outro lado negativo, refiro-me aos aparelhos de propaganda, se por um lado uns estavam a fazer um jornalismo de facto, do outro lado havia o grupo hegemónico que controla os meios de comunicação social com maior poder financeiro, claro, dinheiro subtraído dos angolanos para a manipulação.


Qual é a mensagem que deixa aos vossos advogados?
Só tenho que agradecê-los porque tiveram um desempenho fora do comum, extraordinário e também de muita coragem porque encontramo-nos num país em que defender pessoas que claramente dizem que Angola precisa mudar, que Angola é uma ditadura, não é fácil. Muitos sobre os quais eu não gostaria de fazer referência agora por razões éticas, fugiram, mas esses que ficaram do nosso lado, só tenho de agradecê-los. É pena que não tenho outra maneira de agradecê-los que não seja sob palavras.


Há mais alguma coisa que queira acrescentar?
Para terminar, eu gostaria de realçar que é importante que as pessoas não pensem que esta liberdade parcial é um favor, na verdade, nós estamos numa condição que nem deveríamos estar, tínhamos de estar totalmente livres. O processo ainda não terminou, é preciso evitar triunfalismos porque a ditadura está ali e ela continua, a prova disso é a condição em que os angolanos vivem e o rumo que país se dirige aos mais variados campos. A manutenção de Dago Nível na prisão é outra prova (entre muitas) da tirania.