Lisboa - 1. A recente publicação de Agostinho Neto. O Perfil de um Ditador. A História do MPLA em Carne Viva [2 V., Lx., Vega], de autoria Carlos Pacheco, um historiador de ofício, é uma oportunidade para uma reflexão sobre as narrativas biográficas dedicadas a personagens que se destacaram na liderança dos Movimentos de Libertação (MLs), e pelo facto de se terem tornado os primeiros chefes de governo na era pós-colonial ou pós-apartheid, ou terem disputado tal poder. Este universo é objecto de um crescente interesse quer no amplo espaço da cultura histórica quer de várias disciplinas académicas.

Fonte: DN

António Agostinho Neto [A.Neto] integra o grupo de actores históricos que, como N. Mandela, na África do Sul, ou J. Nehru, na Índia, adicionaram à liderança da Luta de Libertação [nacional ou anti-apartheid], com ou sem outras organizações competitivas, a governação pós-colonial, ainda que exercida de forma exclusiva no primeiro caso e competitiva (democrática) nos segundos. A. Neto destacou-se ainda no campo literário, a dimensão biográfica que mereceu uma precoce e particular atenção da investigação académica. A A. Neto é atribuído o lugar de poeta "messias" (Kilamba) [L. COSME,2004, Agostinho Neto e o seu Tempo, Porto, CL] ou de fundador poético da Nação [P.Laranjeira em E. A OMOTESO, 2009, Ideologia e Engajamento em Agostinho Neto e Léopold Senghor: uma perspectiva comparativa, Luanda, FAAN,9], que acumula com o de "Libertador do Povo" ou "Libertador do Oprimido" [OMOTESO, idem, 39] e o de "Pai [político] da Nação Angolana" [http://www.agostinhoneto.org/], condição esta que, na cultura histórica angolana, disputa com H. Roberto [J.P. Nganga, 2008, O Pai do Nacionalismo Angolano. As memórias de Holden Roberto, V. I (1923-1974), S.P.]. Tal reconhecimento público expressou-se desde muito cedo e em 1961, A. Neto, tal como H. Roberto, um como "Angola African Leader" e o outro como "Angola Nationalist Leader" já tinham tal notoriedade registada na Political Africa: A Who's Who of Personalities and Parties" [R. SEGAL et al (1961)].


Estas representações e identidades assumem outras tonalidades na esfera pública angolana. Se desde 1980, o dia do nascimento de A. Neto (17 Setembro), é institucionalmente celebrado em Angola como Dia do Fundador da Nação e Dia do Herói Nacional, em 2013, numa peça informativa de Anselmo Vieira para a ONG Deutsche Welle, um dos intervenientes, "professor Wanadumbo Leal", declarou: "para mim está claro que Holden Roberto é o pai do nacionalismo, Jonas Savimbi o pai da democracia e Agostinho Neto foi quem lutou para a pacificação do país, mas existem outros. Estes três são talvez os mais importantes para a História angolana. [..] Então vamos deixar de lado os tabús e escrever a História verdadeira do nosso país, porque, caso contrário, estaremos a mentir para os nossos filhos, os nossos irmãos e as gerações vindouras. A verdade tem de ser dita". [http://dw.com/p/19iRU].


Esta polifonia ficou também visível num estudo recente sobre as representações da memória colectiva, identidade e símbolos nacionais entre jovens luandenses do ensino secundário, inquiridos (2008) sobre os principais acontecimentos e personalidades da História de Angola. No top 10 das personalidades foram incluídos 7 angolanos associados à luta de libertação nacional, dos quais 5 com relevo ainda na era da independência, com A. Neto, J. Savimbi e H.Roberto a ocupar, por esta ordem e neste grupo, as primeiras posições, considerando os estudantes que o primeiro e o terceiro tiveram um impacto muito positivo na História de Angola, enquanto sobre o segundo expressaram emoções «ambivalentes», que são maioritariamente negativas quanto à sua acção na era da independência. Tal escolha convergiu com a dos principais acontecimentos evocados: luta de Libertação/Armada, Independência de Angola, conflitos internos, guerra civil e a questão da paz pós-independência. Uma "opinião" baseada numa informação apreendida fundamentalmente nos manuais escolares, na comunicação interpessoal quotidiana [família e amigos] e na imprensa em geral, num contexto marcado por uma investigação histórica de "nível muito incipiente" e uma cultura histórica pública alicerçada em "informações do senso comum". [J. MENDES et al., 2010, "Memória colectiva e identidade nacional: jovens angolanos face à História de Angola", Anuário Internacional de Comunicação Lusófona, 2005.]. Na verdade, até muito recentemente a investigação em História levada a cabo na Universidade A. Neto e nos ISCED era tributária, na agenda, da panfletária História de Angola [1965, ed. MPLA/CEA, Argel, 1965], e só excepcionalmente se alicerçava em velhas ou novas fontes sólidas, revelando-se mais livresca do que exploratória, prática que o estado e acesso controlado aos Arquivos históricos nacionais estimulou.

2. As narrativas biográficas dedicadas a A. Neto são bem mais abundantes do que as dedicadas a outros dirigentes do nacionalismo angolano. Entre o Agostinho Neto de A. Khazanov (1985) e o Agostinho Neto. [...] de Carlos Pacheco (2016), foram publicados, com interesse para a história da escrita destas narrativas, cerca de uma dúzia de trabalhos de autor ou de colectivos. De um modo geral, com o olhar colocado em dimensões como o carácter, a ideologia, a criatividade e/ou a acção política, estas obras, de autoria intelectual, profissional e relacional muito variada, cobrem as várias fases da vida do biografado, embora eras da emergência do poeta e intelectual comprometido e condutor da Luta de Libertação sejam as mais escrutinadas. Nas narrativas que enfatizam a acção política são detectáveis a dificuldade em separar a biografia de A. Neto da biografia do MPLA assim como o uso assistemático e acrítico de fontes (quando delas fazem uso). Constata-se em particular a ausência da triangulação de fontes de origem múltipla, questionando ou explorando as tensões que estas podem expressar.

É verdade que é praticamente desconhecido do público e dos académicos o espólio documental do Arquivo Histórico do MPLA (e dos outros MLs angolanos) e que a sua acessibilidade é exclusiva, um facto que a disponibilidade parcial do Arquivo de L. Lara apenas matiza. Tal circunstância não é excepção nem regra no que aos arquivos históricos dos MLs da África Austral diz respeito. É também necessário ter a noção de que os fundos da PIDE-DGS (S. Centrais e Del. Coloniais), além da documentação gerada pela actividade da organização, incluem uma extraordinária colecção de documentos privados originários de uma miríade de organizações, instituições e indivíduos, incluindo dos MLs, organizações securitárias de vários países da Africa Austral, da OUA e seus Comités, etc. Além disso, a PIDE-DGS criou narrativas explícitas sobre a evolução dos "movimentos terroristas" ou "independentistas". Por exemplo, sobre o acordo MPLA-GRAE, estabelecido no final de 1972, os serviços angolanos da DGS constituíram um minucioso processo de informação sobre as negociações preparatórias; elaboraram uma extensa "síntese [factual] de todo o historial das tentativas para a criação da Frente Única" ; assim como procederam a uma "análise crítica" do mesmo com base na qual acertaram no desenlace [PIDE-DGS, Del. Ang., R. Ex.-3, 01/1973]. Tal documentação é de enorme interesse para a escrita da história da rivalidade entre aqueles dois movimentos do nacionalismo revolucionário angolano e os estudos históricos dedicados ao tema, conhecendo-os, não os podem omitir.

3. Das narrativas biográficas dedicadas a A. Neto destaco três trabalhos que ilustram tipos e tendências das narrativas não-académicas sobre actores da Luta de Libertação e da transição pós-colonial.


Agostinho Neto, Uma Vida Sem Tréguas - 1922-1979, foi editado em 2005 (Luanda), sob a dir. de Acácio Barradas, um jornalista. É uma obra colectiva, com 21 colaboradores, e 6 secções. Na secção Historial traçou-se o "retrato biográfico de Agostinho Neto - retrato que foi confiado a três jornalistas e não a historiadores, mas nem por isso menos rigoroso nos critérios de investigação" (p.15), o que a leitura não atesta. O retrato "daquele que viria a ser o fundador da nação angolana" organiza-se tendo como pontos axiais "o nascimento de um líder", a experiência da deportação em Cabo Verde (1960), a "Odisseia da Fuga"/saída clandestina de Portugal, e o "homem [que colocou pedras] nos alicerces do Mundo. Retrato emocionado dos anos que marcaram a ascensão, apogeu e morte de Neto" (1960-1979). A ideia condutora deste Historial, que é alicerçado em fontes ocasional e erraticamente referenciadas, é a ascensão do "líder" e o seu papel positivo e heroico no nacionalismo angolano, na luta de libertação e na primeira era da independência. O resto do livro é uma miscelânea (Entrevista, ensaio literário, 14 depoimentos, e um Epílogo, com poemas a, selecção de frases e mensagens de, e testemunhos e cronologia sobre, A.Neto).


Agostinho Neto e a Libertação de Angola (1949-1974). Arquivos da PIDE-DGS [5 Vs, Luanda, Ed. Fundação Dr. A. Neto, 2012] é obra de família: a edição foi coordenada por Maria Eugénia Neto, a pesquisa e a selecção documental foi realizada pela médica Irene Neto e pelo seu marido, o economista São Vicente, também autor da introdução. São cerca de 5800 páginas onde se publicam 1545 documentos selecionados entre os 6000 documentos do deficientemente referenciado "Processo nº 88" de A. Neto [PIDE/DGS, Del.Angola, 12 Volumes] Não é facultada nenhuma explicação sobre os critérios que nortearam tal selecção, a não ser a de que ela permite seguir o "percurso" de um "Chefe" a que se atribuíam " todas as culpas" mas que era o que "mais trabalhava e menos regalias tinha" (Apresentação). A introdução, Agostinho Neto e a Liderança da luta da Independência de Angola (1945-1975) é uma extensa narrativa (480 p.) organizada em torno de "4 momentos" da vida e luta"de A. Neto, como organizador, libertador, vencedor (da Luta de libertação e da Guerra Civil), unificador e fundador da Nação, mas sem referências e bibliografia e nenhuma relação explícita com os documentos publicados. Em suma, um texto de opinião, e onde se detectam inúmeras imprecisões e lapsos factuais.


Em Agostinho Neto. O Perfil de um Ditador... (2016), C. Pacheco anuncia uma "biografia política " (p. 30) que visa reconstituir "a história omitida ou invisível" de A. Neto e do MPLA, ocultação que teve a colaboração de "académicos". O propósito é iluminar o lado sombrio do biografado, nos planos da ética e da autoridade moral e política e as taras que transferiu para o MPLA como organização violenta, não apenas contra o colonialismo. O que sobressai nesta biografia, além de um aparato terminológico exterior à ortodoxia académica, é a sua circunscrição às múltiplas «guerras» (7 ou 8) que o biografado suscitou e/ou enfrentou entre 1960 e 1977 através das quais o autor vislumbra um personagem ambíguo, incompleto [cínico, hipócrita, brutal e canalha], com um estilo de liderança autoritário, antidemocrático, interna e externamente fechado à conciliação, propenso ao conflito e à hegemonia, dispondo para o efeito de um persistente «bando» de fiéis.


Esta narrativa encerra um vigoroso contraste com as anteriores. Na escrita biográfica de personagens de grande destaque político, nomeadamente daqueles que no seu tempo de vida foram amplamente admirados, ocorrem flutuações, sendo possível estabelecer pelo menos três vagas. A primeira é marcada pelo perigo da hagiografia, ao transferir-se para a narrativa a reverência angariada em vida pelo biografado nas esferas pessoal, popular e/ou pública. A segunda é profundamente crítica em relação à acção e/ou legado do biografado. Na terceira vaga, as narrativas tendem a revelar a complexidade do biografado, sendo tal revelação em grande parte tributária da história cognitiva (académica) [P. Maylam, 2014]. Tendo como referência esta generalização, o livro de C. Pacheco, marca o início da fase da crítica radical tanto no que à acção política de A.Neto diz respeito (1960-1979) quanto ao seu legado pós-1979. Além desta localização no plano historiográfico, o livro, que se organiza numa composição de clarividência irregular, alicerça-se numa detalhada, mas não exclusiva, pesquisa sobre os fundos da PIDE-DGS. O autor procede a um uso efectivo das fontes para reconstituir [construir] uma perspectiva crítica [mas podia ter uma outra agenda] da História de A. Neto e do MPLA, e traz a público um formidável manancial de informação, cuja utilização é sistemática e não deixa de ser merecedora de reparos, entre os quais a não invulgar dessintonia cronológica entre os acontecimentos e as fontes referenciadas. Além do explícito viés crítico, no plano formal existe uma distância apreciável entre a forma como foi elaborada esta biografia e a generalidade das anteriores dedicadas a A.Neto ou/e ao MPLA [p.ex., CDIH/CC.MPLA (ed.), 2014, História do MPLA, 2 Vol.s,,cujos coordenadores «técnicos» são autores em "A História da Guerra de Libertação da África Austral: o caso de Angola, 1949-1992", A.TEMU et Al (ed.), 2014, Southern African Liberation Struggles. Contemporaneous Documents, 1960-1994, V.2, Dar-es-Salaam, 5-208]


Todavia neste conjunto de narrativas biográficas há elementos comuns que não podem deixar de ser notados. Um deles é a proximidade familiar, militante e/ou simpatizante existente entre os autores e A. Neto e o MPLA, sendo claro que o dissídio estimulou a perspectiva crítica. Além disso as narrativas propriamente ditas, partilham a ausência de um esquema teórico e historiográfico, o que impede situar a conduta e legado de A. Neto no quadro geral das lideranças da Luta de Libertação (da África Austral), contexto de onde pode emergir uma generalização consistente, condutora de uma sólida narrativa histórica. Deste ponto de vista será particularmente fecunda uma história comparada [vidas paralelas] daqueles líderes. Similar é ainda a periodização estabelecida para marcar as principais fases do percurso de A.Neto: a formação, os anos da luta, e a curta era da liderança nacional. Todavia, nas duas últimas, são limitados os contactos entre as narrativas optimistas (positivas) e as pessimistas (críticas), oferecendo-nos o que designo de narrativas paralelas sobre o biografado.

4. Sendo inevitáveis e até úteis as narrativas acima referidas, é indispensável que a história cognitiva intensifique a elaboração de biografias sobre os indivíduos e as organizações da luta de libertação e do pós-colonialismo angolanos, dispondo para isso de vários formatos. O tema tem hoje uma grande actualidade nos espaços público e historiográfico da África Austral onde, nos últimos anos, o diálogo entre o presente e o passado se intensificou. A presença deste tópico no debate público [nacional e transnacional], a disputa sobre o passado, o questionamento e abandono de antigas ortodoxias académicas, será mesmo objecto na próxima Conferência da Southern African Historical Society [2017]. É fundamental incluir o caso angolano neste debate, de modo a proporcionar ao presente uma cultura histórica mais plausível sobre o que de facto aconteceu no passado, tornando-o progressivamente mais liberto das narrativas convenientes e menos imprevisível.

*Professor Catedrático na Universidade de Évora, Departamento de História e Centro de Investigação em Ciência Política