Luanda - Finalmente ficamos a conhecer por fora e por dentro em Lisboa a Torre que mais “tombos” (entenda-se dores de cabeça) tem provocado aos protagonistas da nossa libertação nacional, a par de outras ansiedades impróprias para cardíacos, por força da existência lá dos tão famosos quanto famigerados “Arquivos da PIDE/DGS”, que podem ser consultados pelo público mediante algumas condições e limitações.

Fonte: OPais

Estes arquivos, note-se, voltaram à ribalta muito recentemente na sequência da intensa polémica que se instalou à volta do livro de Carlos Pacheco, “Agostinho Neto, o Perfil de um Ditador”, com o historiador a ser acusado de vários atropelos e mesmo de crimes, pelas mais altas instâncias políticas deste país.


Aguarda-se agora com alguma expectativa pela eventual concretização das ameaças então proferidas, relacionadas com o prometido recurso à via judicial.


Destes arquivos que em grande medida serviram de base à pesquisa de Carlos Pacheco para elaborar a sua monumental obra, sempre tive a ideia de que se tratava do mais substancial e abrangente repositório de esclarecedores documentos para qualquer tipo de abordagem que se queira fazer sobre o nosso passado político.

São registos cheios de história e das mais diferentes proveniências e fontes sobre o nascimento do nacionalismo angolano (pós IIª Guerra Mundial) e a fase da luta de libertação nacional, que ninguém em sã consciência pode ignorar, se quiser efectivamente investigar o que se passou com os vários movimentos e personalidades que lutaram contra a presença portuguesa em Angola.


Esta abrangência prende-se com o facto de uma parte bastante substancial dos documentos encontrados com a PIDE e que actualmente estão na Torre do Tombo, terem como autores os próprios protagonistas da saga nacionalista, onde se inclui a correspondência pessoal, relatórios das organizações nacionalistas, actas de reuniões importantes e por aí adiante.

A PIDE “coleccionava” tudo.

Consolidei esta ideia sobre o grande e incontornável interesse destes Arquivos depois de ter tido acesso a uma outra monumental obra editada pela Fundação Agostinho Neto, onde em cinco calhamaços estão estampados milhares de documentos copiados nos referidos Arquivos, cuja leitura pontual me tem sido de uma extraordinária utilidade.


Estou a falar de “Agostinho Neto e a Libertação de Angola/ 1949-1974 (Arquivos da PIDE-DGS)”.Na apresentação deste trabalho, Eugénia Neto, a Presidente da Fundação AN, escreveu o seguinte em 2011:
“Pelos documentos da PIDE e dos seus relatórios diários, os historiadores poderão reconstruir este período da humanidade e tirar lições para o futuro, tendo o dever de ensinar às gerações futuras que os povos podem viver em fraternidade e entreajuda. Não há outro caminho. Hoje Angola e Portugal já começaram a dar as mãos”.

Foi num destes calhamaços que me deparei com uma extensa carta onde me foi possível ler a seguinte passagem:

“Sabendo que na nossa organização existiu sempre o espírito de eliminar fisicamente militantes sem se fazer justiça, o que aconteceu já em Angola, na Tanzânia e na Zâmbia, tive receio e pedi protecção às autoridades Zambianas, depois da minha saída do hospital. Se assim não fizesse, estou certo que teria sido executado sem hesitação.Talvez estivesse agora o movimento na campanha de explicação sobre o meu desaparecimento”- Daniel Chipenda, “Sango” in “Carta Aberta aos Militantes”, Julho de 73/Lusaka.

Sobre o passado dos protagonistas da libertação nacional, esta passagem resume bem o espírito reinante na época, que depois foi transferido para o pós-independência, já na vigência dos primeiros anos da República Popular, com todas as consequências trágicas que se conhecem e não se conseguem apagar apenas com desmentidos.


Para quem não sabe a PIDE/ DGS foi a repressiva polícia politica que no tempo do colonialismo português mais se destacou na luta contra os nacionalistas angolanos.


A referida “agência” estabeleceu em todo o país e além fronteiras uma dinâmica e eficaz rede de informadores, também conhecidos por “bufos/xotos”, cuja acção permitiu a administração portuguesa da época ter um grande controlo dos “subversivos”.


Apesar da abertura ao público destes arquivos, maior parte dos nomes daqueles perniciosos agentes nunca será conhecida por força de algumas limitações impostas pelo Estado português que não permitem que uma parte importante do seu acervo possa ser consultada pelos interessados.


Ficamos assim a saber que são incomunicáveis “os documentos que contenham dados pessoais de carácter judicial, policial ou clínico, bem como os que contenham dados pessoais que não sejam públicos, ou de qualquer índole que possa afectar a segurança das pessoas, a honra ou intimidade da sua vida privada ou familiar e a própria imagem, salvo se os dados pessoais puderem ser expurgados do documento que os contém, sem perigo de fácil identificação, se houver consentimento unânime dos titulares dos interesses legítimos a salvaguardar ou desde que decorridos 50 anos sobre a data da morte da pessoa a que respeitam os documentos ou, não sendo esta data conhecida, decorridos 75 anos sobre a data dos documentos.”


Estivemos na Torre do Tombo para consultar o processo do nosso já falecido pai, que foi um dos milhares de angolanos que nos anos 60 passou pelos calabouços da PIDE.


Preenchidas todas as formalidades lá conseguimos ter acesso e consultar parte dos documentos distribuídos por várias pastas onde consta o seu nome, como autos de declarações por ele assinadas depois dos interrogatórios a que foi sujeito durante o tempo das suas duas detenções.

Sobre os resultados desta pesquisa que muito tem a ver com a nossa própria identidade, iremos, certamente, criar outras oportunidades para nos alongarmos um pouco mais em memória daquele que em vida foi mais conhecido por “Zé da Missão” e de quem sou o filho mais velho.