Lisboa - Quatro meses depois de estar em liberdade, o investigador e activista pelos direitos humanos Domingos da Cruz apresentou o livro Angola Amordaçada – A imprensa ao serviço do autoritarismo, trabalho que acredita que vai trazer ao país, mas ainda sem previsão lançamento.

 * Amarílis Borges (texto), Ana Brígida (fotos)
Fonte: RA


Sob a chancela da editora Guerra & Paz, o livro traça um retrato pessimista sobre os limites à liberdade dos jornalistas, no exercício da profissão, e ainda apresenta uma comunidade habituada a “escravidão” em relação ao poder político.


Um dia após o lançamento na capital portuguesa, Domingos da Cruz, o activista do caso 15+2 condenado a oito anos e seis meses de prisão por “actos preparatórios de rebelião e associação de malfeitores”, a maior pena por ser considerado liderado líder do grupo, conversou com Rede Angola sobre este estudo.


Recorde-se que Domingos da Cruz é também autor de Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura, um dos dois livros que estiveram na base do processo que levou à condenação de 17 activistas em Março.

 

 


A tese do livro que lançou em Lisboa é sobre as limitações da liberdade de imprensa em Angola. Quem é que concretamente faz isso? O presidente José Eduardo dos Santos, empresários, quem são essas pessoas?

No contexto de Angola o problema central é político, só que aqueles que detêm o poder político são igualmente os que controlam também o poder, digamos, económico, porque em Angola não existe o que podíamos chamar de empreendedores genuínos, no sentido da concepção contemporânea de liderança, como a capacidade de olhar as oportunidades, empreender e criar grandes monstros, grandes impérios económicos, não é o caso de Angola. O que acontece em Angola é que aqueles que têm poder económico açambarcaram o Estado e distribuíram o que é a riqueza angolana entre si e criaram empresas. Essa narrativa, que se aplica muito no contexto ocidental, do capitalismo, que condiciona a liberdade de imprensa, não é uma narrativa que se adeque para o contexto angolano. Efectivamente, o problema central em Angola é político e ponto final. É óbvio que estou aberto a outras narrativas e a outras interpretações e se me parecerem consistentes seguramente revisarei o meu posicionamento.
 

E podemos falar num órgão de censura em Angola ou ficamos pela auto-censura por causa das ameaças a que os jornalistas estão sujeitos, como diz no livro Angola Amordaçada – A imprensa ao serviço do autoritarismo?
Não há especificamente um órgão para censurar, mas o controle político se estende para todas as esferas. Vou dar um exemplo que me parece bastante claro. Em Angola, por exemplo, os cantores que podem ser expostos a nível da imprensa que estão sob controlo do poder hegemónico dependem de um alinhamento partidário, esses sim podem ser divulgados na televisão, na rádio, no jornal, por ali adiante. No âmbito da literatura idem. Portanto, todo o espaço de criação de ideias de pensamentos, de troca de espírito só se manifesta, só se vem a público, quando as pessoas têm alinhamento partidário, o que significa que o controlo da liberdade de expressão e de imprensa é sistémico, é multi-sectorial. No âmbito da liberdade académica e científica não se pode sequer falar que haja, porque para que as pessoas sejam admitidas como professores em determinadas instituições depende do alinhamento partidário, determinadas publicações não podem ser trazidas ao público. Há pessoas que não podem ser convidadas para abordar determinados temas em conferências, tudo por orientações partidárias, não a partir de um órgão concreto. Mas isso vem a partir de quase todas as esferas da sociedade porque está total e absolutamente condicionada. É óbvio que é um bocado arriscado usar essa expressão “absoluto”, porque o absoluto efectivamente não existe, mas quero simplesmente deixar a ideia clara de que o controlo é efectivo e completamente inaceitável. Encontramo-nos de facto num quadro de asfixia no que diz respeito à liberdade e a auto-censura, pois existe no sentido de que se as pessoas sabem que podem ser responsabilizadas criminalmente. Nós temos uma lei que praticamente criminaliza o exercício do jornalismo e que será substituída por uma outra bem mais draconiana, que é o pacote legislativo sobre a comunicação social, a qual o Rede Angola fez um trabalho que me parece notável. Acho que tudo isso é suficiente para demonstrar o grau de condicionamento da liberdade de imprensa em Angola. Agora, aqueles jornalistas que trabalham em órgãos do Estado – TPA, Rádio Nacional, Jornal de Angola, entre outros -, a sociedade sabe perfeitamente como é que são tratados. Há um direccionamento do agenda setting.

 

O que é que, para si, mais se destaca nesse pacote legislativo da comunicação social?
Existem alguns coisas bem ridículas sobre as quais já se fez referência e eu, sinceramente, acho que nem sequer interessa muito invocar. Mas, por exemplo, o simples facto de ser necessário solicitar a autorização do presidente e de outras pessoas que têm cargos de responsabilidade pública para que se possa usar uma fotografia e postá-las numa rede social qualquer, acho isso tão patético.
 

E o que significa ver este pacote de leis surgir meses antes das eleições de 2017?
frases-domingos-da-cruz1Eles construíram um instrumento legal para legitimar, para tornar a coisa mais aceitável. Outro elemento interessante é o facto de estar claramente definido que a ERCA [Entidade Reguladora para a Comunicação Social Angolana] doravante poderá ter um papel de polícia. Pode entrar na redacção e confiscar o material e fazer o que bem quer e entende, que é o papel de um tribunal: decidir e depois, claro, os órgãos de cumprimento das decisões judiciais executam, o contrário do que deverá acontecer em Angola. A lei de imprensa classifica entre informações lícitas e ilícitas sobretudo a forma como se pode acessar às informações. Por exemplo, o novo pacote legislativo diz que doravante jornalistas serão responsabilizados no caso de publicarem informações confidenciais. Vão ser acusados de furto de informação. Imaginemos que um agente secreto esteja descontente com determinados procedimentos e disponibiliza algum documento, aí o jornalista será responsabilizado, de acordo com a nova lei de imprensa, que ainda não está em vigor mas foi aprovada já na generalidade e vai avançar para a especialidade. Tudo isso demonstra claramente que se vai aprofundando o grau de dificuldade no exercício da liberdade de imprensa em Angola e a consequência lógica e razoável é que Angola é um país autoritário.
 

No livro menciona também essa parte, que, quando se fala no cerceamento das liberdades, a justificativa do outro lado é que há liberdade de imprensa e de expressão em Angola por causa do grande número de publicações, de jornais. Como é que responde a esse argumento do governo, de que existe liberdade porque existe um grande número de publicações?
Traduziria simplesmente em voz alta o que já está no livro: a grande verdade é que a liberdade na sua essência é um problema metafísico, é um problema antropológico, e, portanto, a liberdade tem um carácter qualitativo e não quantitativo. Portanto, não se pode falar da liberdade no quadro do número de órgãos. Sendo qualitativo depende da forma como a imprensa é tratada, como os jornalistas são tratados, o grau de liberdade dos jornalistas, de que jeito eles são valorizados pela sociedade, pelas autoridades, o grau de autonomia que têm para a gestão dos órgãos, não só no âmbito editorial mas também financeiro. Tudo isso é que determina o que efectivamente é a liberdade de imprensa.
Eu posso ter num país mil rádios, mil jornais e 500 TV e estes estarem completamente alinhados, condicionados, com um grupo. E ali fica claramente em causa a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão, direito à comunicação. É um equívoco dizer que o facto de o número de órgãos ter crescido nos últimos anos significa que Angola tem liberdade de imprensa, mas eu entendo que essa narrativa, que é permanentemente reinvocada pelos órgãos sob tutela do regime, não parece que seja por ingenuidade ou por ignorância. Acho que é propositado. Eles têm plena consciência de que não há liberdade de imprensa, mas é preciso construir um discurso para que se possa manipular a sociedade. Mas também essas são daquelas coisas que eu acho que podem ser proferidas em sociedades com um nível de atraso civilizacional muito grande, tal como é o caso de Angola. Eu não estou a falar de civilização do ponto de vista da antropologia cultural, estou a falar das exigências, daquilo que o Hans Küng chama de uma espécie de consenso ético mínimo, é nesse sentido. Portanto, é mínimo hoje que se respeite a liberdade de expressão, que se respeite o edifício dos direitos humanos, ele é tão grande, mas pelo menos o núcleo duro dos direitos, que se respeite a liberdade de circulação das pessoas, o direito à vida, independentemente de sermos khoisans, europeus ou americanos, a vida deve ser respeitada, o que infelizmente é um quadro ainda ideal no contexto de Angola.

 
No lançamento do livro se falava no poder das palavras, exactamente sobre o discurso de manipulação. Francisco Louçã mencionou que falta essa parte no livro, a análise do discurso dos média públicos, dando como exemplo aquilo que se escreve sobre Isabel dos Santos. Qual é a imagem que os média públicos vendem sobre o país? E qual é a imagem em que o público realmente acredita?
Acho que o público de facto deixou-se formatar à narrativa de que esses órgãos têm passado e isso é muito interessante porque eles estão, eu diria de forma arriscada, felizes e tranquilos, os angolanos. De uma forma geral acho que estão contentes com o país que temos. Acho que nós, aqueles que resistem à opressão, são um número muito ínfimo e a minha afirmativa para essa justificação é bastante simples: quem se sente oprimido deverá resistir e manifestar, mas não é isso a que nós assistimos em Angola, o que significa que a manipulação está a funcionar. Só para acrescentar um outro elemento: acho também que quando nós olhamos para o comportamento dos angolanos nota-se o quanto eles agem de forma ambígua. Por exemplo, os angolanos de uma forma geral podem dizer “olha, há muita corrupção e tal, temos uma crise moral demasiado acentuada”, mas ao mesmos tempo as pessoas querem igualmente fazer parte do grupo que controla o país e que detém todo esse poder económico. Há uma expressão muito simplista que gostamos de usar em Angola: “Há pessoas que não são nem carne, nem peixe”. Mesmo ao nível da opinião pública, alguma das quais até escrevem para o Rede Angola, você não consegue perceber muito bem de que lado essa pessoa está. Isso é água salgada ou é doce? Você não percebe muito bem. É essa ambiguidade que caracteriza a psicologia do povo angolano. Por exemplo, alguém diz identificar-se com Nelson Mandela ou com Mohammad Mossadegh, mas ao mesmo tempo, quando se precisa tomar uma posição clara diante do aviltamento à dignidade da pessoa humana, aí já diz “não, temos que agir com relativo cálculo”. Mas a justificativa é um interesse puramente econométrico. Então você percebe claramente que essas pessoas não sabem propriamente qual é a sua opção, eu já não diria política mas humana, qual é a sua opção ética. Essa ambiguidade é muito forte entre os angolanos. Conheço, por exemplo, jornalistas que se orgulham de ter relações com corruptos, com ladrões a nível do poder, assassinos, porque quando precisam de algum dinheiro podem contactá-los, quando precisam de um carro ou quando têm um problema na piscina e precisam de fazer a manutenção dela, solicitam a ajuda de alguém que está no poder. Mas, depois, ao mesmo tempo dizem “não, essa gente é corrupta”. É preciso ter pessoas coerentes, como é o caso do Louçã. Lembra-me o conceito de coerência muito invocado por Paulo Freire: “a coerência é fazer com que o que você diz corresponda à prática”. Isso é muito difícil no contexto angolano. Revela bem a ambiguidade e a psicologia dos angolanos.

 
A organização Scholars at Risk diz que corre risco de vida. Apesar disso continua a publicar livros.
Pois claro. Saímos recentemente da prisão. Eu particularmente ainda estou ressentido do ponto de vista emocional e preciso de uma psicoterapia para recuperar o meu equilíbrio, mas estou aqui, fiz uma escolha e acho que é certa e por isso prefiro continuar.

 
E porquê falar sobre liberdade de imprensa e não sobre os seus dias na prisão, como seria de esperar?
Eu não acho que esteja emocionalmente bem para escrever sobre o que sucedeu na prisão. E quando escrever sobre a prisão gostaria de fazer um trabalho notável e de grande fôlego, não só narrativo, mas também analítico, porque o que sucedeu connosco enquadra-se bem no quadro da filosofia política do direito, a filosofia da luta não violenta. Colocar tudo dentro desse quadro seria interessante, mas nesse momento não estou emocionalmente preparado para tal. Deverá passar mais tempo para, como disse, recuperar o meu equilíbrio emocional e fazer algo que seja aceitável. E também não é prioridade escrever sobre a prisão.


Nem como aquilo que viu ou ouviu de outros presos? Nem sequer falo de experiência pessoal.
Eu gostaria de escrever tanto sobre o que vi quanto o que vivi. No fundo o que vi também vivi, porque ao ver estou a viver de uma outra perspectiva, só que não é prioritário fazê-lo daqui a seis meses, um ano. Um dia certamente farei. Neste momento, para além da prioridade sobre a qual acabei de fazer referência, que é recuperar-me física e emocionalmente, tenho também outros voos a fazer, do ponto de vista profissional, por exemplo, e tenho de percorrer essa estrada.

 
Cruzando dados na Internet, notamos que este livro tem como base a tese de mestrado que fez em 2012, na Universidade Federal da Paraíba, no Brasil, mas traz também elementos de 2015, que organizações internacionais juntaram exactamente por causa da sua prisão. O que é que apresenta de novo em comparação com a tese que está online em PDF?
frases-domingos-da-cruz3O que trago de novo é sobretudo uma tentativa de enquadrar o que sucede em Angola dentro daquilo que eu chamo de “a infelicidade inexistente”. Eu não sei se já alguém escreveu sobre isso, sinceramente, mas quero acreditar que eu fui o único a escrever. A infelicidade inexistente consiste no seguinte: um observador externo vê que as vítimas são infelizes, mas na verdade elas não são. Isso é puramente teórico. E como eu posso provar que elas não são? Porque aquele que olha a partir de fora vai para lá e diz “têm que mudar isto” e eles revoltam-se contra aquele que propõe a libertação. Isso é sinal de que eles estão felizes. Infelicidade inexistente é portanto: eu penso que eles são infelizes, mas na verdade não são.

 
Quando houve a independência em 1975, ou mesmo depois da guerra civil, porque é que não se viu uma tentativa de fortalecer a imprensa independente, ou de ter mais jornais alternativos?
Porque o Homem é fruto, como é óbvio, do seu tempo e do seu espaço. Logo a seguir o regime que se instalou em Angola foi autoritário, de natureza marxista. E nesses regimes, como já é sabido, e não precisamos ficar aqui a fazer descrições demasiado conhecidas, não há liberdade para que as pessoas possam promover isto sobre o qual acaba de fazer referência, isso não é prioritário.


Mas o fortalecimento da imprensa independente não seria inclusive do interesse dos próprios empresários, para terem o nome associado a meios de informação sérios?
Não, não é possível, porque se estava num quadro de economia planificada e num quadro da economia planificada não há liberdade nenhuma para qualquer iniciativa privada, independentemente da área, incluindo no campo da comunicação. Podia-se colocar a questão: “E depois? Quando se entrou no período de tentativa de democratizar Angola, forçado pelo contexto da época, em 1990, 1991? Com a pressão interna e externa para que Angola se democratizasse, por que é que nesse período também não houve?” Não houve porque criou-se uma democracia de fachada e que hoje está mais do que claro que é uma tirania, um regime autoritário. Nas democracias de fachada criam-se leis, mas as leis não funcionam. Por exemplo, criaram-se leis liberais que só são mesmo para “o inglês ver”. Colocá-las a funcionar não, porque tudo continua a ser condicionado por um grupo e por um homem.

 
E a formação? Também terá influência nessa cultura de jornalistas que “adoram a escravidão”, como cita no livro?
Claramente. Eu alargaria o ângulo de abordagem à educação dos angolanos de uma forma geral, porque, felizmente, a profissão de jornalista é daquelas que perpassam várias áreas do conhecimento. Eu não acredito que alguém que passe numa faculdade de comunicação seja capaz de fazer com a qualidade necessária peças, por exemplo, da nanotecnologia. Nós temos o jornalismo científico, da robótica. Tem de ter ali alguém que estudou robótica para escrever as peças. No âmbito económico também. Se nós tivéssemos uma boa formação, de uma forma geral, eventualmente isso tornaria as pessoas bem mais aguçadas do ponto de vista crítico. Facilitaria a criação, por exemplo, de órgãos não só independentes, mas também no âmbito do jornalismo comunitário, que não existe em Angola. Nós tivemos alguns jornais que não duraram muito, desapareceram por dificuldades para se manterem, mas também porque efectivamente são combatidos pelo próprio Estado. Olhando para a formação específica de jornalistas, não é boa, nós temos o Cefojor, que dá uma formação básica. Também temos a faculdade de Ciências da Comunicação na Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto e algumas instituições privadas também criaram cursos de Comunicação, mas, como deve saber, a maior parte dos professores que dá aulas nas instituições do ensino superior em Angola são licenciados e isto é vergonhoso. É completamente inaceitável, como é que 80 por cento das pessoas no ensino superior têm o grau de licenciatura. O que é que essa gente vai ensinar? Na região austral de África, no caso do Botswana e da Namíbia, para um professor dar aulas no ensino fundamental, na segunda ou terceira classe, tem de ter um bacharelato em Ciências da Educação.

 
Uma das perguntas que faz no livro é “qual é o resultado empírico dessa comunidade escravocrata e manipuladora” no jornalismo?
Isso traduz-se, como é óbvio, no trabalho que eles fazem de permanente manipulação da sociedade e porque o que os interessa, penso, é fazer esse trabalho e disso resultar dividendos pessoais, do ponto de vista económico. E isso também fica muito claro na forma como se faz a cobertura, tal como os gráficos acabam por demonstrar ou nas entrevistas que não são emitidas depois de terem sido gravadas, ou nos cortes “cirúrgicos” que fazem, completamente inaceitáveis, ou quando na TV está a passar uma imagem de uma entrevista e de repente há um corte do sinal, porque o interveniente é crítico. Recentemente os partidos com assento parlamentar, durante o discurso do presidente, levantaram cartões vermelhos como sinal de protesto e houve um corte de energia para retirar o sinal da TV no ar, para que as pessoas não pudessem ter contacto com aquele facto. Essas são algumas consequências práticas e reais de pessoas que fizeram uma opção, fizeram uma escolha: “nós estamos do lado do tirano, então vamos apoiá-lo até ao fim”. Ou porque acreditam que esse é o caminho certo ou porque olham exclusivamente para aquilo que são os benefícios resultantes do que fazem para manter esse sistema em Angola.
 

O ano passado foi marcado por fortes críticas internacionais ao regime angolano e por condenações por parte das organizações internacionais, muitas vezes motivadas pela prisão dos 15 activistas em Junho, incluindo-o. Como é que esse discurso está a ser visto agora, depois da vossa libertação?
O que acontece é que a deliberação pública, o discurso que diz claramente que o país tem que tomar um novo rumo muda de intensidade. Ora está no pico, ora desce. Uma coisa que preocupa muito é que, nós que somos os oprimidos, parece que não temos uma agenda. Quando é que a crítica sobe e quando é que desce? Ela sobe e desce de acordo com os factos protagonizados pelo poder, pelo regime e isso é muito grave, porque os regimes autoritários conhecem as técnicas da manipulação, de distracção. Muitas vezes há factos que são produzidos por eles. Existem determinados factos que eles produzem porque têm outros interesses que passem ao lado que para as pessoas não darem conta. Eles podem, por exemplo, tirar a vida a alguém, e pensam: “essa gente vai ficar muito focada nisto e nós depois vamos fazer outras coisas”. O perigo é que quando as pessoas agem sempre de acordo com a agenda do ditador e do seu grupo nunca conseguem alterar a realidade, têm que elaborar planos estratégicos que permitem que eles reajam à nossa agenda. É reagindo à nossa agenda que ficarão claras as debilidades da máquina, as fissuras que ela tem e, ao reagir, abrem-se novas chagas no edifício da tirania. Assim temos esperanças intensas de que isso lá para o fim pode correr bem. A crítica intensa em Angola é aquela que não vem para a esfera pública, é aquela que fica no âmbito puramente privado, nas famílias. Quando as pessoas estão no candongueiro vão dialogando sobre a situação do país, mas traduzir este sentimento em acções concretas está muito longe.

Quando falava sobre a posição da comunidade internacional devo dizer que infelizmente os angolanos não foram capazes de fazer aquilo que podíamos chamar de leitura dos sinais dos tempos. Após a conquista dessa paz relativa, nunca tivemos um momento de viragem como esse, refiro-me ao período da nossa prisão em que literalmente a comunidade internacional ficou ao lado dos oprimidos e era esse momento para que os angolanos percebessem que temos a possibilidade de fazer uma mudança de época. Tínhamos o grande momento de viragem paradigmática, bastaria aos angolanos compreender o poder do seu corpo, o poder da unidade e ir para a rua protagonizar a acção final para que se pudesse trazer uma nova Angola. Não fomos capazes de perceber, porque não temos consciência crítica colectiva. Somos ainda muito frágeis na capacidade de ler os sinais dos tempos.


Estava a falar de agenda e reacções. A prisão e condenação dos 15+2 foi uma reacção à vossa agenda ou foi uma agenda do governo?
Foi uma reacção à nossa agenda e daí o resultado. O que estou a dizer tem respaldo na realidade. Eles reagiram à nossa agenda, uma agenda construída de forma pensada, sistemática, com anos de trabalho de antecedência e de afinco. Eu visitei o Instituto Albert Einstein, em Boston (EUA), para aprender sobre técnicas de luta não violenta, para saber o que muitos activistas no mundo fizeram também, fui ouvir a voz do conhecimento e é isso que é preciso. É preciso estabelecer uma agenda, criar um plano estratégico de luta, com parceiros devidamente definidos, com recursos. E quando eles se aperceberem da sofisticação da tua agenda vão reagir de forma desproporcional. E foi o que aconteceu. Tudo isso era previsível para mim do ponto de vista dos princípios da filosofia da luta não violenta.


Como é que interpreta, portanto, o discurso sobre a prisão nos meios públicos?
frases-domingos-da-cruz6É o de manipulação e de tentativa de legitimação das acções do poder, eu resumiria nestas duas categorias. Manipular para legitimar as acções que o poder protagonizava contra nós, porque eles precisavam justificar a opinião pública interna e externa: “estamos a fazer isto porque houve uma tentativa de golpe”. Inventaram tudo aquilo. Mas para quem acompanha a história da manipulação em Angola, ou a história dos média sobre controle do poder hegemónico, sabe que eles sempre manipularam. Por exemplo, há uma ideia de que os partidários da FNLA, que era presidido por Holden Roberto, eram canibais. Porquê? Porque o MPLA terá colocado pessoas que estavam na morgue em hospitais, em congeladores, em geleiras e arcas e filmado, para dizer “olha, o pessoal da FNLA come pessoas”. Isso ficou na mentalidade colectiva dos angolanos. Eu só estou a dar um exemplo de manipulação – e muito reles, isso não é nada sofisticado. Eles chegavam a afirmar durante o conflito que [Jonas] Savimbi era um animal e que o seu exército era constituído por uma espécie de pessoas que se podiam auto-reproduzir, criar cópias de si mesmas. As crianças inclusivamente diziam que a UNITA é tipo capim, cresce muito rápido. Mas esse discurso foi passado para os meios de comunicação social e conseguiu tomar conta da consciência colectiva dos angolanos, só para dar exemplos desse tipo de manipulação que eles protagonizam permanentemente.


Se realmente há um endurecimento do poder em relação aos limites à liberdade de imprensa, como diz no livro, e se há uma coerência seguindo um curso natural no regime, o que poderá ser o próximo passo?
O mal que se vai aprofundando depois começa a protagonizar males em grandes proporções. O que poderá acontecer é simplesmente aumentar a dimensão e a capacidade de realizar o mal. Eu não estou a dizer que o que acontece lá é semelhante ao que aconteceu na Itália de Mussolini, na Alemanha de Hitler, mas se eles inviabilizam cada vez mais o exercício das liberdades – colocando pessoas na prisão, tirando a vida inclusive de crianças pelo simples facto de reclamarem por uma residência, é porque são sedentos por poder e por dinheiro. Isso é muito visível, inclusive na nova geração que está próxima do poder. As pessoas mais novas claramente incorporaram bem a lógica e a ética do mal e essa ética do mal é cada vez mais reforçada. Acho que só podemos esperar o pior. Agora, o que será este pior? Não sei. Mas só podemos esperar o pior se olharmos para as experiências na História. Também em África, por exemplo, Robert Mugabe também começou em sofisticados serviços secretos, fazendo perseguições suaves, condicionando a imprensa, isso tudo e depois o Zimbabwe chegou ao nível em que está. Então o mal atrai o mal e eu acho que é isso que vai suceder, eles vão continuar porque eles continuam a acumular riqueza, eles têm medo, eles tentarão se manter. No fundo as pessoas que fazem o mal, sobretudo em regimes autoritários, são pessoas com muitos medos, tal como acontece com aqueles que têm determinados privilégios, e privilégios que conseguiram de forma injusta, sempre que aparece algo que lhes pareça ameaça vão tentar combatê-lo com o maior grau de energia e intensidade possível e é isso que eu acho que vai acontecer se os angolanos não fizerem nada para travar.


Gostaria que falasse um pouco sobre a Lei da Amnistia, que foi aprovada no parlamento em Julho e que acabou por abranger o processo dos 15+2.
Não, não gostaria de fazer qualquer comentário sobre a Lei da Amnistia.

 
Há um outro ponto mais recente: 14 dos 17 activistas que foram condenados pediram um boicote ao registo eleitoral.
O qual eu não subscrevo.

 
Uma das vozes que mostrou mais apoio ao vosso caso foi a cantora Aline Frazão. Numa entrevista ao RA ela definiu esse boicote “pouco inteligente e até um bocado triste”. Quer comentar essas declarações?
Não, também não gostaria de comentar.

 
Mas não quer entrar em outros assuntos que não tenham a ver com o livro ou é por outras razões?
Não, pode continuar.

 
Não apoia o boicote?
Não gostaria de comentar.

 
No lançamento de Angola Amordaçada disse que o livro não traz de facto nada de novo, porque tudo isso sobre liberdade de imprensa em Angola já foi falado e já foi denunciado por muita gente. Então porque escrevê-lo? Ou lê-lo?
Precisamos de sistematizar, porque em qualquer sociedade normal ou que se quer no mínimo normal, tem que se sistematizar e interpretar a realidade com base em algum estofo teórico tal como vê que é isso que precede o estudo. Os factos estão ali, mas estão completamente esfacelados e é bom que se reúnam numa análise, num documento. Talvez tenha exagerado ao dizer que não há nada de novo, porque se se lembrar tem lá a teoria de infelicidade inexistente. Nada de novo no que diz respeito aos aspectos empíricos, mas é preciso reuni-los. Acho que é necessário que se escrevam livros sobre a nossa prisão, diria que muita gente sabia o que se tinha sucedido, mas daqui a dez anos como é que alguém poderá saber efectivamente o que se terá sucedido? Só em estudos sistematizados e já há trabalhos a serem feitos. A professora Susan de Oliveira, por quem tenho grande estima, está a trabalhar num livro. E sei que outros pesquisadores também estão a trabalhar. Acho bom que isso aconteça. As pessoas sabem o que terá sucedido, mas não só é bom que hajam trabalhos descritivos sobre o que aconteceu como também analíticos.

 
E vai apresentar o livro em Angola?
Isso é algo incerto, eu não posso sinceramente garantir por aquilo que nós já sabemos. O editor é muito optimista, ele tem relações com distribuidoras e espero que a distribuidora que leva outros livros para Angola seja igualmente capaz de levar este, porque afinal o livro interpreta Angola e é interessante para os angolanos que querem ter contacto com o livro. É bom dizer que há a possibilidade de, em qualquer parte do mundo, as pessoas comprarem pela loja online da editora e o livro vai seguramente chegar às suas mãos. Mas não posso garantir que vou lançar o livro em Angola.