Lisboa - Quando os leitores abrirem o PÚBLICO hoje, saberão como terminou a novela das eleições “americanas”. Mas, antes de contados os votos, a perplexidade é esta: como é que a política no país mais poderoso do planeta chegou a isto? Um candidato mobiliza uma grande parte do país com a ideia de prender a adversária, expulsar milhões de pessoas, melhorar os impostos sobre os ricos e insultar as mulheres, será isto extravagante ou normal?

Fonte: Publico

Desde meados do século passado que não víamos nada parecido e o que mudou é o esgotamento da globalização amável. Crescimento lento com elevado desemprego, salários rebaixados e fim da imagem do progresso social, conjugado com impotência democrática nos países em que a política é dominada por factores extra-muros, é esse cocktail que desarticula as sociedades. Para os pobres não há solução nenhuma. E a sua degradação social é o resultado de um sucesso e não de um fracasso: a globalização realmente existente, a liberalização dos movimentos de capitais, alimentou uma promessa, tudo para todos, e, ao impor-se, cobrou o preço, menos que nada para muitos e tudo para alguns.

 

Há duas grandes consequências dessa globalização destruidora. A primeira foi assinalada pelo New York Times e é a desconfiança em relação aos sistemas políticos. Afinal, diz o jornal, Trump tem algo em comum com a primeira campanha presidencial de Obama, em 2008, quando venceu Hillary Clinton nas primárias. O ponto seria a desconfiança face a Washington, o centro de todas as intrigas. Nestas eleições, apesar de Trump ser o multimilionário que enriqueceu com a especulação imobiliária e sem pagar impostos, é Clinton quem aparece como a voz de Wall Street, enquanto o republicano denuncia o “sistema” que permitiria todos os perigos, da imigração ao crime. Mera demagogia no estado puro, o facto é que tem sucesso, que pode ser medido pelo facto espantoso de as grosserias do candidato jogarem sempre a seu favor.

 

A segunda consequência radicaliza uma evolução anterior. Ao longo dos últimos 15 anos, os republicanos têm preponderado entre os eleitores brancos sem formação universitária, os mais pobres, o maior contingente eleitoral nos EUA. Entre esses, Trump arrasará com 59% a 30% de Clinton, segundo as sondagens. O anterior candidato republicano, Romney, já ganhou a Obama por 57% a 35% nessa fatia eleitoral, mas, ao aumentar esta diferença de 22% para uma vantagem espantosa de 30%, Trump poderia assegurar a vitória se assim anulasse a diferença nos outros eleitorados (entre os brancos com formação universitária, Clinton poderia ter 47% contra 43%, entre os hispânicos 75% a 20% e entre os negros 82% a 6%). A dúvida é se esta parte da população vota em número suficiente, dado que a sua participação tem vindo a decrescer. Assim sendo, a estratégia eleitoral de Trump faz sentido: ele só poderia ganhar com os votos dos desesperados e é para eles que fala. Essa parte do país despreza Washington, imagina um passado perdido e espera agora um aurora redentora, o que Trump representa na sua pose pomposa. A violência do discurso serve este único propósito, mobilizar os esperam um super-herói para bombardear os seus males.

 

Volto então à minha pergunta: é isto extravagante, um pistoleiro à conquista da Casa Branca? Seria fácil de mais. Trump é uma trombeta do que vamos ter e é mesmo isso: o preço da globalização é a desagregação democrática e esta é a hora dos farsantes que se anunciam como cavaleiros do apocalipse. Teremos guerra civil no partido republicano, quer ganhe quer perca Trump, falecerão os tratados internacionais para o comércio, mas o que ficará será sempre isto: acabou a globalização feliz e abriu-se o cortinado sobre os escombros por detrás do palco. O século XXI será o tempo dos Trumps.