Lisboa - Luaty Beirão, o rapper e activista luso-angolano condenado a cinco anos e meio de prisão por rebelião e falsificação de documentos, transformou os seus diários de prisão num livro onde agradece a José Eduardo dos Santos.

Fonte: Negocios

Batista, Randy Orton, Ray Misterio e Shawn Michaels, lutadores que fazem parte da galeria dos notáveis do wrestling, um desporto de combate norte-americano que combina luta com representação, estiveram presos com Luaty Beirão, na qualidade de capa de um caderno de escolar de 80 páginas que lhe foi fornecido pela psicóloga-chefe da cadeia de Calomboloca, para registar as sessões entre ambos que nunca chegaram a acontecer.


Luaty Beirão chamou-lhe o caderno 3 e conjuntamente com o caderno 1 são partes do livro "Sou eu mais livre, então – diário de um preso político angolano" editado pela Tinta da China, cujo lançamento oficial é feito esta quarta-feira, dia 30 de Novembro, no Teatro Cinearte, em Lisboa. O caderno 2 ficou na posse dos responsáveis prisionais e nunca lhe foi devolvido. Além do diário, o livro inclui uma entrevista que lhe foi feita por Carlos Vaz Marques.


Baptista, Orton, Misterio e Shwan Michaels, nos seus exageros cénicos, são arquétipos da violência desproporcionada e da capacidade fantasiosa das autoridades angolanas, capazes de vislumbrar em 17 pessoas juntas, a lerem o livro de Gene Sharp, "Da Ditadura à Democracia", os arquitectos de um golpe de Estado.


Henrique Luaty da Silva Beirão, um rapper luso-angolano nascido a 19 de Novembro de 1981, transformou-se assim em símbolo da luta contra o regime angolano a partir de Junho de 2015, momento em que foi detido por alegadamente estar a preparar uma rebelião e um atentado contra o presidente do país, José Eduardo dos Santos. Luaty e outros 16 activistas foram presos e libertados um ano depois, a 29 de Junho de 2016. Pelo caminho, Luaty Beirão protagonizou uma greve da fome de 36 dias que colocou o seu caso e dos outros activistas nas bocas do mundo.

 

A 28 Março deste ano, o rapper e outros 16 activistas conheceram a sua sentença. Luaty foi condenado a cinco anos e meio de prisão por rebelião e falsificação de documentos, encontrando-se em liberdade condicional.

 

Luaty tem consciência do impacto da sua detenção pouco depois de chegar a Calomboloca, prisão localizada na província do Bengo a 70 quilómetros da capital do país, Luanda. É por isso que anota no diário, sem saber qual delas "soará melhor", duas frases com o mesmo conteúdo: "há momentos em que somos mais úteis presos do que livres"; "há momentos em que somos mais úteis na prisão do que presos em liberdade".


A escrita deste diário "representou mais que uma distracção". Segundo o próprio "foi um autêntico escape, uma fuga daquele espaço contíguo, a abstracção de tudo o que estava errado e a viagem pelos mundos imaginários, criados por artistas de pluma e da alma, ajudando a passar o tempo mas também a relativizar todo o sofrimento ao qual fomos sujeitos, a manter-me optimista".


Luaty foi anotando o seu dia-a-dia na cadeia, as conversas com os responsáveis do estabelecimento prisional, as leituras que a conta-gotas lhe eram permitidas, as visitas de familiares e amigos, os pormenores da sua alimentação, as suas reivindicações e as reflexões. "Aqui dentro é necessário blindarmos os nossos cérebros para sobrevivermos", constata.


Tratado sobre o perdão


No caderno 3, Luaty faz o esboço de um "tratado sobre o perdão" para um povo que deseja "apenas viver e, paz e harmonia" e para "enviar um sinal de tranquilização para as muitas almas que si inquietam pelos seus futuros quando deixarem de ter influência (ilícita) sobre os actores do poder público e se operar a tão almejada e completa separação de poderes".


E continua. "O perdão, no entender de quem subscrever estes argumentos, não deve ser incondicional. É preciso saber o que se perdoa e isso pressupõe confissão, um acto que aqui deve ser entendido como nobre e patriótico, pois é do futuro das gerações vindouras que se trata. E para se atingir a verdadeira paz é preciso, necessário, essencial, purgar os rancores que carregamos nos nossos corações".


O activismo anti-regime de Luaty Beirão também foi tido como impressivo à luz da sua história familiar. O rapper é filho do já falecido João Beirão, uma figura próxima do regime, que foi fundador e primeiro presidente da Fundação Eduardo dos Santos. O rompimento é explicado por Luaty no esboço de uma letra "Carta a um pai que já se foi". "Num país que se fundou na promiscuidade,/num empilhar de erros cometidos para encobrir os anteriores,/tornando todos cúmplices,/um crime colectivo./Ser competente e discreto é um binómio impossível/e essa constatação era-te insuportável/pois cada vez mais tinhas de te comprometer com algo em que,/parece-me, tinhas deixado de acreditar".


Na entrevista com que termina o livro, Carlos Vaz Marques pergunta-lhe: sente-se um herói? A resposta surge em forma de negativa. "Não. Eh pá. Não me sinto herói nenhum. Como disse, só estava a fazer aquilo que era a minha convicção. (…) Tenho uma frase numa música onde digo que os heróis estão mortos. Eu gosto de estar vivo, só odeio estar calado. É o que digo".


O rapper, numa nota carregada de ironia, agradece a sua metamorfose ao presidente da República de Angola. "A José Eduardo dos Santos, por ter propiciado a minha passagem de irreverente malcriado a ícone da juventude. O kota foi o artesão de ambas as correntes de opinião. Sem a sua acção não haveria livro, a minha história seria muito banal".


Questionado sobre a possibilidade de usar a sua notoriedade política para formar um partido, Luaty Beirão coloca esse cenário "completamente de parte". "Depois de sairmos da prisão, já me sugeriram essa ideia umas 1500 vezes. Não me agrada minimamente. Pode ser que mude de ideias mais para a frente mas para já, não".


O combate de Luaty Beirão centra-se, nas palavras do próprio, num conceito mais simples: "no meu entender, tudo o que faço é reclamar o meu espaço enquanto cidadão".