Luanda - Garanto que não sou um tipo influenciável. Nem figuro entre os compatriotas que, volta e meia, juram a pés juntos terem os telefones grampeados. Chego mesmo a pensar que todo esse ambiente de suspeições à volta das comunicações telefónicas terá muito mais de paranoico do que outra coisa. Confesso, porém, que por estes dias me sinto seriamente tentado a rever tudo o que penso sobre esse assunto assaz polémico.

D E    V O L T A     À    P R A GA ?

Fonte: SA

A última quinta-feira, 05, foi um dia estranho para a minha esposa e eu, no que diz respeito ao uso do telefone. Interferências e cruzamentos de linha são coisas vulgares entre nós. Mas assevero-vos que nesse dia passou-se das marcas. As comunicações em minha casa estiveram realmente horríveis, quase impraticáveis.


Coincidentemente ou não, na véspera dessa 5ª feira aziaga, eu havia postado mais um material referente ao Semanário Angolense (SA), e a propósito disso mesmo, não me coíbo de pensar que tais escritos estejam a ser marcados rudemente a vermelho (e o mesmo é dizer classificados como «material subversivo») pelos habituais e zelosos guardiães do regime.


Não é tudo. Olhando pelo retrovisor, há um outro episódio que também serve para adensar as minhas suspeitas. No mês passado, o meu carro foi alvo de um incidente a todos os títulos suspeito. Arrancaram-lhe o mecanismo de fecho manual da porta do lado do «pendura». O inusitado é que esse amigo do alheio, ou quem quer que seja, só tratou de levar o canhão com a ranhura por onde se introduz a chave. Tudo o resto no interior da viatura foi deixado intacto. O homem – ou os homens, sei lá! – não levou nada. Nem os CD’s, que geralmente transporto aos quilos, nem dois macacos e uma bateria que lá se encontravam à disposição do meliante. E sabem todos os utentes de automóveis como os preços das baterias estiveram quase a atingir o Evereste...


Em face de tudo isso, dou comigo agora a pensar com os meus botões que é bem provável que os meus patrícios estejam cobertos de razão: pode haver realmente um «Big Brother» a devassar as nossas comunicações (telefónicas e electrónicas). Se é que esse «Grande Irmão» não esteja também a vigiar os nossos movimentos.


Diante do burburinho que ciclicamente se tem levantado sobre o assunto, acho que já era altura de quem de direito avançar uma explicação, pública e oficial, que pudesse tranquilizar os espíritos. Por exemplo, o ministro das Telecomunicações e Tecnologias de Informação, tem desperdiçado algumas oportunidades de fazê-lo. Nas aparições de Carvalho da Rocha à imprensa, esse assunto nem ao de leve é abordado, continuando a deixar-se as pessoas a tactearem e a dispararem no escuro.

PELO RETROVISOR DO SEMANÁRIO ANGOLENSE


Investigando a questão das escutas no país, o mais longe que se foi nessa matéria pode ser encontrado na edição nº 216 do Semanário Angolense (SA), em Junho de 2007. Estávamos a um ano das tão aguardadas eleições de 2008 e, por essa altura, crescia o «disse-me-disse» sobre as escutas telefónicas, tão susceptíveis de ocorrerem em períodos de antecâmara eleitoral.


Na ocasião, o «SA» tentou obter uma posição oficial por parte dos órgãos com uma palavra sobre o assunto, nomeadamente os serviços secretos, ou os que estejam nas cercanias. Essa «démarche» não foi bem-sucedida.


Contudo, a título informal, foi possível saber, de fontes da comunidade de inteligência (SINFO e SIE, sobretudo), que a legislação sobre as escutas no país não é omissa. A lei, segundo disseram, autoriza a prática de escutas telefónicas, em demandas judiciais, mas liminarmente está descartada a probabilidade de uma prática generalizada e massiva de escutas a cidadãos orientadas pelo Estado.


As fontes consideraram que tal era tecnicamente impossível: «rigorosa e tecnicamente, não é possível pôr, simultaneamente, sob escuta telefónica, um número elevado de suspeitos. Aliás, nenhum serviço [secreto] sério faria isso, pois as escutas não devem e nem podem constituir a regra operativa para investigar suspeitos».


Segundo as fontes, do lado dos serviços secretos, isso era impossível porque as escutas telefónicas massivas exigem conexões por fio com as operadoras. «Os órgãos do nosso sistema de “intelligence” não usam meios de escuta do sistema GSM e digital. E por lado das operadoras, também podemos dizer que elas jamais aceitariam, sobretudo a UNITEL, pois os donos temeriam ser os primeiros alvos destas escutas.»

 

A única legislação sobre a matéria das escutas no país encontra-se plasmada na Lei Sobre Segurança Nacional (Lei nº 12/02 de 16 de Agosto). Sob a epígrafe «Controlo de Comunicações», esse dispositivo confere competência para autorizar a escuta a um juiz, tal como acontece na generalidade dos Estados de direito democrático. Promulgada em 2002, a referida lei veio em princípio pôr fim a uma velha celeuma, pois antes da sua vigência a competência para autorizar escutas recaía sobre o Procurador Geral da República.


MIALA: A BOLA DE NEVE


Apesar de terem descartado a prática de escutas generalizadas no país, as fontes do «SA» haviam admitido contudo a hipótese de círculos individuais do poder – e não o Estado enquanto tal –, agindo por iniciativa própria, disseminarem informações que alimentem nos cidadãos em geral um clima de medo aos telefones. Tudo no sentido de se obter um efeito de indução psicológica para manietar adversários políticos, principalmente, ou mesmo cidadãos de um modo geral descontentes com a governação do país.


«Tratando-se de uma sociedade com acentuado nível de ignorância como a nossa, diante da disseminação de informações sobre escutas telefónicas, as pessoas entram em pânico e acontece uma retracção em termos de liberdade de pensamento e de expressão», garantiu uma das fontes, acrescentando: «Com a sensação de que estão sob vigilância, os cidadãos tornam-se cautelosos e pensam duas vezes antes de se envolverem em reivindicações sociais ou políticas.»


A verdade é que todo o clima de medo aos telefones começou pouco depois do processo de julgamento e condenação de Fernando Garcia Miala. Durante o mandato do ex-chefe do SIE, segundo revelaram as fontes, terá existido vigilância externa por satélite destinada a dar caça a Jonas Savimbi. O SIE terá adquirido um equipamento que possibilitou a localização e consequente morte do líder da UNITA em Fevereiro de 2002.


Alega-se que foi exactamente esse equipamento que terá servido a Fernando Garcia Miala para denunciar e apanhar o antigo secretário do Conselho de Ministros Toninho Van-Dúnem, acusado de envolvimento em tráfico de influência e outras manigâncias por altura da negociação do primeiro pacote de crédito chinês ao nosso país.


Ironicamente, mais tarde, os adversários de Miala viraram o jogo usando exactamente o referido equipamento de vigilância como «meio de prova» contra o antigo patrão da secreta angolana e seus pares. Recorde-se que nessa purga contra os «mialistas», uma das acusações esgrimidas foi uma suposta realização, pelo SIE, de investigação secreta contra membros do Governo e da Presidência da República.


É com essa moldura de fundo que resolvo trazer novamente à tona as duas notas que abriam e fechavam o dossier sobre as escutas telefónicas, publicadas pelo Semanário Angolense em Junho de 2007. Na verdade, não fazem luz sobre um assunto que, dez anos depois, continua bastante nebuloso. Mas os questionamentos levantados continuam a ter validade.


*Publicado pelo SEMANÁRIO Nº 216 | 02 A 09 DE JUNHO DE 2007