Lisboa - José Eduardo dos Santos tinha trinta e sete anos quando chegou ao poder. Trinta e sete anos depois, anunciou que não vai ser candidato às próximas eleições presidenciais. O futuro de Angola é uma grande incógnita

 

*Gustavo Costa & Alex Gozblau
Fonte: Expresso

 Antes de ter franqueado as portas do Futungo de Belas — o antigo Palácio Presidencial em Angola —, a 21 de setembro de 1979, na sequência da morte de Agostinho Neto, nunca fora reconhecido como fazendo parte de “A Gloriosa Família”.

Mas que família é esta, afinal?

É “A Gloriosa Família” que, ficcionada pelo escritor Artur Pestana Pepetela numa das suas obras de maior fôlego literário, descreve a chegada a Angola, no século XVII, de um Van Dum e as peripécias que, a partir de uma escravaria detida no Bengo pelo flamengo Baltasar Van Dum — um dos mercadores mais ricos de Luanda —, haveriam de dar lugar ao nascimento e à multiplicação dos novos descendentes indígenas de origem holandesa.

 

Regressado a Luanda em 1975, após 14 anos de luta armada anticolonial, nem mesmo depois de ter sido acolhido em casa por Aristides Pereira dos Santos Van Dunem — antigo preso político e seu primo — José Eduardo dos Santos seria reconhecido e integrado naquele clã. “Era pobre, não nascera no asfalto nem convivera com os portugueses da baixa e, por isso, sem interesses que não fosse a amizade, só a malta do bairro lidava com a sua família”, conta um amigo de infância.

 

Tudo, porém, se alterou no dia da morte do seu pai, Avelino Eduardo dos Santos — um calceteiro da antiga Câmara Municipal de Luanda —, quando se ficou a saber que o seu avó paterno, Avelino Francisco Pereira dos Santos Van Dunem, afinal, também fazia parte de uma das mais emblemáticas e, ao mesmo tempo, controversas famílias de Angola. “Pensavam que eu não tivesse família? Eu também sou Van Dunem!” — desabafaria, semanas depois, a um dos colaboradores mais íntimos, José Eduardo dos Santos, uma das raras crianças negras que, na década de 50, frequentara o famoso Liceu Salvador Correia.

 

Seria, aliás, neste ambiente de aparente marginalização familiar que o avó paterno, em defesa da sua dignidade, terá recusado dar ao filho — o pai do atual Presidente angolano — o apelido Van Dunem. Um apelido que distingue uma das famílias que se no passado colonial fazia questão de ser portadora de uma cultura híbrida e de possuir o estatuto de “assimilada”, no presente, rapidamente se impôs como “historicamente das mais proeminentes e sobrerrepresentadas nas estruturas superiores do partido”, como assinala o investigador da Universidade de Oxford, Ricardo Soares de Oliveira, na sua obra “ Magnífica e Miserável — Angola desde a Guerra Civil”.

 

“Na nossa família sempre tivemos de tudo: intelectuais, altos funcionários públicos, analfabetos, colaboradores da PIDE e até putas”, confessava, em 1958, o velho José Manuel dos Santos Torres, à chegada a Lisboa, do seu sobrinho, Ruy Alberto Vieira Dias Mingas, autor da música do hino de Angola e cuja família materna — Vieira Dias — se entrelaça também com os Van Dunens.

 

No Sambizanga, um musseque como tantos outros, sem água e sem luz, as agruras e a discriminação impostas pelo sistema colonial faziam da humildade, da modéstia e da vontade de lutar e de vencer a arma de afirmação de homens simples como José Eduardo dos Santos.

 

O homem que, sem nunca ter sonhado que um dia poderia vir a ser Presidente de Angola, após a independência, palmilha as ruas de Luanda de sandálias e meias ou faz-se conduzir, sem guarda-costas, num Renault 18. “Como ministro era, muitas vezes, o primeiro a chegar à sede do Ministério das Relações Exteriores”, recorda Telmo de Almeida, antigo embaixador de Angola em Itália.

 

A inesperada morte de Agostinho Neto, a 10 de setembro de 1979, apanha-o desprevenido e mergulha o MPLA num processo de difícil sucessão em que a primeira escolha nem sequer recai na sua figura. Catapultado para o centro do poder, José Eduardo dos Santos é visto por alguns quadros afetos ao MPLA como Rogério Silva, como “o homem que, desde o princípio, soube manter a estabilidade institucional e governativa e, anos mais tarde, soube priorizar as soluções políticas em detrimento das opções militaristas, evitando, em 2002, a mortandade da cúpula da UNITA”.

 

Um ano antes de Eduardo dos Santos ter ascendido à Presidência, Lopo do Nascimento, o único civil oriundo do interior que integrava o bureau político do MPLA, acusado de ser “pró-cubano”, vítima de intriga fomentada pela DISA — a então polícia secreta do regime de Luanda —, é exonerado do cargo de primeiro-ministro. “Os maquisards, com esta jogada, afastavam a hipótese de alguém do interior poder vir a substituir Agostinho Neto”, recorda um antigo dirigente do MPLA.

 

“Fomos aconselhados pelos argelinos e também pelo Presidente Marien N’Gouabi, do Congo-Brazzaville, a não escolher nem um militar nem um mestiço”, acrescenta outro veterano da guerra anticolonial.


Conhecedores profundos da deterioração irreversível do estado de saúde de Agostinho Neto, os cubanos, que haviam destacado para Luanda um médico para o assistir, em tempo oportuno, advertem o MPLA para a necessidade de irem preparando a sua sucessão. Luanda ignora os avisos de Cuba e, em reação, Fidel e Raúl Castro, primaram pela ausência no funeral de Agostinho Neto, enviando um homem da segunda linha — o comandante (mestiço) Juan de Almeida.

 

Apercebendo-se da delicadeza da situação, apôs ter tomado posse como novo Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, numa das suas primeiras decisões, envia uma delegação do MPLA de alto nível a Havana chefiada por Lúcio Lara para desfazer o equívoco junto do Governo cubano. “Apesar disso, nem sequer fomos recebidos por Fidel Castro”, lembra Lopo do Nascimento, que integrava a delegação.

 

Com o advento de uma nova era, Eduardo dos Santos, aos 37 anos, inicia a construção do seu poder, mantendo-se, numa primeira fase, aparentemente fiel ao legado de Agostinho Neto. Com “paciência de chinês”, soube suportar a pressão daqueles que lhe exigem que “não desviasse uma vírgula sequer” do pensamento político do finado líder. Na linha da frente desta pressão figuram antigos enfermeiros e alguns combatentes originários de Catete — a terra natal do primeiro Presidente de Angola.

 

Com pinças, investe-se de “poderes especiais”, impõe lentamente a sua autoridade e verga, aos seus pés, a máquina do MPLA. “Eduardo dos Santos soube desembaraçar-se de mansinho de uma herança que era adversa à sua estratégia”, diz o jornalista Victor Aleixo.

 

Reservado e subestimado por aqueles que detinham uma poderosa influência no reinado de Agostinho Neto, este engenheiro de petróleos, licenciado na capital do Azerbaijão, Baku, e casado com a ucraniana Tatiana Kukanova, mãe da filha mais velha, Isabel dos Santos, aos poucos acabou por fazer o seu próprio percurso. “A sua afirmação e o ‘eduardismo’ que se lhe seguiu, só foi possível graças a uma purga, que substituiu as lealdades a Agostinho Neto por lealdades em torno da sua figura”, escreve o comentador político e professor universitário, Ismael Mateus.

 

Antes de morrer, Agostinho Neto desdobra-se em diversas iniciativas diplomáticas para pôr fim à guerra. Contra a vontade da direção do MPLA vai a Kinshasa e convence Mobutu Sese Seko a cessar o apoio que então prestava, a norte, à FNLA, liderada por Holden Roberto. Em simultâneo — ao propor a criação de uma zona-tampão na fronteira com o antigo território do Sudoeste africano —, lança as bases para um entendimento com o regime do apartheid, cujas tropas haviam invadido o sul de Angola, passando a constituir a principal base de apoio logístico à guerrilha da UNITA de Jonas Savimbi.

 

A partir de 1984 — reconhece na época Lopo do Nascimento, então ministro do Comércio Externo e do Plano — “com a invasão sul-africana de 1981 e a generalização de ataques e sabotagens a objetivos económicos, a deterioração dos termos de troca, a falta de quadros, nomeadamente ao nível da gestão e da execução, a situação económica e financeira piorava de ano para ano”. Era um tempo em que, sublinha Ricardo Soares de Oliveira na sua investigação, “o Estado manteve-se ausente da vida de muitos angolanos” e “grande parte da administração pública era incapaz de executar tarefas elementares e a cobertura do território fora das cidades era praticamente nula”.

 

Era o tempo em que a inocência de uma caricatura, glosando a figura de Eduardo dos Santos, transformara o “caso do quadro” num verdadeiro “furacão” político. Um caso provocado por uma intriga fomentada pelo oportunismo dos “esqueletos saídos do armário” de Agostinho Neto, que pretendiam estender a onda de vassalagem ao novo líder e, desta forma, manter a aura de influência sobre os destinos do país. O tiro, porém, sai-lhes pela culatra. Conseguem o afastamento e, até, a detenção, em 1982, de alguns dirigentes e responsáveis do MPLA, que se afirmavam então como defensores de ideais da esquerda.

 

Ambrósio Lukoki, secretário da esfera ideológica do MPLA, hoje opositor de Eduardo dos Santos, Ruth Lara, mulher de Lúcio Lara e, à época, diretora dos quadros, Luzia Sebastião, atual juíza do Tribunal Constitucional, e Nene Pizarro, hoje advogado e antigo membro do departamento de educação política, foram então afastados. Pior sorte tiveram Raul Araújo, hoje juiz do Tribunal Constitucional, Costa Andrade “N’Dunduma”, antigo diretor do “Jornal de Angola”, e Rui Galhanas, autor da famosa caricatura cujo destino foram os calabouços da polícia secreta do regime.

 

O caso acabaria por servir de pretexto para o Presidente angolano limpar o caminho, isolar-se, resolver alguns problemas pendentes com o passado de Neto e impor o seu poder com um autoritarismo refinado mas implacável. “Nunca mais ninguém o segurou!”, diz um antigo quadro da sede do MPLA, o epicentro da pequena purga política e ideológica, levada a cabo em algumas das suas estruturas.

 

Remetido a “Cem Anos de Solidão”, no seu bunker, no Futungo de Belas, o Presidente angolano enfrentaria, em simultâneo, um país agonizado por uma guerra que, envolvendo sofisticados meios aéreos e terrestres, assumia contornos apocalípticos. “Não lhe era fácil conduzir uma guerra que lhe fugia aos pés perante a aparente superioridade do exército invasor da África do Sul”, recorda um antigo oficial angolano da área do reconhecimento militar.

A intervenção das forças cubanas ao lado das FAPLA — o antigo exército do MPLA — mudaria o curso da história ao ter permitido infligir, na célebre batalha do Cuito Cuanavale, uma pesada derrota às tropas do regime do apartheid. Foi essa batalha que acabaria por abrir as portas para a assinatura dos Acordos Tripartidos de Nova Iorque, ao determinar, a partir de 1989, a retirada de Angola do exército sul-africano e o regresso a Havana das tropas cubanas, criando ao mesmo tempo as condições para a proclamação, em 1990, da independência da Namíbia.

 

Nascia aqui uma nova esperança para os angolanos verem cicatrizadas as feridas que começaram a gangrenar o país ainda em janeiro de 1975, durante a primeira tentativa de formação de um governo de transição, que começou a mergulhar Angola no caos e numa guerra civil que só 15 anos depois teria um curto intervalo, entre 1990 e 1992. “Sonhávamos a partir daqui com a paz definitiva mas, no fundo, pela forma precipitada como aquela estava a ser imposta de fora passámos a estar muito céticos”, recorda um oficial na reserva da Força Aérea Angolana que esteve em Bicesse.

 

Este ceticismo ficou, desde logo, expresso no aperto de mão “frouxo e hesitante” trocado, em maio de 1991, pelo Presidente angolano e pelo líder da UNITA, Jonas Savimbi, na cerimónia de assinatura dos acordos de paz subscritos em Lisboa sob os auspícios dos Estados Unidos e da União Soviética e da mediação de Portugal. “Os portugueses queriam e conseguiram descalçar, à pressa, um sapato que lhes estava a apertar o pé”, diz um diplomata angolano.

 

Com o fim da guerra, José Eduardo dos Santos é obrigado a “engolir” algumas exigências da UNITA e a ceder à pressão internacional, aceitando submeter-se, pela primeira vez na história do MPLA, ao escrutínio eleitoral e a estar sob o “guarda-chuva” de um regime multipartidário. O MPLA, com uma governação desgastada, que já então sucumbia às delícias do poder da corrupção, teme o pior. Savimbi, “no auge do seu prestígio internacional” julga que a vitória é “uma mera formalidade”.

 

Ao abrir as portas ao capitalismo e ao ‘recauchutar’ a sua imagem com uma operação de cosmética magistralmente conduzida por especialistas brasileiros de marketing, José Eduardo dos Santos ‘pisca’ o olho ao Ocidente e acaba mais tarde por tirar partido dessa aproximação. “Ainda antes da abertura política, inspirados na experiência húngara, já tínhamos começado a ensaiar os primeiros passos conducentes à abertura económica, apostando no SEF — programa de Saneamento Económico-Financeiro”, disse ao Expresso Júlio Bessa, antigo ministro das Finanças que fez parte da equipa coordenadora daquele programa.

 

Mas pôr em prática este programa em 1987 tornou-se uma empreitada quase impossível. “O SEF não tinha ‘pernas para andar’, porque assentava em flagrantes contradições. Foi elaborado para introduzir uma lógica de funcionamento de uma economia de mercado quando os dirigentes ainda tinham o cérebro virado para a economia centralizada. Por outro lado, nunca aceitariam uma abertura económica se não fossem os principais beneficiários”, disse ao Expresso Justino Pinto de Andrade, líder do Bloco Democrático.

 

Incapaz de se desmilitarizar e de se adaptar à vivência democrática e pluralista, como antevira Joaquim Pinto de Andrade, antigo dirigente histórico do MPLA que se opunha ao poder absoluto de Agostinho Neto, a UNITA acabaria por desperdiçar uma oportunidade de ouro para, pela primeira vez, ser poder em Angola. “Savimbi perdeu a cabeça e ao enveredar pelo regresso à guerra, revelou não saber conviver com os valores democráticos”, lembrou Jacques dos Santos, escritor e antigo deputado do MPLA.

 

O Presidente angolano, neste novo cenário, é obrigado a tomar a iniciativa do jogo para fazer face à ocupação pelos rebeldes da UNITA de 80% do território nacional, incluindo as zonas diamantíferas das Lundas. A “guerra pela paz”, proclamada em dezembro de 1998, acabaria por ser a ordem de comando dada por Eduardo dos Santos às forças governamentais para se libertarem do aniquilamento então imposto pelas tropas de Jonas Savimbi, depois de estas terem sido armadas por mercenários ucranianos.

 

Seriam necessários, porém, mais quatro anos para que as Forças Armadas Angolanas (FAA) conseguissem destruir por completo a máquina militar da UNITA, numa operação que tendo recebido o apoio dos serviços de informações israelitas, culminaria, a 22 de fevereiro de 2002, com a morte do seu líder, Jonas Savimbi. Como contrapartida, os israelitas foram recompensados com o seu envolvimento em empreendimentos agrícolas de ruinoso desfecho para o Estado, que só no projeto “Aldeia Nova” na antiga Vila da Cela desperdiçou mais de 150 milhões de dólares.

 

Melhor sorte tiveram os traficantes de armas e negociantes de diamantes, como Arcadi Gaydamak e Lev Leviev que, ao terem trazido para Angola agentes dos serviços secretos de Israel — a Mossad —, aos poucos se transformaram nos novos e decisivos aliados de Eduardo dos Santos na guerra contra a UNITA. Arquitetando negócios de dimensão estratosférica, acabaram por se converter no sinónimo do próprio poder presidencial.
Ao terem montado um intricado esquema monopolista de venda de pedras preciosas com a criação da Ascorp, transformaram Isabel dos Santos, na nova “princesa de Angola”.

 

Tudo graças “à mais destrutiva de todas as guerras em termos humanos e materiais, que Angola conheceu no último meio século” — como reconheceu então o chefe do Estado-maior das FAA, general João de Matos. Afastado destas funções antes do eclipse total de Jonas Savimbi, este homem, tido como o estratego militar que quebrou “a espinha dorsal” da UNITA, mantém hoje “uma relação cinicamente cordial” com José Eduardo dos Santos.

 

Com a rendição dos rebeldes e o advento da paz a 2 de abril de 2002, o Presidente angolano herda um país de rastos. Com o fim da guerra, é idolatrado como o “arquiteto da paz” e imprime uma velocidade estonteante a um impressionante programa de reconstrução nacional.

 

Moldando o país à sua imagem, José Eduardo dos Santos ganha a guerra mas revela um notável espírito de moderação e de reconciliação ao recusar enveredar por “uma paz vingativa” contra a vontade dos ‘falcões’ do regime, sendo, por isso, elogiado pela comunidade internacional. Este gesto permite salvaguardar e conferir dignidade à família de Savimbi e assegurar a integração dos quadros da UNITA na vida pública angolana.

 

Luanda deixa aos poucos de ser uma cidade-Estado em tempo de guerra e passa a ser o centro do poder de onde irradiam “a moda, a cultura juvenil e novos hábitos de consumo”. Depois de o Ocidente lhe ter virado as costas, Angola recorreu à China e, graças à disponibilização de uma bilionária linha de crédito, começa a reerguer-se das cinzas. Sedenta de grandeza, com uma pujança económica espetacular, atrai o interesse de investidores de várias partes do mundo.

 

Luanda passa a estar pulverizada com construções modernas e arranha-céus que misturam a arquitetura ocidental com a asiática. A capital angolana tenta, em vão, converter-se num novo Dubai onde “ a maioria dos habitantes do interior aspira instalar-se”. O deslumbramento desta fantasia que se confunde com a terra prometida, perdura até ao momento em que a brutal baixa do preço do petróleo começa a destapar as fragilidades de uma economia assente em alicerces de barro.


A megalomania provocada pelo consumo da morfina petrolífera precipitaria loucuras como esta: a instalação de uma central térmica na Lunda-Sul, que gasta 300 mil litros de gasóleo por dia e cujo valor do custo, estimado em 40 milhões de dólares, dava para recuperar a barragem de Luachimo e ainda sobrava dinheiro!

 

Mas não é tudo. Nas novas centralidades urbanas de 18 a 22 andares, os elevadores já não funcionam e um pouco por todo o país foram construídos novos aeroportos que nunca receberam um avião enquanto que o cumprimento do horário dos comboios, que se movem ao passo de camaleão, “depende da boa ou má disposição do maquinista”...

 

Com o fim da abundância de outros tempos e com a ruína da Sonangol, o barco da prosperidade e do enriquecimento gratuito, foi-se afundando. Isabel dos Santos, a nova timoneira da petrolífera angolana, vai ao fundo do poço, vasculha as contas e não hesita em proceder, em praça pública, ao julgamento e condenação da gestão de Manuel Vicente. Acusada em vários círculos de estar “a cuspir no prato que lhe deu de comer”, não falta quem, agora, vá lembrando que “nada foi feito pelos anteriores presidentes do conselho de administração da Sonangol sem o consentimento do pai”. E há quem não esqueça de avisar que “Isabel dos Santos pode estar lá, também para apagar os vestígios que estão na origem da constituição da sua própria fortuna”.

 

Como um baralho de cartas a desmoronar-se, a Sonangol foi durante muito tempo, um dos principais instrumentos da estratégia de poder paralelo montada e controlada, há anos, com mão de ferro, por Eduardo dos Santos. Mas o paralelismo do poder ‘eduardista’ não se concentrou apenas na petrolífera angolana. Ao ter reconhecido publicamente que “ninguém vive do salário”, o Presidente deu luz verde ao recurso a expedientes paralelos para os funcionários do Estado puderem sobreviver e, em alguns casos, até florescer.

 

Sem nunca abrir mão do seu poder discricionário, continua a aperfeiçoar, com métodos cada vez mais sofisticados, um regime de repressão cinicamente suavizada. Subvertendo a natureza do Estado democrático e de direito que Angola diz ser, através de um acórdão do Tribunal Constitucional, não se esquece de mandar suspender o exercício da função nuclear do parlamento: fiscalizar os atos do governo...“E não nos esqueçamos também que açambarcou o poder da Procuradoria-Geral da República, que está sob a sua tutela direta”, diz um juiz do Ministério Público, que pediu anonimato.

 

Transformando a Sonangol num Estado paralelo dentro de outro Estado, o Presidente angolano, como descreve na sua obra o académico Ricardo Soares Oliveira, “enfraqueceu o funcionamento das instituições formais e facilitou a apropriação indevida de recursos públicos a uma dimensão épica”. Ao distribuir benesses a toda a gente, colocou sob a sua dependência governantes, generais, deputados, juízes, empresários, banqueiros, jornalistas e até políticos da oposição. “Comeu-nos a todos ao matabicho”, confessou ao Expresso, Paulo Lukamba “Gato”, alto dirigente da UNITA e um dos mais fervorosos opositores do regime de Luanda.

 

Trinta e sete anos depois de assumir o poder, José Eduardo dos Santos resolve agora passar o testemunho a uma geração que poderá vir a ser liderada por João Lourenço, o novo vice-presidente do MPLA, que promete vir a participar numa “corrida de estafeta 4x200”. Ao fazê-lo só agora, num contexto de acentuado desgaste da sua imagem, o Presidente, segundo alguns analistas, pode ter esticado em demasia a corda e, ao sair pela porta dos fundos, arrisca-se a não ser lembrado pelas melhores razões. “Deveria ter saído pouco tempo depois de ter sido alcançada a paz, pois, nessa altura tinha o maior capital político de sempre”, disse ao Expresso, Fernando Pacheco, coordenador do Observatório Político-Social de Angola (OPSA).“Quanto mais um dia se passa, menos um dia tem”, diz Carlos Frederico, um católico praticante.

 

Mas, como Pacheco e Frederico, muita gente deve ter ignorado que Eduardo dos Santos, à época, debatia-se com um dilema. Nunca, até então, havia sido eleito e não queria abandonar o poder sem provar o sabor da legitimidade sufragada pelas urnas.

 

Quando tudo se encaminhava para que fosse aprovado um projeto de constituição de cariz semipresidencialista que até era favorável à UNITA, a oposição abandonou o debate.“Esse abandono foi-lhe fatal”, diz João Melo, escritor e deputado do MPLA. Ao ter sofrido, em 2008, uma humilhante derrota nas urnas, a UNITA foi obrigada a aceitar que o mandato de Eduardo dos Santos, como Presidente constitucional, se prolongasse até 2010.

 

Este acabaria por ser, aliás, o ano em que, aprovada uma nova Constituição (à medida de Eduardo dos Santos) com a maioria de votos do MPLA, o líder angolano transformar-se-ia, a partir de 2012, em dono e senhor absoluto do poder em Angola.

 

Agora, a decisão está tomada. Saída do seio da família, contra a vontade de algumas vozes, Ana Paula dos Santos, a mulher com quem, há 25 anos, José Eduardo dos Santos celebrou matrimónio em parte também para satisfazer a Igreja Católica, foi perentória: “É hora de ele se dedicar à família.”

 

Decisão problemática para aqueles que, tendo vivido ao longo de anos sob a sombra do poder presidencial, temem agora pela perda das sobras do banquete. Não espanta, assim, que muitos governadores provinciais, novos ativistas políticos, alguns brancos e mestiços revelem orfandade ante a recusa de Eduardo dos Santos voltar a candidatar-se às próximas eleições. Em resposta, o “chefe”, como é venerado, não poderia ter sido mais claro na última reunião do comité central do MPLA: “O homem nasce, cresce e morre. A mesma capacidade que eu tinha para reunir durante seis a sete horas seguidas, chegou ao fim...”

 

A desilusão foi total mas tendo Eduardo dos Santos reconhecido ter atingido os limites das suas capacidades, agora já não pode recuar na sua decisão. “Os partidos que não se renovam, não só do ponto de vista geracional, mas do ponto de vista das ideias, desaparecem”, adverte Lopo do Nascimento, que, na década de 90, chegou a ser conselheiro especial do Presidente angolano.

 

A transição, depois do anúncio, ainda que envergonhado, da sua retirada da vida política ativa, ao ter provocado uma “descompressão geral” em muitos círculos da sociedade, passou agora a ocupar um lugar cimeiro na agenda política angolana. “Queremos uma transição transparente, ordenada e pacífica”, defende Alcides Sakala, dirigente da UNITA. “Com uma estratégia pessoalizada, a saída em cena de Eduardo dos Santos apanha agora a oposição completamente descalça”, disse ao Expresso, o ativista Rafael Marques.

 

Estando a transição a ser gerida com prudência, Lopo do Nascimento não tem dúvida de que “se as reformas não forem feitas dentro do MPLA, podem vir a ser feitas contra o MPLA”. E Ismael Mateus adverte: “Nenhuma transição poderá ser credível se não existirem sinais de mudança de paradigma, acabando com os crescentes esquemas de partidarização e de familiarização das redes de acumulação de capital e ocupação generalizada de posições de poder.”

 

Podendo vir a deter no futuro as rédeas do poder, o que se poderá esperar de João Lourenço, o eterno ‘delfim’ de José Eduardo dos Santos? Ao ter ‘empurrado com a barriga’ alguns temas fraturantes da vida política angolana, o Presidente vai colocar em cima da mesa do antigo comissário político das FAPLA, a resolução definitiva de dossiês como o ‘27 de Maio’ ou a corrupção.

Consegui-lo-á?

Justino Pinto de Andrade não acredita que se João Lourenço vier a ser Presidente faça o regime “abrir-se à democracia”. “Isso não está no ADN dos seus dirigentes. Trata-se de uma mudança geracional que não se traduzirá em mudança de cultura política”, afirma.

 

Já Fernando Pacheco, mesmo admitindo que poderemos estar diante de “uma evolução na continuidade”, acha que “pode ser muito importante para uma transição adequada e sem turbulência” mas, sem grandes esperanças, adverte que “só uma liderança posterior à de João Lourenço, poderá vir a provocar ruturas”.Até lá, José Eduardo dos Santos, continuará a ditar as regras dos jogos florais em que, por entre enigmas e mistérios, continua envolvida a rasura democrática que é Angola.