Luanda  - Figuras&Negócios - Abel Duere, você está radicado no Brasil há mais de trinta anos. Fale-nos da experiência de ter o corpo no Brasil e o coração em Angola, mais concretamente em Benguela, onde nasceu?

Abel Duerê - A vida proporcionou-me a possibilidade de viver em vários lugares como Angola, Portugal e Brasil e neste em algumas cidades como Rio de Janeiro, Salvador e agora em São Paulo. Com isso acabo me sentindo um cidadão do Mundo. O que não esqueço são as minhas raízes, o meu DNA. E isso sem dúvida só posso sentir infelizmente de longe, pois as minhas raízes, a minha essencia cultural, a minha alma está e sempre estará ligada a Benguela. Sinto muitas saudades da terra e do povo. Mas, por sorte, faço música africana do fundo da minha alma, o que me permite estar sempre ligado espiritualmente à minha terra.

*Jorge Eurico
Fonte: Figuras&Negócios

F&N - Que Angola tem dentro de si presentemente e o que faz para «exorcizar» a saudade da terra quando esta o assalta?
A.D - É muito difícil substituir os valores e sentimentos que me unem a Angola, pois tudo que me faz sentir angolano é incomparável. «Exorcizar» é um termo muito forte para poder praticar essa saudade. A sorte é que vivo num país onde o seu DNA se deve ao povo bantu que para aqui veio e foi responsável pela formação não só da História como também da sua cultura. Actualmente faço um trabalho de valorização e autoafirmação dessa História. Tenho feito muitas palestras em escolas dentro de um Projeto “Meu Brasil Africano” os e meus shows em teatros focam muito esse tema, o que me mantém muito ligado aos nossos valores.

 

F&N – Lembra-se do dia e ano em que desembarcou no Brasil e dos episódios que mais o marcaram quando desembarcou nesta terra, que é hoje a sua segunda pátria? Aliás, já agora o que o levou a optar pelo Brasil para viver?
A.D - Lembro-me perfeitamente. Mas antes de vir para cá, em 1978, vivi dois anos em Portugal. Saí de Angola em Outubro de 75 e também lembro-me perfeitamente por tudo que passei, causado pela guerra horrorosa que assolou a nossa terra. Vim viver no Brasil, pois nunca me adaptei em Portugal. Apesar de gostar de Portugal, é uma terra a que nunca me adaptei. O Brasil tem muito mais a nossa cara do que qualquer lugar do mundo. Foi talvez um jeito de amenizar a saudade. Depois o Brasil é uma terra em que se respira muita liberdade e eu já não consigo viver num País em que você não tem o Direito de se expressar.

 

F&N - Está a dizer que já não conseguiria viver em Angola?
A.D - Com o regime actual jamais. Mas Angola vai mudar, pois não temos mais espaço no Mundo hodierno para o autoritarismo. Gostaria muito que a Democracia fizesse parte da vida dos angolanos. Lutei muito para o fim da guerra. Fiz várias manifestações aqui no Brasil em frente ao consulado dos Estados Unidos contra o apoio que os americanos davam à guerra. Fiz um clipe onde denunciava os interesses da guerra. Fiz o hino das eleições... “Ei, ei, vamos mostrar ao mundo inteiro /Angola unida/ um povo livre e verdadeiro”.


F&N – O regime angolano é autoritário?
A.D - Eu pergunto-lhe: Como jornalista, você tem todo o Direito de se manifestar livremente contra as injustiças sociais tão grandes que vive o nosso povo? Ou é normal um País com tantos recursos o seu povo viver com tanta pobreza e muitos poucos terem tanto? Sei que há muitas injustiças no mundo, mas nossa terra é campeã.


F&N - Quais foram os episódios que mais o marcaram quando chegou ao Brasil e quantos anos tinham na altura?
A.D - Um dos episódios que marcou muito foi o meu encontro com a banda “Afra-Sound” que havia acabado de chegar ao Brasil. O nosso encontro foram maravilhoso. Naquela época eu tinha os meus 20 anos. Foi também o inicio da minha carreira musical. Quando cheguei ao Brasil o que me impressionou foi a grandeza e a beleza da cidade do Rio de Janeiro. A minha primeira ida ao “Cristo Redentor” e poder ver a cidade do Rio de Janeiro de cima foi marcante. Não esqueço tamanha beleza natural. Acabei por morar no Rio de Janeiro durante 38 anos. Há cinco anos mudei para Salvador e agora interior de São Paulo, onde moro com minha a família há um ano e meio. Mantenho minha ida ao Rio de quinze em quinze dias, onde tenho um Projeto Social de percussão no “Complexo da Maré” onde vivem cerca de 600 famílias angolanas.


F&N - Como se lembra da sua infância em Benguela? Conserva memórias da sua escola, colegas e amigos locais?
A.D - Quando cheguei ao Rio de Janeiro, em 1978, não me lembrava de quase nada. Sofri uma pequena amnésia emocional. Em 1992 voltei a Angola e tive a oportunidade de visitar Benguela. Andei pelas ruas a pé e foi como voltar no tempo. Relembrei de tudo do tempo de criança à adolescencia.

 

F&N - Visitou a escola onde estudou?
A.D - O primeiro colégio em que estudei, situava-se na rua Alexandre Herculano, N.º 55, perto do campo do Sporting onde jogava futebol de salão e muito os matraquilhos, da arvore com tambarinos que tinha perto de casa. Da igreja do Pópolo onde frequentava todos os domingos, depois o bairro “Feijão Mistura” onde foi minha segunda moradia, da Praia Morena... da Caotinha, do Alexandrino, praias maravilhosas de Benguela, dos passeios até ao Lobito e à Catumbela, enfim foi uma juventude repleta de emoções.

 

F&N - Quais foram figuras castiças que mais marcaram a sua infância?
A.D - A maior delas foi o Pepino, um grande corredor que acho que corre até hoje. O Miau, um grande jogador de basquete e que depois virou arbitro; os irmãos Sardinha, que jogavam, um no Sporting e outro no Portugal de Benguela; o padre Galiano da igreja do Pópolo; os Areia, famílias super tradicionais. Benguela sempre teve muitas figuras especiais.

 

F&N - Saiu de Angola em 1975 fugido da guerra. E os seus pais? Deixou-os em Benguela?
A.D - Em 1974, os meus irmãos sairam de Benguela. E eu fiquei com meus pais até 1975, mas a vida em Benguela ficou muito difícil. Ficamos sitiados e acabamos fugindo num barquinho de pesca que levou cerca de 1000 pessoas e com muita dificuldade conseguimos chegar a Luanda. Depois conseguimos ir para Portugal onde vivi com meus pais até 1978. Quando vim para o Brasil deixei os meus pais em Portugal e anos depois eles vieram morar comigo.

O meu pai já partiu, mas a minha mãe, de 92 anos, filha do Huambo, mora comigo. Eu cuido dela.


F&N – Hoje, passados estes anos todos, sente-se mais angolano ou mais brasileiro?
A.D . Nunca me senti brasileiro! Devo muito ao Brasil e aos brasileiros, que sempre me trataram e nunca me senti estrangeiro nesta terra e que me valorizam muito como artista, não só o povo como o próprio Ministério da Cultura do Brasil, que sempre valorizou e apoiou os meus projetos culturais. Mas, apesar de tudo, sempre me senti angolano, não só pelo que sou, mas também por tudo que tenho feito pela minha terra, cultura e povo. Tenho uma História muito rica em prol das minhas origens que talvez as pessoas na minha terra não tenham a menor ideia.

 

F&N - Que história é essa? Conte-nos um pouco dela.
A.D - Sei que deixei boas recordaçoes na época da guerra, nos anos 80, quando as minhas musicas inspiravam os jovens. Naquela época já fazia musica angolana contemporânea. Fui talvez o primeiro artista angolano a fazer música angolana Pop, Reggae (Kimbele) Kilapanga ( Mbemba, Ombaka) Semba ( Madalena, Galera). Vários artistas que hoje fazem sucesso me dizem: “cota Abel, inspirei-me muito em você.” Tenho histórias, aqui no Brasil, que Angola não conhece, como, por exemplo, os meus projetos culturais e sociais. O projeto com os angolanos da Maré é um deles. Desenvolvo projetos culturais de divulgação da nossa cultura como “Meu Semba, Teu Samba”, apoiado pelo Ministério da Cultura do Brasil, que me apoiou não só na produção do CD como também na tornê por várias cidades de São Paulo. O projeto de carnaval “Mwangolê”, em Salvador, o projeto “Ombaka DVD e shows”, o projeto nas escolas “Meu Brasil Africano”, enfim muitos anos divulgando as nossas riquezas culturais e o quanto o Brasil tem de Angola na sua História e Cultura.

 

F&N - Eem quê que consiste o projecto da Maré?
A.D - A Maré é o maior complexo de favelas do Rio de Janeiro. Lá vive a maior comunidade de angolanos no Brasil. Ali comecei com um projeto de Natal e depois uma escola de percussão (www.percurssaonamare.com.br) onde cerca de 60 crianças aprendem música com aulas teóricas e práticas. Ali se formam músicos prontos e temos uma orquesta de percussão . Actualmente temos 12 crianças que, na verdade, são filhos de angolanos, pois o projeto é para jovens de 12 a 18 anos . Os que nasceram em Angola mesmo são o cantor Nzagi e o seu irmão Elmer. O restante, como disse, são filhos de angolanos. O projeto atende angolanos e também as pessoas da comunidade

 

F&N - Ao longo do tempo que trabalha em prol da divugação da música angolana e da comunidade angolana aqui no Brasil, alguma vez teve o reconhecimento da Embaixada de Angola?
A.D - Nos anos 80 tive um grande amigo, consul e embaixador Ismael Dioga da Silva, que foi presidente da Fundação Eduardo dos Santos (FESA). Este deu-me muito apoio e fizemos muitas coisas juntos. Vou transcrever o trecho de uma carta que ele me deu junto com o Passaporte angolano que, na época, não tinha:

“29 de Março de 1994

Ao ilustre Abel Duere
O conhecimento profundo dos traços culturais dum povo, caracterisa o carisma, a paixão e a arte de saber ser transmissor oral da cultura desse povo. Mais do que uma prova retumbante é o fato de que o jovem Duere baniu barreiras tais como o preconceito racial, social e o espírito da civilização na segregaçãodo espaço territorial. É preciso garantir que a influência nativa, quando amada, serve de sustentáculo para reviver a História e os traços culturais e tribais de um povo. Às vezes faltam-nos palavras no momento certo, mas como deixamos transparecer através da emoção fica melhor porque no olhar brilhante manifestamos nossa alegria e gratidão pela obra que tem estado a erguer (a interpretação da História e dos valores culturais dum povo gigante neste planeta terra). Haja saúde, bem estar e acima de tudo devoção à causa dum povo sofrido, martirizado e dum país que o mundo ignora devido à axarcebação do preconceito racial e social. “Parabéns Abel Duere, força porque o caminho é para frente, vá buscar o futuro que te espera radiante”. Guardo essa carta até hoje. Mas confesso que foi o único que enxergou a minha arte, pois todos os outros que se seguiram conseguem ignorar toda a História de um artista que ama e faz tudo pela cultura do seu país.

F&N - Se tivesse que fazer um apelo ao Ministério da Cultura angolano o que diria?
A.D. - Sem dúvida nenhuma que um projeto em conjunto para as escolas seria muito oportuno. A História não nega que o povo bantu foi o grande responsável pela formação da História, cultura e até economia do Brasil. Naquela época não era Angola, mas é a grande maioria do povo que hoje compõe Angola. Vieram do reino de Ngola, Cabinda, Benguela e outros que hoje fazem parte dessa Grandiosa Nação, que é Angola. O povo brasileiro precisa saber disso e a escola é o melhor ponto de partida. Tenho tido respostas fantásticas das crianças. Esse Projeto educacional poderia ser feito em parceria com Angola.

 

F&N - As casas de Cultura de Angola no Rio de Janeiro e em Salvador têm contribuído para que se dê a conhecer a cultura do nosso país no Brasil?
A.D - Vivi três anos em Salvador e tinha uma relação fantástica com Dr. Camilo (Afonso), responsável pela casa de Cultura. Fizemos várias tentativas, pois a Casa de Cultura de Salvador tinha verba própria, mas ele sempre esbarrava na aprovação que tinha que vir da Embaixada, que nunca mexeu uma palha. Até conseguimos um ano um pequeno apoio para o trio eletrico Mwangolê, mas depois que liguei para Angola e falei com meu amigo Dr. Ismael Diogo presidente da FESA. Mas foi tanto desgaste tanta mendigagem que desisti. No Rio Casa de Cultura já dei conhecimento do meu trabalho ao novo cônsul, mas nunca fui lembrado nem nas festividades organizadas nos ultimos anos. Jorge (Eurico), há horas que acho que a minha côr não representa a grande maioria da nossa terra. E aí as pessoas acabam não olhando para a minha alma angolana. É como me sinto quando sou posto de lado. Repara que não cabe aqui nenhuma reclamação, pois é até natural na cabeça de muitos. O que, de certa forma, me conforta é que todos que me conhecem profundamente não cometem essa discriminação. Tenho a certeza absoluta que se a côr da minha pele transparecesse o quanto angolano eu sou, ajudaria bastante. Mas digo de novo não tenho qualquer problema sobre isso, é apenas um comentário. Pois nunca sofri nenhum preconceito mais diretamente. Amigo, faz parte da História e da ignorancia dos homens. Pior é o preconceito que os meus irmãos pretos sofreram e ainda sofrem. Comigo não seria diferente, só que ao contrário. Juro-te juro que acabo compreendendo um pouco, mas claro que sei que um dia isso vai passar.


F&N – Como fica a sua alma angolana diante disso?
A.D – Carente (risos)! Sinto-me só, abandonado. Mas logo depois por coincidencia vem alguma manifestação ou mensagem linda através do Facebook de irmãos angolanos que me consideram muito e vale como incentivo para continuar. Desiludi-me bastante confesso, pois teve hora que dava murro em ponta de faca e deixei a vida me levar.

 

F&N – É por isso que anda ausente do mercado musical angolano?
A.D. - Voce é muito observador (risos)... Juro, do fundo do coração, que nunca, do povo, tive alguma manifestação de racismo. Nunca mesmo até na época da guerra, sempre fui muito bem acolhido, inclusive pela classe artística que sempre me acolheu. Tenho muitos amigos em Angola.

 

F&N – Esta manifestação de racismo vem das instituições?
A.D. – Sempre! Olha que aqui no Brasil também já sofri preconceito, principalmente de produtores brancos que estão à frente de eventos afros e acham que eu, sendo branco, não posso representar com verdade a minha Pátria. Como te digo, é ignorância. Não é maldade. Já fui convidado, no Rio de Janeiro, para ser atração principal de um festival afro-época. O produtor artistico era, inclusive, meu fã e indicou-me como artista angolano. Mas depois acabaram desfazendo o convite. Em “off” esse meu amigo confessou-me que a direção do evento achava que eu não representava África. No Brasil muitos ainda têm ideia de uma África dos filmes de Tarzan. É preciso mudar essa visão.

 

F&N – O Brasil é um país racista?
A.D. – Muito! O bom é que agora existem leis muito severas para quem pratica o racismo, mas ainda está muito no subconsciente do brasileiro. Vai levar o seu tempo, algumas geraçoes. Já mudou muito desde que aqui cheguei. Graças às leis severas que punem quem pratica racismo.


F&N - De que forma a cultura pode ajudar a derrubar este tipo de preconceito?
A.D. - As pessoas não são mais tão burras a ponto de ainda pensarem que existe diferença só porque a pele é mais clara ou escura. O problema é a maldade. O que a cultura pode ajudar é, sim, mostrar e de onde vieram os nossos grandes valores de cultura. A música, a força, a garra, a fé e o swing vieram de onde? De África.... de Angola, Moçambique e tantos países africanos. É o que nos faz diferentes do resto do Mundo. Conheço o mundo, e se tivesse que escolher onde nascer de novo escolheria, sem dúvida, o meu País, Angola. Amo do jeito que só eu amo. Acho que sou muito especial e não tenho dúvidas que devo isso à minha ancestralidade. Quando vou para as escolas com meu projeto “Meu Brasil Africano”, mostro exatamente isso para as crianças. Pegunto se elas se acham parecidas com os argentinos, venezuelanos ou chilenos. O Brasil é diferente de todos, graças aos africanos que habitaram nesta terra de 1500 a 1800 cerca de oito milhoes e a grande maioria, 60%, era povo bantu.


F&N - A presença de África no Brasil está mais acentuada em Salvador, Rio de Janeiro, Minas Gerais e não noutras regiões...
A.D. - Salvador foi a primeira capital do Brasil. Foi lá em que tudo começou. Depois veio o Rio de Janeiro com as plantaçoes de cana de açucar e muitos africanos escravos sairam de Salvador para o Rio de Janeiro. Depois com a descoberta das minas de ouro, Minas Gerais. Por último São Paulo que na época explorava mão de obra indígena, mas com a descoberta das minas de ouro em Mato Grosso, São Paulo passou a ser rota. Aqui mesmo em Rio Claro, o primeiro senso feito em 1822, foi registado que os primeiros africanos que aqui habitaram vieram do reino de Cabinda, Congo e Benguela. O sul do Brasil foi desenvolvido muito depois e aí a emigração veio da Europa. Os negros sempre foram a grande maioria deste povo, então reconhecer a sua grandeza seria politicamente incorreto. Tanto que logo após a proclamação da República foram proibidos analfabetos e mulheres votarem, porque assim seria mais fácil manipular a política, pois a maioria dos negros, na época, não tinha acesso à Educação. E é exatamente sobre isso que o meu projeto (Meu Brasil Africano) fala nas escolas.

 

F&N – Por que o Brasil, hoje, parece ter mais afinidade com a Europa do que com África?
A.D. - O dinheiro move o mundo. O que é necessário é falar da História e mostrar a verdade. O brasileiro tem de reconhecer a sua afrodescendencia, independentemente da cor de cada um. Assim como nós, angolanos brancos, que vivemos os tempos coloniais, não queriam ser portugueses e sim angolanos, apesar de dizerem que a nossa pátria-mãe era Portugal. Nós nunca nos sentimos portugueses, pois como se falava naquela época ser do jeito português era “malaico”. Sempre me senti angolano, apesar de ter vivido no tempo colonial. E atenção: Quando em 1975 fui para Portugal, senti muito preconceito apesar de ser branco. Coisas da História (risos). Depois quando mostramos o nosso valor, os tugas passaram a respeitar-nos. O que muito ajudou foi, sem dúvidas, a música, o Merengue, o Semba e, por último, a Kizomba. A música é fantástica vence qualquer barreira, o desporto também.

 

F&N - Como é que os brasileiros encaram o estilo musical cultivado por si ao longo dos anos por cá?
A.D. – Encaram-no de forma diferente. Não é uma música fácil. Primeiro que o swing é, no contratempo, diferente da música ocidental. Depois eu quase sempre canto em líguas nacionais, Kimbundo, Umbundu, Kikongo e Lingala. Mas eu acabo envolvendo as pessoas de uma forma teatral e tenho um timbre que favorece. Sempre procuro fazer um show roteirizado, contando uma História, o que favorece. Por isso eu digo que meu trabalho é cultural e não comercial. Depois tudo tem uma explicaçaão. Eu canto Umbi-Umbi em língua nacional e um pouco em português e mostro como as línguas africanas são bonitas. Convido o público a cantar comigo. Aí já conquistei o público e tudo fica mais fácil. Contudo é um caminho difícil. Mas muito gratificante, pois só eu faço aqui no Brasil. Sou diferente, o que torna o trabalho especial e feito com muita alma e verdade. Isso cativa as pessoas.

 


F&N - Tem em forja algum disco para os próximos tempos?
A.D – Sim, estou a trabalhar num novo DVD do “Meu Brasil Africano” e já estou a preparar um novo trabalho “Sons de Ombaka”. Este trabalho estará pronto no próximo ano. As músicas já estão prontas, mas quero gravar o DVD ao vivo. Tenho o projeto aprovado no Ministério da Cultura (brasileiro). Neste momento estou em fase de captação de recursos. Deixa explicar-te como funciona: A gente faz um projeto que tem que ter um conteúdo bem cultural. Envia a planilha de custos e toda a trajetória que o projeto vai fazer. Depois é levada à aprovação de uma equipe do Ministério da Cultura que aprova ou não. Sendo aprovado, ele Ministério, dá-te um PRONAC, com o qual você procura a empresa que quer patrocinar. E o dinheiro é descontado do imposto que a empresa teria que pagar para o Governo. Todos os meus projetos têm sido financiado dessa forma. Tanto os meus projetos musicais como culturais têm o aval do Ministério da Cultura (brasileiro) que tem todo o interesse em projetos com bons conteúdos.

 

F&N – Por que os angolanos consomem mais música brasileira e o inverso não acontece?
A.D. – Simples! É tudo uma questão de mercado. E a música brasileira tem tido uma grande parceira de divulgação, que são a TV e as novelas. A novela adentra todos os dias na tua casa e impõe comportamentos, música, moda, enfim, tudo. Imagina se um dia minha música entra numa novela. Nos anos oitenta só porque ia ao programa da “Xuxa” toda a semana, tornei-me tão conhecido no Brasil assim como também em Angola. A minha música tocava em todas as rádios de Angola e quase todas as musicas. Hoje em dia faço música com muito mais qualidade, canto muito mais, pois aprimorei muito ao longo dos anos. Tenho um CD recente gravado “Meu Semba, Teu Samba”, os sembas gravei com a “Banda Maravilha” e, no entanto, não toco em nenhuma rádio angolana. Se eu estivesse fazendo programas de televisão, a minha música decerto tocaria. É uma questão de mídia.


F&N – O despertar para música foi consequência de um sonho ou foi um acaso?
A.D. – Sempre foi um sonho, desde criança. A minha mãe cantava o tempo todo. E a minha lavadeira, a Josefa, cantava directo em Umbundo. O filho da Josefa, por coincidencia, também se chamava Abel. Josefa falava muito comigo em Umbundu. Quando ia para casa, ela sempre despedia-se com um “lalipô”. Para mim a música e a minha africanidade vieram sempre de maneira natural... vivendo as coisas boas da vida, a praia, o futebol, o subir na arvore, o pegar a cana de açucar no Casseque e chupar, as festas com muito merengue e rebita, e principalmente partilhar tudo isso com amigos. É a vida!


F&N - Que informações dispõe hoje da música e dos músicos angolanos?
A.D. – Pouca, infelizmente. Pois o que me chega de novidade é o Kuduro e não é o estilo musical que me seduz. Adoro o semba bem tocado com muito swing da dicanza e para mim a grande referência ainda é a “Banda Maravilha”.


F&N - Estes anos todos de Brasil permitiram-lhe acumular riqueza e experiência culturais?
A.D. - Sim o Brasil e a sua música brasileira são muito ricos em harmonia. Tocar com músicos brasileiros sempre foi algo a mais. Sempre tive a oportunidade de ter, na minha equipa de músicos, grandes instrumentistas.

 

F&N – Que memórias tem hoje do hino feito por si, com a participação de muitos artistas brasileiros, às vesperas das primeiras eleições realizadas em Angola?
A.D. – Lembro-me como se fosse hoje. Compus a música, letra e música minhas em parceria com o meu percurssionista Zézé Mota, que infelizmente já partiu. Chamei Djavan, Martinho, Alcione e outro. Martinho e Djavan nem deram “bola”, mas Alcione prontificou-se de imediato. Alcione era novinha, magrinha. Até hoje ela me agradece. Mostrei a letra e a música ao meu amigo Ismael Diogo da Silva, o embaixador e cônsul de Angola no Brasil, na época. Ele queria usar na campanha eleitoral do MPLA e eu recusei-me vendê-la, pois eu tinha feito para Angola e não para o partido. Ele entendeu, mas quando o video chegou à TPA, acabou virando música de campanha do MPLA. Sei que ajudou bastante o MPLA nas eleiçoes legislativas de 1992. Coisas do destino. Mas fiquei muito feliz com o que o destino proporcionou. Nunca fui reconhecido por nenhum membro do Governo ou titular da Cultura. Mas o povo, esse sim, ele reconhece-me sempre que falo dessa música. Acho até que um dia deveria regravar, pois na época foi gravada de maneira muito simples. Mas acho que a mensagem era muito forte.