Lisboa - A Assembleia Nacional angolana está em vias de aprovar uma revisão do Código Penal de 1886, herdado do período colonial português, que vai proibir totalmente a interrupção voluntária da gravidez (IVG). A alteração, que prevê penas de quatro a dez anos de prisão, está a causar indignação entre as mulheres angolanas.

Fonte: Publico

Os contornos da nova lei, que deverá ir a votação final na próxima sessão plenária do parlamento angolano, prevista para 23 de Março, foram avançados pelo ministro da Justiça e Direitos Humanos de Angola, Rui Mangueira, na passada sexta-feira.

 

"Todas aquelas causas de exclusão da responsabilidade relativamente ao aborto foram expurgadas do código e nós, em princípio, deveremos olhar para o código, como tendo uma proibição absoluta relativamente ao aborto", disse o ministro no final das discussões na especialidade do novo Código Penal angolano, onde o perigo de vida para a mãe e os casos de violação deixam de ser circunstâncias atenuantes.

 

Desde então, um grupo de mulheres está a tentar fazer ouvir as suas vozes para travar esta alteração. São mulheres “que se mostraram indignadas face à votação do Parlamento, que não teve nenhum voto contra a penalização do aborto”, descreve ao PÚBLICO a fotógrafa luso-angolana Mónica Almeida, mulher do activista Luaty Beirão.

 

Para este sábado, em Luanda, a plataforma angolana Ondjango Feminista está a organizar uma Marcha das Mulheres pela Despenalização do Aborto. A marcha tem início no Cemitério da Santa Ana, simbolicamente escolhido para “homenagear todas as mulheres que morreram por conta dos abortos clandestinos”, e termina no Largo das Heroínas, um “marco histórico da luta das mulheres angolanas pela emancipação e dignidade”.


Contactada pelo PÚBLICO, a activista Âurea Mouzinho, do Ondjango Feminista, explica que a marcha, marcada em resposta às declarações do ministro Rui Mangueira, pretende assinalar que se trata de “um assunto sério, que merece consideração das bancadas parlamentares”. “Não se pode legislar sem ouvir as vozes das mulheres, não só as parlamentares mas as vozes da sociedade”, apela a activista.


Direitos das mulheres


No comunicado enviado ao PÚBLICO sobre esta Marcha das Mulheres, as organizadoras sublinham que a proibição total do aborto é “uma violação grosseira das garantias e postulados constantes do protocolo de Género e Desenvolvimento da SADC relativamente aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, do qual Angola é signatária e Estado parte”.

“Esta lei é um retrocesso”, sublinha Âurea Mouzinho.

A cantora e compositora Aline Frazão, membro do Ondjango Feminista, alerta para os efeitos que a alteração na lei poderá ter. “São as mulheres que vão ser obrigadas a terem um filho de uma violação, de um trauma, ou irem para a cadeia ou acabarem mortas num beco de abortos clandestinos”, descreve a artista ao PÚBLICO.

“É por isso que essa marcha é importante, existe ainda uma esperança de que esta lei seja travada. Essa transversalidade une as mulheres na mesma causa”, considera Aline Frazão, recordando, por exemplo, que até mesmo a empresária Isabel dos Santos se manifestou contra a nova lei.


Esta segunda-feira, a filha do Presidente angolano publicou no seu Instagram um texto da advogada Ana Paula Godinho, uma das vozes que se posicionaram contra a penalização do aborto, acompanhada de uma foto das costas de uma mulher onde tem pintadas as palavras “Sou Livre”.

“Uma posição nítida de Isabel dos Santos, sendo ela quem é, tem sempre um peso diferente da mesma opinião emitida por uma cidadã comum. Será uma grande aliada se marchar connosco”, convida Mónica Almeida. E acrescenta: “Esperamos que esta marcha sirva para que os poderes públicos percebam a importância do tema e que lhe dêem o tratamento digno que merece”.


Uma “sociedade profundamente conservadora”

Uma das dificuldades na luta contra a nova lei é, precisamente, convencer os angolanos a falar em nome das mulheres. “A sociedade angolana é profundamente conservadora, e qualquer debate sobre a sexualidade da mulher é tabu, mesmo questões como a maternidade e o direito ao aborto”, lamenta Aline Frazão. “É preciso naturalizar o debate, porque quando falamos do aborto estamos a falar do direito à vida - ou à morte - de milhares de mulheres”, conclui.

 

Âurea Mouzinho explica que o protesto de sábado chama-se “Marcha das Mulheres pela Despenalização do Aborto” precisamente por considerá-lo “um assunto de saúde pública que não pode ser tratado como um crime”, sendo por isso importante evitar que qualquer mulher ponha em risco a sua vida ao recorrer a meios ilegais para abortar.

 

“A nossa agenda é vista como subversiva, mas é um debate que não merece ser banalizado. Não é só um assunto de jovens que querem ser libertinas, é um assunto importante que penaliza as mulheres, e principalmente as mulheres em situação de pobreza”, comenta.

 

Num artigo de opinião publicado esta terça-feira, a compositora Aline Frazão sublinhou que a eventual aprovação da alteração legislativa decorre no “Março-Mulher”, um mês de datas simbólicas como o Dia da Mulher Angolana, a 2 de Março, e o Dia Internacional da Mulher, no dia 8.

 

A artista recorda dados da Organização Mundial de Saúde, que mostram que a cada ano 21,6 milhões de mulheres realizam abortos clandestinamente, sublinhando que "a criminalização do aborto é uma política machista, injusta e irresponsável".

 

"É quase uma sentença de morte, sobretudo, para as mulheres em situação de exclusão social", assevera.

 

Em Fevereiro, quando a Assembleia Nacional aprovou na generalidade a nova Lei do Código Penal, o diploma teve 125 votos a favor do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), nenhum voto contra e 36 abstenções das bancadas parlamentares da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), da Convergência Ampla de Salvação de Angola - Coligação Eleitoral (CASA-CE) e do Partido de Renovação Social (PRS).


Durante o debate, a deputada Mihaela Webba, da UNITA, ainda defendeu que a questão fosse retirada do diploma e que fosse realizado um referendo sobre o assunto, mas o partido acabou por se abster na votação.


“A aprovação desta lei, em pleno mês dedicado à mulher, deixa indignado o eleitorado feminino”, afirma ao PÚBLICO a cantora angolana. “Estamos em ano eleitoral e eles não vão querer aprovar uma lei impopular. Quanto mais ampla for a mobilização, mais a Assembleia Nacional terá que nos dar ouvidos”, sublinha.


Silêncios e esperança


As activistas contactadas pelo PÚBLICO são contidas nas expectativas de mobilização para a marcha deste sábado, mas mostram-se satisfeitas por conseguirem, aos poucos, acender o debate público sobre o assunto.


“Não é comum que os angolanos e angolanas se posicionem publicamente e em colectivo sobre os assuntos de interesse público. Se nós conseguirmos fazer com que as mulheres e os homens preocupados com os direitos das mulheres saiam de casa e marquem presença na marcha, será um marco relevante para nós”, aponta Mónica Almeida, comentando os objectivos da marcha.

 

Aline Frazão também reconhece que “existe um certo perigo em sair às ruas em Angola”, mas mostra-se satisfeita com as vozes que têm vindo a manifestar-se para colocar o assunto na agenda pública, no sentido de “enriquecer e informar o debate e, se possível, travar a lei”.


A cantora, que esta semana tinha chamado a atenção para o silêncio de muitos activistas pelos direitos humanos e opinion makers da sociedade angolana, mostrou-se satisfeita com as tomadas de posição que têm surgido. “Alguns são a favor da lei, outros são contra. O facto de algumas pessoas serem politicamente contra o regime não significa que elas sejam necessariamente progressistas morais ou preocupadas com os direitos das mulheres em Angola”, lamenta.


“Mas hoje percebi que há muita gente a apoiar esta causa. Acredito que podemos alterar o rumo das coisas no dia 23 de Março. Não é fácil, mas tenho essa esperança”, afirma a cantora angolana.

 

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