Luanda - No debate sobre a despenalização do aborto, os argumentos têm-se invariavelmente centrado, por um lado, na necessidade de estabelecer como valor absoluto a “vida”, sendo que esta deve merecer uma abordagem de continuidade desde “o momento da concepção” e ser equiparada a quaisquer outros estágios da vida do ser humano. Por outro lado, temos uma discussão toda feita em torno dos direitos das mulheres e da liberdade de escolha.

Fonte: JA

Como vemos são coisas diferentes. Afinal de contas, sempre podemos ter feministas a discutirem questões relativas ao valor da vida humana, à maternidade e às percepções das relação saudáveis entre mãe e filhos; ou, por outro lado, também podemos ver padres e pastores a terem discussões muito interessantes sobre os direitos das mulheres na nossa sociedade.


Noutro plano, não temos visto qualquer outro sector da sociedade a dirigir-se e a indignar-se, exclusivamente, contra a liberdade das mulheres.


Desta feita, no debate sobre o aborto é quase como que impossível pôr estes dois campos da discussão num mesmo plano. A impossibilidade vem de que um está fechado numa abordagem biológica da vida e o outro no discurso da vida socialmente plena e qualificada. E, deste modo, biologia e sociedade — ou se quisermos, expectativas sociais concretizadas em direitos ­— mantêm-se em planos diferentes na ordem da discussão. E por mais que uns gritem “pró-vida” e outros liberdade, nunca chegaremos a ter contributos valiosos para o debate público.


Contudo, o grande problema no meio disto tudo é o Estado, que tendo a necessidade de adoptar uma narrativa conciliadora, humanista, moderna e inclusiva, experimenta na questão do aborto as suas próprias contradições.

 

Primeiro é que não pode sustentar uma narrativa de igualdade e paridade de género enquanto as mulheres forem penalizadas pela sua especificidade biológica. São condenadas por leis que as reduzem à sua condição biológica, leis que não são universais por não preverem a sua aplicação indiferenciada a todos os cidadãos, mas apenas às mulheres.


Estamos a criar cidadãos de primeira e cidadãos de segunda. E o Estado, nesta matéria, a contribuir para que se produza uma racionalidade bifurcada nos seus fundamentos na relação com os cidadãos. Ou seja, uma racionalidade jurídica específica a determinados cidadãos com base numa imposta “categoria” biológica especial.


A maior reivindicação na matéria sobre o aborto tem precisamente a ver com este constrangimento que fecha as mulheres numa categoria jurídica e política específica. As mulheres têm sobre elas a coacção da lei que torna as suas experiências sociais substancialmente diferentes das dos homens. Ou seja, em relação a estes, uma vida civicamente mais pobre em decorrência da sua limitada liberdade. A perfídia de uma lei deste género está em transformar as mulheres em seres “privados” e “domésticos”. Ou seja, põe-nas na condição primordial para que continuem a ser inteiramente dominadas.

 

O debate sobre o aborto coloca-nos neste dilema. Libertar as mulheres, tornando-as pessoas jurídicas e cidadãs em igual circunstância que os homens através de despenalização de uma lei que as reduz à sua natureza ou, sob o argumento de termos de preservar a vida, onerarmos a mulher, e só a mulher, através da apropriação do seu útero. Com o problema de que aqui o Estado nos vincula a todos, até os que são pela liberdade de escolha.


Despenalizar o aborto tem o efeito imediato de aumentar as possibilidade de as mulheres poderem experienciar o mundo social e político em igualdade de direitos com os homens. Mas tem também o efeito directo de libertar o Estado da responsabilidade de tutelar o corpo das mulheres e de transformar o útero num bem público. E, por fim, despenalizar o aborto libertar-nos-á a todos nós, angolanas e angolanos, desta lógica castradora e da sanha inquisitorial sobre a sexualidade das mulheres.


A manter-se o aborto punível por lei, vingará o argumento que se inspira na abordagem biológica. Contudo, o bom senso nos diz que, em campos tão vagos da biologia, o melhor é o Estado demitir-se de legislar. Aqui, não legislar sobre esta matéria seria simplesmente despenalizar o aborto, remetendo-o para o fórum das escolhas livres ou, se quisermos, para o direito subjectivo.

*Sociólogo