Luanda - A criminalização ou não do aborto ganhou nos últimos dias força, peso e uma certa intensidade, sobretudo nas redes sociais e na média tradicional, devido à nova proposta de lei, segundo a qual se pretende retirar à mulher a liberdade de decidir sobre o assunto.

Fonte: Club-k.net

Dito de outra forma, a questão adquiriu relevância pelo facto da proposta, ora apresentada, agravar a moldura penal e, por outro lado, pretender rejeitar in totu qualquer situação de excepção que pudesse concorrer como causa de exclusão da ilicitude.

 

De facto, a criminalização ou não do aborto é um tema sensível e controverso. Haverá sempre argumentos contra ou a favor, avaliando o bem (vida) jurídico a tutelar.

 

Não há dúvida que o direito à vida (seja ela intra ou extra-uterina) é o mais fundamental de todos os direitos; não faria sentido declarar qualquer outro se, antes, não fosse assegurado o próprio direito de estar vivo (direito à vida) para usufruí-lo.

 

Os que se posicionam a favor da penalização do aborto, entendem, em síntese, que as pessoas, ainda por nascer, têm o direito à vida e, por isso, ninguém deve interromper ou obstaculizar o seu normal desenvolvimento. Admitir desvios, à penalização do aborto, seria transformar o útero num cemitério, ou seja, “legitimar um matadouro” socorrendo- me aqui de uma “expressão inusitada.”.

 

Todavia, os defensores desta “corrente de opinião” devem perceber que nesta questão do aborto, o direito à vida, caminha em rota de colisão com o direito à liberdade e à dignidade humana.

 

Por outro lado, quando lê-se os comentários ou ouve-se as opiniões das pessoas sobre o assunto, fico com nítida impressão de que a indignação de muitos, assenta fundamentalmente em dogmas religiosos.

 

Este facto resulta, como é óbvio, da influência que Igreja teve ao longo da sua existência na estruturação, organização e imposição dos seus valores à sociedade humana.

 

Daí que, certas confissões religiosas estão a esmerar-se em lobbies, sofisticando mecanismos de pressão para que as suas convicções sejam aceites por todos os membros da comunidade.

 

Contudo, vale lembrar a todos nós e, em particular, a quem tem o poder de decidir sobre esta questão, de que o Estado angolano é laico, de acordo o artigo 10o da Constituição da República de Angola. Não é ateu nem agnóstico.

 

E consequentemente, a laicidade do Estado tem como princípio a imparcialidade em assuntos religiosos; o que quer dizer que o Estado não apoia, e nem discrimina, nenhuma religião, ou pessoas, quer sejam ateus ou agnósticos.

 

No âmbito do princípio da laicidade do Estado este tem como dever:

 

Garantir a liberdade de culto religioso; e assegurar a não interferência de nenhuma confissão religiosa em matérias políticas, sociais, económicas e culturais.

 

Além disso, é preciso lembrar que, as normas jurídicas têm como característica a generalidade, o que pressupõe que elas aplicam-se a todos os cidadãos indistintamente, desde que estes encontrem-se na mesma situação jurídica.

 

Assim sendo, uma vez (se for) aprovada a criminalização do aborto nos termos em que foi proposto, ela deverá ser observada e respeitada por todos os cidadãos e não apenas por um certo grupo religioso ou crentes de uma determinada religião. A lei terá de ser acatada independentemente da pessoa ser ateu, agnóstico ou religiosa.

 

Por esta razão, nenhuma lei deve sofrer influência de nenhuma confissão religiosa. E nem se pode impor o acatamento ou aprovação de uma lei com fundamento em dogmas ou crenças religiosas.

 

Isto significaria privilegiar os valores, as crenças e os dogmas de uma determinada religião em detrimento de outras. Esta postura do Estado, violaria a laicidade do Estado e outros direitos fundamentais.

 

Assim, qualquer razão de fundamento religioso deve servir exclusivamente para alicerçar decisões pessoais que se amparam na convicção e na crença íntima que cada um tem com o Todo-Poderoso.

 

Portanto, pretender aprovar uma lei com a estrita e redutora visão da Igreja seria promover os valores e as crenças que alimentam determinada religião.

 

É desnecessário dizer que criminalização do aborto, por questões religiosas, choca com a laicidade do Estado; assim sendo, pelo facto do estado ser laico, este não deveria recusar- se a propor alterações legislativas sobre o aborto, que atendam o interesse público e respeitem a liberdade e a dignidade humana.

 

Defendo que devemos criminalizar o aborto sim, admitindo situações de excepção. Não o fazendo, estaríamos a provocar um tremendo retrocesso no Estado Democrático e de Direito que pretendemos consolidar.

 

Portanto, a religião não deve imiscuir-se, ou pretender aprovação de leis, com base nos seus argumentos de cunho religioso, pelas razões que já invoquei. O que não significa que os seus argumentos devem ser indeferidos liminarmente.

 

Antes pelo contrário, devemos sanear todas as questões que, neste momento, impedem uma ampla discussão objectiva, realista, concreta e que se fundamente na realidade factual; por forma a assegurarmos que o direito penal proteja os bens jurídicos essenciais, nomeadamente, a Vida, a Liberdade, e a Propriedade.

*Advogado Estagiário e Activista Cívico