Lisboa - Diz que não é nenhum herói, mas a verdade é que subiu a pulso na vida, persistindo, até se tornar o autor do sucesso musical que está na boca do povo: "Loucos". Com 12 anos de carreira e quatro álbuns editados, o músico angolano Matias Damásio estreiou-se recentemente no Coliseu de Lisboa.

Fonte: DN

Em criança, Matias Damásio ouvia durante todo o dia a música dos gramofones das lojas de bebidas da Lixeira, a sua terra, em Benguela. De lá saiu com 11 anos. Sozinho. Rumo a Luanda. Deram-lhe uma viola, começou a tocar, a cantar. Não mais parou. Após participar em vários concursos televisivos, a hora da fama chegou. Hoje, quase a completar 35 anos, tem quatro álbuns editados e milhares de fãs. Ao DN falou do seu percurso, das suas influências, a nível musical e pessoal, da família (é casado e tem três filhos), do futuro de Angola e das relações com Portugal.

 

Milhares de pessoas vão ver o seu concerto no Coliseu de Lisboa. Vai ter no espetáculo todos os convidados do seu último álbum "Por Amor"?

Não vai ser extaamente um espetáculo de convidados do meu último álbum. Mas vão estar lá as canções todas. Em Lisboa [também vai atuar no Coliseu do Porto a 20 de maio] vai estar o Héber [Marques]. E temos algumas surpresas. Alguns duetos. Vem uma artista de Angola. À medida que fomos construindo o espetáculo fomos acrescentando peças, mais um instrumentista, mais uma voz. Vai ser bonito.

 

O tema "Loucos", que canta precisamente com o Héber Marques (dos HMB), é um grande sucesso. Atribui esse êxito ao facto de esta ser uma canção de amor?

Acho que sim. A linguagem do amor é universal. As palavras, sobretudo, foram a chave deste sucesso. Quando fiz a canção, escrevi com esse sentimento, da pureza das coisas em que muitos de nós fingimos que não acreditamos, mas que na verdade acreditamos. Fugimos. Mas o amor ainda é uma coisa que nos une. Eu sinto, porque recebo mensagens de pessoas, nas redes sociais, a dedicar trechos da música. Sente-se que as pessoas se apropriaram dessas palavras. É todo um conjunto de coisas fantásticas: a letra, a música, o Héber, o Matias, o som, o ritmo quente de Angola, de África. Depois há todo um processo: quem faz as músicas acontecer são as pessoas, é o elas aceitarem-nas, apropriarem-se delas. Da música que foi feita no canto de uma cozinha, com uma viola, até milhões de visualizações, vai um processo que não me pertence e que é mágico. Quando escrevi o Loucos não era esta canção. Agora já sinto que é outra. Depende muito da dinâmica. Tudo isso foi favorável para que a música se tornasse este sucesso.


Este álbum, desta vez, está a ter maior promoção em Portugal...

Sempre editámos discos em Angola e noutras partes de África. Não é que só esteja a promover agora em Portugal. O que aconteceu é que surgiu uma oportunidade de a Sony Music Portugal editar este disco cá. Foi um namoro bem-sucedido. Também sinto que viemos aqui no momento certo. Com um disco mais maduro. Comecei a minha carreira há 12 anos, vou fazer 35, escrevia canções bonitas mas não tinha idade para senti-las. Hoje é diferente. Mulher, filhos, família, carreira. Sinto que o Por Amor é um disco escrito com mais autoridade.

 

Em Portugal assiste-se a um boom no consumo de música africana que vai já para além da moda da kizomba...

Eu penso que sim. Chegou. E ainda bem. Chegou tarde. Porque Angola e Portugal têm uma relação muito profunda. É uma relação natural. Quase que obrigatória. As relações em áreas como a economia, o desporto, já fizeram um caminho, só a cultura é que ficou para trás.

 

Havia, de certa forma, um preconceito, que desapareceu?

Não diria preconceito. É também um processo de se mostrar. Tivemos aqui dois grandes embaixadores, o Anselmo Ralph e o C4 Pedro, que romperam uma barreira grande. E as pessoas têm curiosidade em conhecer mais. A própria kizomba hoje prolifera nas escolas de dança. É um processo. E ainda bem que acontece nessa altura. Com o Matias [risos].

 

Costuma dizer que prefere ser classificado como músico e não como artista de kizomba. É por achar que uma coisa é menos efémera do que a outra?

A minha música é a viola. Aprendi a tocar há 20 anos. O Loucos é feito na viola, não é no beat da kizomba, depois logo escolhemos o estilo. A kizomba pode estar na moda, como amanhã pode ser a salsa, depois de amanhã o kuduro e etc... O que queria era que as pessoas ouvissem as minhas canções. Por isso é que este álbum tem vários estilos. Quero ser músico, não artista de kizomba, nem de fado, nem de kuduro. Sou essencialmente um músico.

 

No tema "Beijo Rainha" estão presentes as raízes do semba...

É semba. Eu também canto semba. É um dos estilos mais bonitos de se cantar. Tive um amor à primeira vista com o semba, há muitos anos, com o Paulo Flores, o Bonga, Rui e André Mingas, Filipe Mukenga. Tenho vários sembas nos meus álbuns passados. É a música de Angola. É a música que eu amo, que gosto de cantar.


Foi semba que começou por ouvir quando era criança nos gramofones das casas que vendiam bebidas nas ruas da sua terra natal, a Lixeira, em Benguela?

Sim. Essencialmente. A minha base musical é o semba. A poesia do semba é que me levou a tudo isto e tem um significado muito grande na minha alma e no meu coração. O semba do povo, o batuque, quando se nasce faz-se uma festa, quando alguém faz anos faz-se uma festa, é a batucada de Angola, de África, que nós ouvimos desde crianças. Eu nasci numa terra onde o batuque se sente, não o batuque do barulho, mas o da alma. Ouvia Carlitos Vieira Dias, Liceu Vieira Dias, Waldemar Bastos, Lurdes Van-Dúnem... A nossa música é uma música que nasce de um processo de revolução, tanto que os nossos grupos musicais são considerados movimentos de libertação de Angola, as letras eram, essencialmente, sobre a conquista da independência e da liberdade. Era uma música de intervenção. E o semba é a nossa grande referência.

 

Considera-se um self-made man ou teve um grande empurrão de alguns patrocinadores?

Como eu existem muitos. Temos de ter sorte e pessoas que acreditam em nós. Não sou nenhum herói, sou um músico, um cantor. Lutei muito e as pessoas apoiaram-me. Gravei o meu primeiro disco na minha própria editora, Arca Velha. Sempre tive de acreditar na minha obra e lutar em Angola. Mas não posso atribuir a mim todos os louros. Seria injusto. É um conjunto de muitas pessoas, que me disseram que eu era bom, que podia fazer, podia andar. Dedico este trabalho aos angolanos, que me apoiaram muito. Eu lancei o meu primeiro disco em 2005 e logo no primeiro mês entrei no top de vendas e devo isso a eles. Foram o meu grande apoio.

 

As letras refletem também aquilo que é a sua história de vida...

Nós somos feitos de sentimentos, histórias, isso está sempre marcado. Quando saem as músicas, sai tudo com elas, sai o bairro da Lixeira, a rua, o violão, a saudade, Benguela, Angola. É impossível não ter marcas do passado e de todas as histórias.

 

Foi, ainda criança, de Benguela para Luanda, sozinho, de barco. O que recorda desse tempo?

Lembro-me de vários episódios. O momento mais especial que tive foi quando me ensinaram a tocar viola, aos 14 anos. Foi uma coisa fantástica. Lembro-me dos catrongas, aqueles barcos pesqueiros que faziam a travessia, com muita gente a circular, sempre. Lembro-me dos bairros, das ruas, das noites, da cidade, tudo, é tudo uma fotografia.

 

Na altura sentiu medo?

Não. Não era o único. Isso já era motivo para ter coragem. Num país como o nosso, com os problemas de guerra que sofreu, eu era um entre centenas. Era uma coisa muito comum. Nunca tive medo porque nunca me senti sozinho. Não só em Angola, mas em vários países de África, hoje em dia na Síria vemos, infelizmente, que as crianças se separam dos pais. Todos os países que sofrem problemas de guerra têm esse tipo de situações. E as pessoas acabam por ter de conviver e acreditar que aquela é a realidade.

 

Há quem estranhe como é que pessoas que passam por tanto sofrimento depois estão sempre alegres, a cantar, a dançar...

O africano tem essa força. E falo particularmente de Angola, que é a minha terra, um país que viveu 30 anos de guerra tem, automaticamente, um certificado de fracasso. Há danos psicológicos. Cada um de nós, que perdeu um familiar na guerra, teria razões para estar em baixo e sem forças para continuar. Mas, pelo contrário, encontramos pessoas que perderam pai, mãe, sobrinho, etc, e estão lá, a sorrir, a trabalhar, a seguir em frente. É assim que tem de ser. É uma força que é uma característica nossa. O angolano tem uma força que vem do fundo.

 

Há uma música sua, o "Kwanza Burro", que foi considerada uma crítica social. Porque sentiu a necessidade de a fazer?

Não sei se a assumiria como crítica social, mas a ideia era dizer que com o tempo perderam-se muitos valores, fazendo uma relação com a procura do dinheiro. É o que está lá na música: no tempo do kwanza burro as coisas eram diferentes. As pessoas eram mais puras. Hoje, também por causa da luta pela sobrevivência, é um pouco como por toda a parte: as pessoas passam umas por cima das outras para se tentar safar, como se costuma dizer, acabando por atropelar vários aspetos culturais, de educação, etc... O mundo em que vivemos, essa globalização que pedimos, tem coisas positivas mas também negativas.


O dinheiro transforma as pessoas ...

Transforma. Para o bem. Para o mal. É preciso ter estrutura para ter dinheiro. E às vezes ela falta. Confunde-se dinheiro com poder. E há coisas mais importantes. Vou dar um exemplo: quando era pobre, estava contra o meu pai, porque queria que ele fosse rico. Queria ter uns ténis, viajar, como os outros, queria estar num bom colégio. Isso para mim, que era miúdo, era o mais importante. Entretanto cresci, fiz uma carreira, ganhei algum dinheiro, tenho filhos nas melhores escolas, viajam para muitos lugares... e eu estou aqui... eles estão lá em Angola... muitas vezes estive distante deles. Recebia um telefonema a avisar que o meu filho já falava, um outro a avisar que já andava... Já eu, pobre, tive o meu pai comigo em todos os momentos. Esteve comigo quando caí, foi ele que me ensinou a falar, que me abraçou. O que quero transmitir é que, por mais dinheiro que eu ganhe, eu estou longe de ser para os meus filhos aquilo que o meu pai foi para nós.

 

Tem uma outra música que começa por dizer: "Vou contar-vos a história de um povo que tem tudo para sorrir de novo." Que futuro é que vê para esse povo, para Angola, país que vai ter eleições em agosto?

Lembro-me de que esta canção surgiu em Kigali, no Ruanda. Escrevi-a no jardim do aeroporto de Kigali. A história é muito engraçada. Quando anunciaram a paz em Angola [2002], pensei "tu não anuncias a paz na televisão com uma notícia". Fazer um anúncio a dizer que temos paz não acaba com o sofrimento das pessoas que perderam casas, famílias, que têm traumas. É preciso haver incentivos para as pessoas acreditarem na paz. Porque a paz é crença. Não é uma coisa que se dá. Não é um telefone que se diz "toma lá, está aqui este telefone". Entretanto: nós tínhamos ido a Kigali ver um jogo contra o Ruanda [2005] no qual Angola podia qualificar-se para o Mundial de Futebol. E quando o Zé Kalanga fez um cruzamento com o Akwá e o Akwá marcou um golo que nos pôs no Mundial de Futebol as pessoas sorriram mais e gritaram mais do que quando receberam a paz. As pessoas vibraram, desmaiaram pessoas no campo, foi uma emoção, Angola rebentou foguetes, porque íamos ao Mundial de Futebol na Alemanha e, para um país saído da guerra, esse, para mim, foi o maior incentivo que houve. E, por isso, quando cheguei ao jardim, peguei no violão e disse, pronto, vou contar-vos a história de um povo que tem tudo para sorrir de novo. Tudo porque, naquele momento, também comecei a acreditar que estávamos em paz. Acredito na força dos angolanos porque, desde a conquista da independência e da paz, sempre conquistaram as coisas com muito esforço e sacrifício. Há uma coisa muito boa que Angola tem e que as pessoas não sabem: nós nunca mais vamos ter guerra. Toda a gente em Angola tem traumas de guerra e ninguém mais quer fazer guerra. Isso posso garantir. E daqui a 20 anos podemos voltar a falar sobre isso. Uma coisa é um país bombardear outro país. Outra coisa é matarmo-nos entre nós. De todos os lados houve perda. Todos falam, discutem, mas quando falam em guerra toda a gente cala a boca. Toda a gente quer progredir.