Luanda - De modo a evitar especulações desnecessárias ante um pronunciamento feito na Assembleia Nacional, no dia 15.6.2017, local de reflexão e de debate das leis do país, publicamos o conteúdo integral do Parecer da deputada Irene Alexandra da Silva Neto sobre O PROJECTO DE LEI ORGÂNICA SOBRE O REGIME JURÍDICO DOS EX-PRESIDENTES E VICE-PRESIDENTES DA REPÚBLICA APÓS A CESSAÇÃO DE MANDATO.

Fonte: FAAA

ImageRelativamente ao Projecto de Lei Orgânica sobre o Regime Jurídico dos Ex-Presidentes e Vice-Presidentes da República após a Cessação de Mandato, de iniciativa legislativa do Grupo Parlamentar do MPLA, gostaria de apresentar os meus considerandos sobre a mesma, partilhando da apreciação crítica quanto à urgência que se pretende imprimir a este processo. Entendo que a retirada do actual Presidente da República, perante uma conjuntura de grande desgaste, se revista de medidas cautelares e preventivas para garantia da segurança e estabilidade da sua pessoa e de seus familiares.

 

Permitam-me que contextualize um pouco mais o Relatório de Fundamentação enquanto membro da família do primeiro Presidente da República de Angola, Popular naqueles tempos. Julgo legítimo o meu testemunho, por se enquadrar na categoria de pessoas sobre as quais se irá ora legislar, constituindo uma experiência valiosa, apesar da nossa família, enquanto primeira «Primeira-Família», não ter sido convidada a aportar subsídios sobre esta matéria, tendo no entanto uma larga vivência, de 38 anos, na condição de família do Presidente da República, falecido no exercício das suas funções. É um testemunho amarrado na garganta há 38 anos, mais tempo do que Mandela ficou preso em Robben Island.

 

Aquando da morte do Presidente Agostinho Neto em 1979, o MPLA exarou uma Resolução visando definir o apoio a prestar pelo Estado à família do primeiro Presidente da República. Relembro que na época, o Presidente Neto deixava uma viúva e três filhos, uma delas menor de idade, e os outros dois a começar ou continuar os estudos universitários. Tinham 14, 18 e 20 anos, respectivamente. A referida Resolução “atribuía-nos” aquilo que nós já tínhamos, isto é, a residência familiar no Futungo de Belas, o escritório do Presidente Neto, a residência na Quinta da Sapú e outra na ilha do Mussulo, todas já sob o direito de usucapião e algumas adquiridas ou oferecidas em vida ao Presidente.

 

Durante os 12 anos seguintes, a Resolução foi tão frágil na sua implementação que houve necessidade de deliberar novamente sobre o assunto em 1991 e voltar a definir o apoio através da Resolução nº 2/91 de 25 de Maio do Conselho de Ministros. Recordo que 1991 foi o ponto de inflexão do sistema político em Angola.

 

Tivemos inúmeras dificuldades, como até entrar em nossa própria casa, no Futungo de Belas, por permanentes empecilhos, embaraços ou pura obstrução por parte da segurança nas cancelas da entrada que dava directamente para a nossa rua. Ao ponto de um dia eu largar a minha viatura (já tinha a carta de condução) do lado de fora, na estrada, e descer a pé para casa, desafiando os guardas na cancela a atirarem se quisessem mas que eu iria para a minha casa. Esse e outros episódios rocambolescos levaram a que amigos nos encontrassem uma residência no Miramar, na cidade, onde não ficaríamos tão isolados e para onde nos mudamos. Essa residência passou a ser-nos “atribuída” também.

 

Para que não julguem que foi fácil para a família gerir o dia seguinte à morte do Presidente Agostinho Neto, esclareço que solicitamos inúmeras vezes que fosse discutido este assunto na Assembleia do Povo, com toda a transparência e que o assunto revestisse forma de Lei, ficando acautelado na Lei Constitucional então vigente.

 

Infelizmente, a resposta às nossas pretensões foi a seguinte: o assunto não tem dignidade constitucional. Nem tinha constitucional nem infraconstitucional. Nada. Indignadíssimos ficamos nós por nos manterem à mercê das boas ou más vontades, da arbitrariedade de cada um que necessitasse de ajustar contas com o Presidente Agostinho Neto por interposta pessoa, no caso a sua família. Enquanto os deputados à Assembleia do Povo se atribuíam regalias e direitos, incluindo a assistência médica, a si e seus familiares, a primeira «Primeira-Família» tinha de suplicar favores nas clínicas e hospitais para dirigentes. E éramos a família do «saudoso Guia Imortal»! Não é segredo para ninguém, o quanto este processo pesou na saúde, física e psicológica, sobretudo dos meus irmãos. Esta vivência serviu, se para mais nada fosse, para ficar a conhecer as pessoas e sua verdadeira índole, sua educação e postura moral na vida.

 

Para abreviar a história da nossa vida, eis senão quando 31 anos depois, o ilustre legislador, hoje do Tribunal Constitucional, conseguiu encontrar a fugidia dignidade constitucional, de tal sorte que a Constituição da República de Angola, aprovada em 2010, encontrou finalmente um espaço para acolher, «no interesse nacional de dignificação presidencial», o Artigo 133 e os correlatos Artigos 135 e 150. «Melius sero quam numquam» (mais vale tarde do que nunca).

 

Assim, resolvida esta questão prévia, eis-nos reunidos para dar corpo à alínea e) do Artigo 133. E são estes «outros direitos previstos por lei», de reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia Nacional que somos chamados a analisar.

1. Começaria pela Constituição da República de Angola, na alínea e) do número 2, do Artigo 135 sobre o (Conselho da República): consta que os antigos Presidentes da República são membros do Conselho da República e, no número 3 deste Artigo, gozam das imunidades conferidas aos deputados da Assembleia Nacional. Por esta razão o legislador obriga o ex-Presidente da República a fazer parte do Conselho da República. No entanto, não está explícito se o ex-Presidente da República pode renunciar ao cargo de membro deste Conselho, como é possível, por exemplo, em Espanha e na Itália. Não está tão pouco claro se são remunerados enquanto membros do Conselho da República.

2. O Capítulo I, Artigo 1º, no ponto 2, sobre (tratamento protocolar, imunidades e segurança), refere que a designação, após a cessação de funções, pode ser de "Presidente da República Emérito”.

Primeiro quero saber quando pode ser e quando o não pode. É ou não é? Esta denominação não está prevista na Constituição da República de Angola. Gostaria de obter também uma clarificação quanto ao conceito e título de emérito, mais usado como título honorífico de pessoas que se destacaram na academia e religião. Todos os ex-Presidentes da República serão eméritos? Na academia, esse grau não é automático. Um professor para se tornar emérito, necessitará de uma deliberação da Faculdade, à qual se seguirá um decreto do Reitor. Um presidente que se torna ex-presidente, não é o mesmo que um presidente sem o “ex” e que se consagra como um “Presidente da República emérito”. Isto é, retém o direito de vantagens por aquilo que é e não por aquilo que foi. Resultariam daí vantagens «instituídas» e não «concedidas», nomeadamente nas precedências?

Sobre as precedências: espero que se definam de uma vez por todas estas questões do Protocolo de Estado para evitar as gentilezas cruéis, falta de respeito e de educação das atabalhoadas precedências protocolares nas cerimónias formais ou solenes. Por exemplo, qual será a precedência prevista entre as figuras institucionais do Presidente Fundador da República e do Presidente da República emérito? O Presidente Fundador é o primeiro dos primeiros e sempre o será. As pessoas têm de se adaptar à alternância que é um facto normal das democracias e tem de haver comedimento para não se criarem tensões e crispações desnecessárias com o Presidente da República em funções.

3. No Artigo 2º, sobre o (Foro especial) para efeitos criminais ou responsabilidade civil do ex-Presidente da República: que foro é este no Tribunal Supremo?

4. No Artigo 3º sobre (Pensão): quero enfatizar que não estamos, ou não devemos estar, a legislar e assentar privilégios para uma só pessoa em particular. A lei será para todos os futuros ex-presidentes da República. À medida que se consolide a nossa democracia, os candidatos à Presidência da República tornar-se-ão cada vez mais jovens e ficarão menos mandatos consecutivos no poder. Significa que se hoje se inscreve um critério vitalício em alguma alínea, isto se deve a idade que o nosso actual Presidente da República possui. Mas imaginemos um futuro com uma democracia dinâmica em que se cumpram apenas dois mandatos, teremos ex-Presidentes da República ainda jovens, podendo continuar a trabalhar. Não faz assim sentido que eles recebam 90% do vencimento do último ano do mandato de forma vitalícia. Em Espanha, por exemplo, essa pensão mensal vitalícia é apenas reservada a pessoas com mais de 65 anos de idade, na ordem dos 60%.

5. No Artigo 4º: (Pensão por funções de Primeira-Dama). Em termos comparativos, à primeira Primeira-Dama era atribuída mensalmente uma pensão equivalente ao salário de um membro do Governo e um subsídio irrisório, entre 2mil e 2mil e 500 dólares, anualmente, para despesas diversas, incluindo férias. No caso actual, sabemos que as finanças não serão problema para os futuros ex-PR e ex-Primeira-Dama. Será justo beneficiarem ainda assim destas regalias? Ninguém pode dizer que a família presidencial actual é pobre, podendo, por essa razão, atender às suas necessidades pessoais e políticas com a dignidade e o decoro que correspondam às altas funções exercidas.

O mesmo não se poderá dizer da família do primeiro Presidente da República em que nem o seu cônjuge nem os seus descendentes alguma vez beneficiaram de lugares em administrações na banca, na mineração ou de qualquer outro recurso do país pelo qual tanto se bateu e conseguiu levar à independência, de forma vitoriosa. Estas generosas benesses, serviriam para evitar que ex-Presidentes da República (em idade relativamente jovem) caíssem em tentações de ir trabalhar para empresas privadas, tendo de respeitar uma cláusula de incompatibilidade durante 5 anos após a cessação de funções.

6. Sobre o Artigo 12º (Deveres do PR e do Vice-PR após cessação de funções): impõe-se um limite de 5 anos até poderem exercer cargos em entidades privadas mas não se esclarecem as incompatibilidades seguintes, se as houver:

a) Entre o auferimento de uma pensão vitalícia e o exercício de um cargo público, a participação em conselhos de administração de empresas públicas ou privadas, ou o desempenho de cargos públicos.

7. Não existe um manual de instruções para abandonar o poder mas a psicologia política da sucessão das lideranças recomenda contentar tanto os ex-dirigentes quanto não onerar as finanças públicas. Essa remuneração dos ex-presidentes da República, os meios pessoais colocados à sua disposição, a dotação para o seu escritório e as suas memórias, devem ser publicadas anualmente e constar do OGE. Haverá prestação de contas sobre estas dotações de forma transparente ou será um exercício opaco em função de um tratamento diferenciado?

8. Dúvidas adicionais:

a) Renúncia e revogação dos direitos e prerrogativas dos ex-presidentes: os direitos e prerrogativas reconhecidos pela presente lei serão revogáveis, total ou parcialmente, por resolução do Plenário da Assembleia Nacional, adoptado por maioria dos seus membros, sempre que se considere que já não concorrem as condições de honorabilidade necessárias à pessoa de um ex-Presidente? Ou serão intocáveis numa blindagem constitucional?

 

b) Insígnias de Presidente da República emérito: os presidentes eméritos terão algum símbolo, bandeira, estandarte, distintivo?


c) Transporte aéreo: o Presidente da República emérito terá direito ao transporte aéreo gratuito na companhia aérea estatal de bandeira ou terá outro tipo de avião?

 

Esperemos que esta lei venha ajudar a que os futuros antigos Presidentes da República se possam adaptar, sem desenvolver o síndrome dos ex-presidentes que é de se considerarem imprescindíveis. Que acresçam em vez de retirar valor ao país, sempre com sentido de Estado e com os novos poderes que surgirem.