Lisboa - Grande entrevista a Marcelo Rebelo de Sousa

Fonte: DN

Desdenhando do poder da comunicação social e criticando a maioria da comunicação social, Donald Trump fez-se eleger dos Estados Unidos da América. Esta eleição veio acrescentar um fator de grande imprevisibilidade na política internacional. O mundo está mais perigoso ou, pelo menos, mais imprevisível com a liderança de Donald Trump?


Não, que o mundo está imprevisível está. Se olhasse para trás e se lhe perguntassem a si, e porventura a mim, há um ano quem iria ganhar as eleições americanas, provavelmente não diria o atual presidente; quem iria ganhar as eleições francesas, provavelmente não diria o atual presidente; qual o resultado do referendo britânico, poderia ser um, poderia ser outro; em Itália o referendo iria dar um resultado negativo, provavelmente diria que iria dar um resultado positivo. Isto só para mostrar o grau de imprevisibilidade. É possível ter realmente resultados eleitorais e é possível ter decisões políticas ou até crises políticas que seis meses antes, nove meses antes, um ano antes, para o comum dos mortais seriam imprevisíveis e, nesse sentido, o mundo está mais imprevisível do que nunca. É uma das dificuldades que eu encontro em fazer política hoje - comparado com o que era fazer política há vinte anos quando fui líder do Partido Social Democrata, ou há trinta anos quando fui membro do Governo, ou há quarenta anos quando fui deputado à Constituinte e dirigente partidário -, é que hoje há não só uma aceleração no tempo, há uma globalização no espaço, como há uma imprevisibilidade multiplicada. Esse é um facto.

Agora pergunta-me concretamente no que respeita ao caso do novo presidente norte-americano. É evidente que o Presidente da República de Portugal não vai formular um juízo sobre o Chefe de Estado de um país amigo e que é um aliado estratégico importante em termos bilaterais e multilaterais, mas é evidente que no início do mandato desta Administração havia interrogações que se colocavam e que eram importantes para Portugal. No plano bilateral é muito importante o relacionamento com os EUA em geral, e havia aspetos concretos, específicos, do relacionamento bilateral particularmente atuais. Um deles, que vinha do passado, era o encontrar formas de relacionamento bilateral que pudessem corresponder àquilo que no seu tempo a base das Lajes correspondeu no relacionamento entre os dois países. No quadro multilateral, as interrogações não eram menores, como seria a posição em termos de livre comércio internacional, nomeadamente em termos de protecionismo, com efeitos diretos na União Europeia, como seria o posicionamento relativamente à Aliança Atlântica, como seria o posicionamento relativamente a vizinhos da UE no quadro europeu, no quadro do Próximo/Médio Oriente, no quadro do Mediterrâneo, portanto do Norte de África, tudo isso eram interrogações importantes. Porque para Portugal é uma evidência a importância dos EUA na Aliança Atlântica, para Portugal é uma evidência a atualidade da Aliança Atlântica e a sua sensibilidade não apenas ao flanco Leste, mas ao flanco Sul, para Portugal é muito importante o envolvimento nas Nações Unidas, duplamente importante com um Secretário-Geral das Nações Unidas como o português António Guterres, portanto era importante saber do envolvimento norte-americano em relação às Nações Unidas.


Esta liderança norte-americana prejudica a liderança de António Guterres nas Nações Unidas?

Eu ia chegar lá dizendo o seguinte: volvidos sete meses sobre o início de funções desta Administração, o que eu posso dizer como Presidente da República Portuguesa é que continuo a acreditar que a continuidade da política externa norte-americana é muito forte, e que essa continuidade vai estar presente no relacionamento dos EUA com a Aliança Atlântica, com a UE, no envolvimento com as Nações Unidas e também acredito, no plano das relações bilaterais, que vai haver imaginação suficiente para aprofundar essas relações bilaterais em termos que não são necessariamente iguais àqueles que existiram no passado.

 

Na Venezuela reside uma grande comunidade portuguesa, a situação piora de dia para dia, o Governo português tem feito o que é possível, o Sr. Presidente já se pronunciou sobre o tema, para acompanhar a comunidade, no entanto, já se fala em sanções, o El País já disse que Portugal era o único país que se opunha e o Ministério dos Negócios Estrangeiros já negou, dizendo que o tema nem sequer foi discutido, mas tendo em conta a dimensão da comunidade portuguesa, que com os lusodescendentes pode chegar a meio milhão, lutar contra essas sanções pode ser politicamente mais correto do que parece?

Bom, eu aqui tenho de ter, como se compreenderá, um cuidado acrescido. Porquê? Porque, como disse, temos lá uma comunidade que é uma comunidade única no quadro europeu, nenhum outro país da União Europeia tem na Venezuela uma comunidade com o peso da comunidade portuguesa. Ainda agora no México, a falar com o Presidente dos Estados Unidos Mexicanos, ele ficou surpreendido quando eu lhe disse o número de portugueses e lusodescendentes existentes na Venezuela. Não tinha a noção e, às vezes, quando encontro parceiros europeus e refiro o número ficam estupefactos. Estamos a falar de pessoas de carne e osso, com as suas vidas, em várias gerações, e a grande maioria com a intenção de viver na Venezuela; têm ali as suas vidas, as suas famílias, as suas posses, a ideia é viverem na Venezuela, gostam de viver na Venezuela, não querem viver noutro local.

Portanto, isto significa que tudo aquilo que se disser, nomeadamente em público sobre a matéria é de uma grande responsabilidade, porque esses nossos compatriotas olham para aquilo que é dito, em pormenor. É uma situação em que nós temos dito o quê? O senhor ministro dos Negócios Estrangeiros é de um cuidado total, total, até com um rigor jurídico notável para um não jurista. Porque cada vez que acrescenta uma palavra ou uma expressão, isso tem significado. Ainda hoje eu vi que dizia, "nós continuamos a defender um acordo genuíno", quer dizer verdadeiro, de parte a parte, não é fingido, "que seja um acordo global, um acordo institucional" e hoje especificava, envolvendo também o calendário pré-eleitoral, quer dizer, como quem diz, tem de haver aqui um compromisso que seja não apenas no sentido de não haver agravamento do que porventura possa haver de menos positivo, mas também de entendimento conducente a uma saída para a situação vivida. Por isso, ele disse também, ainda há dias, que não chegou ainda o momento das sanções à Venezuela. Esta própria formulação é uma formulação muito cuidadosa, porque significa que Portugal está solidário com a União Europeia e a UE, naturalmente, quando tiver de apreciar esta questão, apreciará através do debate entre todos os seus membros, sabendo-se que Portugal está numa situação muito específica, porque uma coisa é estar a tratar-se de problemas que são importantes para o relacionamento entre a UE e outro qualquer país sem ter lá tantos nacionais, outra coisa é tendo lá tantos nacionais.

No entretanto, o Governo e, nomeadamente, o senhor secretário de estado das Comunidades, tem estado na Venezuela a acompanhar o que é preciso fazer de reforço consular, de apoio social, de sensibilidade à evolução do relacionamento com as autoridades locais e nacionais. É preciso que as pessoas percebam o seguinte: na situação vivida na Venezuela, como em qualquer outro país numa situação análoga, as autoridades são hipersensíveis àquilo que se diz. Nem é aquilo que se faz, é aquilo que se diz acerca da situação vivida, e a última coisa que se pode fazer é criar qualquer problema adicional aos portugueses.

 

Angola vai ter eleições agora a 23 de agosto, durante muito tempo Portugal fez várias visitas, foi subindo o nível de quem ia visitar, preparando uma visita final quer para o primeiro-ministro, quer para o Presidente da República. No entretanto, a visita foi adiada com o argumento oficioso de que se aproximaram as eleições e não foi possível ir visitar, mas todos sabemos que o problema é uma investigação que decorre em Portugal a um vice-presidente angolano, Manuel Vicente, e que isso criou um problema diplomático. O senhor ministro dos negócios Estrangeiros dizia que "Portugal e Angola são gémeos siameses e portanto estão condenados a entenderem-se, não vale a pena ninguém amuar". O que lhe pergunto é se nos compete a nós, Portugal, havendo uma separação de poderes, obviamente, não podendo interferir na Justiça, o trabalho de desamuar quem estiver amuado nesta relação?

Esta é outra das situações em que aquilo que posso e devo dizer é o seguinte:

Primeiro lugar, desde que assumi o mandato presidencial, o que retenho de testemunhos chegados do senhor Presidente da República de Angola é que foi sempre muito cordial, desde o momento das felicitações iniciais até agora que se avizinha o termo do mandato presidencial houve esse traço de cordialidade no relacionamento entre os dois presidentes.

Segundo lugar, a eleição do novo Presidente angolano é uma questão dos angolanos.

Terceira ideia que me parece evidente é a seguinte: este momento é um momento em que a tal imagem dos gémeos siameses pode conhecer uma melhor tradução no futuro próximo. Porquê? Porque pela própria situação de Portugal e pela própria situação de Angola, situação económica, financeira, social, isso já se traduziu um pouco na linha de crédito avançada pelo Governo português relativamente a Angola. Há interesses comuns muito fortes, a comunidade portuguesa que se encontra em Angola, a comunidade angolana que vive em Portugal, a comunidade laboral e empresarial portuguesa que trabalha em Angola e a angolana que trabalha e que opera em Portugal; a situação das duas economias, como pode ser útil uma convergência num futuro próximo.

Dito isto é para mim muito evidente que quem está no exercício das funções em que eu me encontro tem de olhar para a realidade sempre num prazo mais longo do que o dia seguinte ou a semana seguinte, porque os países permanecem e os titulares dos órgãos de poder político passam. Portanto, sendo assim, acho que a função de cada qual no seu momento histórico é trabalhar para esse médio e longo prazo e o que se pode fazer em termos de convergência é muitíssimo. Dir-me-á que há problemas de percurso, há questões de percurso, isso há sempre, nas relações entre Estados há sempre. Então envolvendo naturalmente a própria lógica dos Estados democráticos, os chefes de estado podem uma coisa, os governos podem outra coisa, o poder judicial pode outra coisa e não há atropelos, nem há sobreposições.

Dito isto, penso que é tão óbvio o interesse dos dois Estados e dos dois povos na convergência, tão óbvio, tão óbvio, tão óbvio. Eu sou um racional que não vejo como não fazer aquilo que é óbvio, porque isso seria verdadeiramente um absurdo e aliás um absurdo durante um período limitado de tempo porque a História se encarregaria de ultrapassar esse absurdo.

 

Espera ir a Angola ou convidar o próximo Presidente angolano a visitar Portugal?

Vamos primeiro esperar, naturalmente, a realização das eleições angolanas.