Lisboa - Durante 23 anos, entre 1979 e 2002, houve em Angola dois chefes: José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi. O primeiro foi sempre, após a morte de Agostinho Neto, o chefe entronizado, o que estava no poder, o que mandava no país. O segundo era o chefe desafiador, insubmisso, combatente, que lutava para o derrubar. Nesses 23 anos, as suas relações oscilaram entre acordos de paz nunca cumpridos por muito tempo e períodos longos de violentíssima guerra civil. A partir de 2002, com a morte em combate de Savimbi, José Eduardo dos Santos ficou dono e senhor absoluto da cena política e económica angolana. Já antes era assim mas nos últimos 15 anos ninguém deu um passo sem a sua autorização, pessoal ou por escrito.

Fonte: Expresso

É por isso que, quando no início deste século, Dos Santos admitiu pela primeira vez que poderia vir a abandonar a vida política ativa, a preocupação não foi só interna: também em Washington, Bruxelas, Moscovo, Pequim, Lisboa e Brasília se viveu o mesmo sentimento. E a reação foi unânime: o Presidente era quem melhor garantia a estabilidade política, militar e social em Angola, bem como a segurança e os proventos dos investidores estrangeiros e o estatuto e bem-estar dos trabalhadores doutros países. José Eduardo dos Santos sentiu assim que tinha cobertura internacional para reforçar o seu poder interno. E fê-lo, aprovando uma Constituição onde, por exemplo, deixou de existir a eleição direta para a Presidência da República (o Presidente passa a ser o líder do partido mais votado, o que eliminou o incómodo de o MPLA ter mais votos nas legislativas do que Dos Santos nas presidenciais), ao mesmo tempo que fazia deslizar sucessivas vezes as datas para as eleições sem que houvesse protestos internacionais. E fê-lo também misturando cada vez mais família e Estado, ao ponto de ter nomeado a sua filha Isabel dos Santos para presidente da maior e mais importante empresa do país, a petrolífera pública Sonangol; bem como escolhendo o seu filho Filomeno dos Santos para presidir ao Fundo Soberano de Angola, outro instrumento poderoso na estratégia interna e externa do Presidente angolano.

 

Entre portas, José Eduardo dos Santos foi gerindo, com a frieza dos grandes jogadores de xadrez, o quadro político e, em particular, os candidatos a seus sucessores no palácio presidencial. A tática foi sempre a mesma: dava uma indicação sibilina de quem poderia ser o seu delfim para depois, logo que este começava a ganhar asas, o deixar cair com estrondo. Foi assim com Marcolino Moco, antigo primeiro-ministro, com Fernando Garcia Miala, ex-responsável pelo Serviços de Inteligência Externa (que esteve preso durante quatro anos), com Fernando da Piedade Dias dos Santos (Nandó), ex-vice-presidente de Angola entre 2010 e 2012, e com Manuel Vicente, ex-presidente da Sonangol e vice-presidente de Angola desde 2012 até à atualidade. Agora, com João Lourenço, a estratégia está a repetir-se. O ministro da Defesa (suspenso do cargo para participar na campanha eleitoral) que todos dizem que José Eduardo dos Santos escolheu para seu sucessor, não mereceu até agora uma palavra do Presidente nesse sentido, que também não se dignou a aparecer ao seu lado em público desde que foi indicado para liderar a lista do MPLA às eleições legislativas de 23 de agosto. Os sinais que passam para a opinião pública é de distanciação, se não mesmo de frieza, por parte de Dos Santos para com Lourenço. Como o Expresso noticiou na última edição, o Presidente ordenou na passada quarta-feira que João Lourenço, que se encontrava a efetuar um périplo internacional, cancelasse uma visita a Moscovo que tinha previsto para esta semana. Ao mesmo tempo, fez aprovar no Parlamento um decreto-lei que coloca sob a sua alçada a nomeação dos principais responsáveis pelos serviços de inteligência e pela polícia. Reconduziu para um novo mandato o conselho de administração da Endiama, a empresa pública de diamantes. E tentou que fosse aprovada uma alteração constitucional, que lhe outorgasse o estatuto de “Presidente Emérito”, estatuto que o colocaria ao abrigo de quaisquer processos judiciais contra ele que possam surgir no futuro, o que mostra que não confia em ninguém, a não ser na sua família.

 

É por isso que se acumulam os sinais de mal-estar. As críticas passaram a ser públicas e de figuras de peso do MPLA. A mais contundente veio de Irene Neto, filha de Agostinho Neto, primeiro presidente da República de Angola e fundador do MPLA, que solicitou a sua saída da lista de candidatos a deputados apresentada pelo partido. Em entrevista ao “Novo Jornal”, em 7 de julho, e quando interrogada sobre se este é o país com que sonhou, Irene Neto respondeu assim. “Com certeza que não. Os desvios monumentais, descarados e obscenos ocorreram logo após a morte do Fundador da Nação. Criou-se um clima de impunidade que a guerra civil, prolongada desnecessariamente, permitiu e a mudança do regime político acelerou”. E apontou o dedo à criação de “uma burguesia nacional escolhida a dedo e não por mérito próprio, com a delapidação do erário público para a ‘acumulação primitiva de capital’ de alguns eleitos em detrimento da maioria”, bem como à “ganância e voracidade de velhos e jovens ambiciosos, deslumbrados pelo reluzir das pratas e de mil oiros”.

 

José Eduardo dos Santos sabe que está mal de saúde. As suas visitas a Barcelona, onde tem vindo a ser tratado há mais de dez anos a um cancro da próstata, são cada vez mais curtas. Correm rumores de que o tumor já se poderá ter espalhado e que teria sofrido um AVC. Mesmo que não corresponda à verdade, vive-se um tempo de transição no MPLA. Acumulam-se, contudo, os sinais de que o Presidente sai mas quer continuar a mandar por interpostas pessoas e a controlar os centros nevrálgicos do poder. Nos últimos dias tem intensificado os despachos com o seu vice-presidente, Manuel Vicente, voltando a dar-lhe parte do poder que este tinha perdido no cenário político angolano — e, em contrapartida, fragilizando a posição de João Lourenço. No fundo, José Eduardo dos Santos sabe que, após perder o poder político (embora se mantenha como presidente do MPLA pelo menos por mais um ano), deixa de ter garantias de que os seus homens de confiança se manterão nos cargos-chave onde se encontram — e que mesmo Isabel dos Santos e Filomeno dos Santos poderão ser afastados das presidências da Sonangol e do Fundo Soberano. E sabe mais: sabe que o leão, que todos temem na selva enquanto jovem e vigoroso, passa a ser alvo da vingança de todos os animais quando fica moribundo.

 

Angola está a assistir ao inverno da família Dos Santos, que durante quase quatro décadas geriu, de forma crescentemente cleptocrática, o país. Ora, o inverno austral é o tempo das calemas, marés fortes, com vagas alterosas, que provocam destruições à sua passagem. Também na política angolana a passagem do testemunho não está nem será isenta de fortes tensões. Esperemos, para bem do povo angolano, que tão martirizado já foi pelas guerras de libertação e civil, que desta vez o cargo presidencial resulte de eleições livres e justas — e não do poder das espingardas.