Lisboa - Já deu à costa o pretenso projecto de lei sobre repatriamento de capitais. Depois de lido, passamos a perceber melhor o alcance do aforismo “a alegria do pobre dura pouco”. Todo o frisson que se sucedeu ao tão faustoso anúncio sobre o repatriamento de capitais redundará, em nosso entender, em falhanço rotundo, caso esta proposta prevaleça.

Fonte: Club-k.net


Esperava-se mais. O chefe de Estado fez a sua parte, os técnicos falharam estrambelhosamente. Não é que os técnicos não estejam dotados das valências técnicas necessárias, antes pelo contrário. Faltou coragem e honestidade para alertar o chefe do executivo de que, dada a magnitude do assunto, o tempo proposto para a formatação do projecto de lei não era o mais adequado. Os técnicos, ou se assumem como tal, ou, vamos continuar a ter um país executado e não governado, como disse um dia o ínclito escritor Pepetela.


Para agradar ao chefe, compuseram, o referido projecto de lei a trouxe-mouxe, observando, escrupulosamente, o timing que, em nosso entender, só podia ser de natureza meramente indicativa. Ora, em democracias, os processos legiferantes não podem ser costurados à medida dos interesses e das expectativas do chefe do Estado, sob pena de o resultado ser esta salgalhada que está à vista de todos.


Aspectos que mereceram a nossa atenção ao perscrutarmos o aludido projecto de Lei:
1. A menção da responsabilidade criminal esbarra com o preceituado na constituição em vigor que estabelece a irreversibilidade das amnistias, a menos que se queira pisotear a carta magna à semelhança do que se faz quando o assunto é condicionar as manifestações mediante a exigência da observância do procedimento administrativo de prévia autorização. Por outras palavras, caso o projecto de lei seja convertido em lei, estar-se-á ,rigorosamente falando, a proceder à repristinação de todos os crimes abrangidos pela lei da amnistia, na medida em que, não se pode entender que o Estado, a quem cumpre, em primeira instância, o dever de velar pelo cumprimento da lei (guardião da legalidade), se arrogue no direito de responsabilizar criminalmente cidadãos abrangidos pela lei da amnistia, ao passo que, os particulares, vítimas de crimes amnistiados nos termos da referida lei, não possam, em igualdade de circunstâncias, responsabilizar criminalmente os autores de tais delitos;

2. A consagração de algumas normas de escape:

1- Nos termos do referido projecto de lei art.º 5º n.º 2, ficam excluídos do âmbito de aplicação do regime de repatriamento, quando, a jurisdição onde se encontram os elementos patrimoniais a regularizar não permita, por razões de ordem legal ou administrativa, o seu repatriamento. Essa norma foi costurada à medida dos interesses da classe no poder, pois, representa uma fuga para frente. Se à luz dos instrumentos internacionais, se aboliu o sigilo bancário para efeitos de trocas de informações, por maioria de razão, não compreendemos em que termos é que os estados cooperantes limitariam o repatriamento de fundos de origem ilícita na medida em que a abolição do sigilo foi feita, precisamente, no sentido de viabilizar tais repatriamentos. Por outro lado, não divisamos nenhum Estado que ao nível das instâncias internacionais objecte formalmente repatriar capitais de origens duvidosa.

2- A segunda norma de escape, tem que ver, em nosso entender, com o previsto no ponto 5, do artigo 5.º, do projecto de lei em análise. Grosso modo, diz o legislador que, tratando-se de activos aplicados em fundos de investimentos (hedge funds,private equity), a entrega ou ordem de venda dos referidos elementos patrimoniais, com data anterior ao preenchimento da declaração de repatriamento de capitais, isenta, igualmente, os visados de procederem ao repatriamento. Outra norma sorrateira.

Ora, os fundos de investimentos podem ser abertos ou fechados. Em relação a estes últimos, é bem verdade que o resgate das unidades de participações(o equivalente às acções nas sociedades comercias) não pode ocorrer antes do prazo que o acto constitutivo do fundo prevê, regra geral, nunca superior a 10 anos. Nesta senda, a entrega de uma simples declaração de ordem de venda das referidas unidades de participações, trata-se, em nosso entender, de um mero expediente dilatório. O valor jurídico de tais declarações é duvidoso e, quando muito, qualificar-se-ão em promessa unilateral, cujos efeitos o Código Civil cura de estabelecer. Portanto, para os não juristas, por outras palavras, pretendemos dizer que tais declarações, para os efeitos do que se pretende com o regime de repatriamento de capitais carecerão de qualquer serventia.


3. O projecto em referência é confuso quanto o alcance do perdão fiscal. Ora subentende-se tratar-se de um perdão fiscal parcial (multa, juros e outras taxas administrativas), outras vezes fica-se com a ideia, que, se trata de um perdão fiscal total(perdão dos impostos devidos). Dúvidas não parecem restar de que se trata, efectivamente, de um perdão fiscal total. Perdoar os impostos devidos está nos antípodas dos verdadeiros regimes de repatriamento de capitais, mais do que o “regresso” dos capitais o que, se pretende verdadeiramente com os processos de repatriamento é que o Estado se assenhore dos rendimentos a que teria direito se a cobrança da dívida tivesse sido efectuada aquando das transferências dos fundos. Se o regime de repatriamento propõe um perdão fiscal total, então, o que é que se pretende, efectivamente, com o tal repatriamento? Que vantagens concretas advirão para o Estado? Ora, o legislador entende que tais vantagens resultam do facto de as verbas repatriadas servirem para relançar a actividade económica-produtiva mediante a realização de investimentos por parte dos respectivos titulares. Estamos, insofismavelmente, em presença, de um verdadeiro QUI PRO QUO. Um autênctico bandalho, como diz “o outro”.

 


Como é que o Estado assegurará que os capitais repatriados se converterão em investimento? Mediante a criação de uma “polícia de investimento” cuja finalidade será a de obrigar, a todo custo, os titulares dos capitais repatriados a investirem no País? Obrigar as pessoas a investir em Angola viola grosseiramente os princípios da iniciativa privada e da liberdade económica. Nem todo o mundo tem a vocação para o empresariado ou o investimento. Ademais, a que tipo de investimento se faz referência? Aos que dão origem a rendimentos passivos(aplicação de capitais) ou aos que dão origem a rendimentos activos(desenvolvimento de uma actividade económica concreta)? Não é indiferente a resposta do quesito acima, na medida em que, só as actividades propulsoras de rendimentos activos dão origem a criação de valores e a empregos directos.


4. Condicionar o repatriamento ao regime da caducidade previsto no artigo 35,º da lei tributária angolana é outro dos erros crassos. A experiência internacional tem demonstrado que, tratando de fundos de origens ilícitas cuja impossibilidade de tributar resultou da utilização de meios fraudulentos pelos próprios contribuintes, o prazo de caducidade é precludido em ordem a proteger o interesse público no espírito da step transaction doctrine”cláusula anti abuso” (posição da OCDE). O simples repatriamento de capitais, considerado como um verdadeiro direito premial, por si só,já provoca algum dissenso social e doutrinário(possível subversão das funções do Direito Penal) . Agora, permitir, em prejuízo de toda uma colectividade, que, os detentores das fortunas ilícitas se escapulam, ao abrigo do regime da caducidade, de repatriarem os capitais ilícitos, pertença da colectividade, já raia a ridículo e, atenta, contra a subsistência do contrato social.


Ora ,basta lembrar que, se o regime de regularização excepcional tributária que vigorou em Portugal, comtemplasse, fundos obtidos ilicitamente e condicionalismos de ordem temporal no que toca aos seus pressupostos , o José Sócrates e tantos outros, não estariam, hoje, a braços com a justiça.

5. E no caso de um repatriamento parcial de capitias, quid iuris? Imaginemos que um cidadão tem uma fortuna no exterior e decida repatriar, para inglês ver, uma ninharia qualquer, por exemplo 100 mil USD, terá cumprido com a sua obrigação?


São tantos os questionamentos em torno do repatriamento de capitais que, como se pode compreender, nem numa perspectiva perfunctória, este projecto de lei é capaz de respondê-los satisfatoriamente.

Hoje, lembramos que em política tudo é possível e na política tudo acontece. Era uma vez “Angola decidiu repatriar os capitais[……..]”. Nos reencontraremos com a história. Até lá, só podemos dizer que, devemos, francamente, fazer melhor e, não com este amadorismo! Isto sabe a poucochinho, poucochinho, poucochinho, se não mesmo, a uma golpada de mestre. Se, por acaso, nos perguntassem qual o valor a atribuir a este projecto de lei, seríamos peremptório em afirmar que, o seu valor equivale ao valor que atribuiríamos ao zero quando colocado à esquerda de qualquer numeral.


Na impossibilidade de antevermos, qual Nostradamus, o desfecho deste novelo, apelamos, entretanto, sensatez e parcimónia no tratamento do assunto em pauta.


É hora de construímos o país a bem dos nossos filhos.

Por uma cidadania jurídica actuante, Angola avante!

*Jurista e consultor financeiro