Luanda - Nos últimos dias três acontecimentos motivaram a nos-sa reflexão de hoje sobre o serviço público e os servidores públicos. O caso Mingota, o caso do hospital geral e, finalmente, a ida do general Miala à Procuradoria-geral da República.

Estado o vale dos preguiçosos
Há empresas do Estado que foram milagrosamente registadas por privados
O Estado angolano não pode viver de vingançazinhas pessoais
Há alguma investigação em curso?

Infelizmente para nós, os gestores públicos fizeram do Estado um sorvedouro de incompetentes e de cunhas. Sob a alegação de que quem trabalha para o Estado tem um seguro vitalício, todos querem entrar para a função pública e os que lá estão querem que os seus familiares entrem. Hoje, felizmente, com a intervenção do Tribunal de Contas, salvo raras excepções, começa a ser obrigatório o concurso público e o preenchimento de vacaturas. Porém, a entrada desmedida de gente sem qualificação e, sobretudo, sem formação para a condição de servidor público fez com que o atendimento no funcionalismo público e o desempenho laboral nas entidades públicas sejam uma espécie de comportamentos pouco recomendáveis. Excessiva burocracia, maus tratos aos cidadãos, extravio de documentos, corrupção, arrogância dos gestores e funcionários superiores tudo acontece nas entidades públicas.

Nos hospitais e nas repartições públicas onde o atendimento aos cidadãos é diário e constante sentimos mais essa falta de valores e comportamentos por parte dos servidores públicos. Eles não estão lá pela missão de servir a sociedade ou porque reúnam condições psicotécnicas e profissionais para lidarem com o público. A maior parte está lá porque é preciso ter um salário fixo que, trabalhe-se ou não, cai no fim do mês. Mas ser servidor público tem custos. O primeiro custo é esse, o da responsabilização.

Quando acontecem casos como o de Mingota ou do Hospital Geral de Luanda é inevitável tiraram-se ilações políticas e responsabilizarem-se os responsáveis. É uma prática normal em países onde os servidores públicos têm consciên-cia da sua missão. O ministro da Saúde foi exemplar e merece todos os elogios pela coragem. A governadora de Luanda, mesmo parecendo exagerado, não tinha outro caminho.

Esta é a oportunidade para o serviço público começar a responsabilizar os gestores por mau atendimento ao público e, de um modo alargado, começar a pensar numa cultura do serviço público. Para não serem demitidos os responsáveis devem fica mais atentos e começar, por sua vez, a agir sobre os seus funcionários que não saibam ser servidores públicos. E assim, esperamos nós, se poderá abrir uma esperança de que gente mal educada, que não sabe atender os cidadãos, que se esquece do código do funcionário público, vá para a rua. Se a firmeza demonstradas por José Van-Dúnem e Francisca do Espírito Santo se alastrar para outros sectores o Estado vai deixar de ser o vale dos preguiçosos e os funcionários públicos vão ganhar consciência que o emprego não é só um seguro de vida como lhe chamam. Existem valores, regras e punições para o caso de violação a esses valores. É por isso, por coerência, que apoiamos as demissões das direcções dos hospitais. Não podemos passar a vida a pedir autoridade e firmeza do Estado e, depois, quando essas são exercidas passamos a defender o contrário. Não se trata de saber se houve incompetência ou negligencia. Trata-se uma decisão ética. Lembro o caso de um ministro português que pediu a demissão porque uma ponte caiu. Tem a ver com limites do que é aceitável e definitivamente não é aceitável que alguém morra por falta de assistência ou que uma paciente seja violada dentro do hospital. Temos de nos habituar a isso.

Por imperativos éticos, os responsáveis por casos de índole grave deveriam, eles próprios, tomar a iniciativa de colocar os seus cargos à disposição de quem os nomeou.

Essa é a firmeza que a PGR deveria manifestar também. Muitos os servidores deste país abandonaram os cargos sob suspeição de corrupção e desvios de fundos. Que se saiba não há casos destes na PGR. Houve até casos de ministros que se recusaram a entregar carros e gabinete. Diz-se de um que mandou retirar todo o mobiliário. Há dinheiro do Estado que foi parar a contas privadas. Há negócios do Estado que foram parar a mãos privadas. Há empresas do Estado que foram milagrosamente registadas por privados. Onde andou a PGR? Os jornais falam mensalmente de casos de corrupção ou suspeitos. Há concursos públicos viciados, há sobre facturação em negócios com o Estado. Há negócios com muito dinheiro, sem que se perceba se esse dinheiro é da droga, das comissões ou do Estado, já que não temos heranças valiosas que justifiquem. E PGR onde anda nisso tudo? O próprio Presidente da Republica já denunciou que há governantes a confundirem negócios do Estado com os pessoais. Há alguma investigação em curso?

A PGR, que é defensora do Estado, chamou o general Miala para nos convencer a todos que os casos acima referidos são de pouca monta perante uns telemóveis e uns carros, provavelmente uma quinta à guarda de Miala? No mínimo é um insulto à nossa inteligência. Somos todos uns totós que qualquer procurador adjunto bem falante serve para nos calar?

Seria um exercício normal e aplaudido por nós se fosse uma prática corrente. Como José Van-Dúnem, a PGR pode ter pretendido fazer uma viragem na sua actuação. Se é assim, temos de aplaudir, mas é estranho que queira começar com alguém que está preso e, portanto, sem possibilidade de fuga, quando cá fora, e até com passaportes diplomáticos ou de serviço, estão centenas e centenas de pessoas que devem explicações e bens ao Estado angolano. Dá a impressão de uma perseguição institucional a Fernando Garcia Miala, o que seria lamentável. O Estado angolano não pode viver de vingançazinhas pessoais. Não podem existir cidadãos de primeira e de segunda. Miala foi um servidor público com uma folha excelente. O facto de ter sido demitido e condenado num processo que, sejamos francos, nunca convenceu a sociedade, não pode fazer dele um inimigo público do Estado. O governo não precisa disso e o MPLA muito menos. Talvez a PGR queira, como também acontece muito em nós, engraxar o sistema e fazer um excesso de zelo. Mas é uma brincadeira de mau gosto. Essa perseguição ou, melhor dito, esse rigor na postura dos servidores públicos tal como não pode ser só com o Hospital Américo Boavida ou Geral de Luanda também não pode ser só com FGM. Num país em que há gente que dá festa porque a conta bancária chegou aos cinco milhões de dólares, a PGR não deveria ir mais a fundo? Os carros do Projecto Criança Futuro ou os telemóveis são mais importantes para o Estado que sabermos de onde vem os cinco milhões de dólares do lucro líquido de um cidadão que ainda há trinta anos andava a pé? Há gente que tem mais do que isso e que há 30 anos era igualmente pobre.

Temos de aplaudir a disciplina e a responsabilização. Miala deve entregar o que tem do Estado, mas a PGR que não nos atire areia para os olhos. Se quiser mostrar trabalho tem de ter a coragem de atacar os graúdos. E para não dizerem que são os jornais ou os frustrados, peguem nas palavras de JES sobre os negócios do Estado e privados. A menos que a PGR também pense que o Presidente estava frustrado quando, por mais de duas vezes, falou sobre isso e resolva contentar-se só em bater no preso para, como diz o povo, «ele nos sentir».

 

-- Nota: Consulte --
* Últimos artigos/relacionados publicados: - Ismael Mateus no Club-k

* Ismael Mateus
Fonte: SA