Luanda - Recentemente ouvi duas notícias nos meios de comunicação social sobre a criminalidade em Luanda e deixaram-me muito perplexo. A primeira passou numa rádio privada, um cidadão detido disse o seguinte: “fui detido acusado de violar uma criança. Estranhamente ao chegar aqui no comando fui apresentado aos jornalistas para ser entrevistado antes mesmo de ser ouvido primeiro pelo Procurador. Isto não é justo.” (sic).

Fonte: Club-k.net

A segunda notícia passou no noticiário de um canal da rádio pública e dizia respeito aos assaltos na Centralidade do Kilamba, protagonizados por uma criança de apenas 14 anos de idade. Na reportagem, o Jornalista entrevistou a criança e a mesma narrou como foi detida e o modo como tem feito os assaltos. No final da notícia chamaram-na de forma irónica “criança homem aranha do Kilamba.”


Coincidentemente as duas “entrevistas” ocorreram em instituições policiais. Como é que se explica que um cidadão é detido e em clara violação do n.º 4 da Lei n.º 25/15 de 18 de Setembro, é primeiro entrevistado pelos Jornalistas e só depois é apresentado ao Magistrado do Ministério Público.


Este procedimento que assemelha a um “pré – interrogatório”, para além de “esvaziar” o sentido e ratio do interrogatório propriamente dito viola o segredo de justiça, (art.º 70.º do CPP ), os direitos do detido e preso bem como as garantias do processo criminal tais como: do princípio da presunção de inocência (n.º 2, do art.º 67.º da CRA), do direito ao silêncio, al. f) do art.º 63.º da CRA “ ficar calada e não prestar declarações ou de o fazer apenas na presença de advogado de sua escolha”, do princípio da não auto incriminação, al. g) art.º 63.º da CRA “ não fazer confissões ou declarações contra si própria.” A não observância e respeito destes direitos e princípios pela Polícia é uma clara manifestação de um “direito penal do inimigo”, “do terror”, “do autor” e não do direito penal do facto, que hoje constitui paradigma do Direito Penal moderno e de um Estado Direito e Democrático.


Esta prática não é nova, verifica-se com maior frequência, nos chamados “crimes mediáticos”, nas operações policiais e conferem ao Detido um tratamento sub-humano transformando-o num “não sujeito processual” em vez de sujeito processual. Não pretendo com isto dizer que o Detido deve ser tratado como “Excelência”, mas apenas que seja tratado com dignidade inerente a sua condição de Pessoa Humana.


Na segunda notícia sobre a detenção de uma criança de 14 anos na Centralidade do Kilamba, a Polícia permitiu que a mesma fosse entrevistada pelo(s) jornalista(s) narrando todos os meandros da sua acção. Tal prática é de “bradar os céus” e puro exercício de populismo penal e policial.


A Lei n.º 9/96 de 19 de Abril (Lei sobre o Julgado de Menores) proíbe de forma inequívoca na al. d) do art.º 18.º “a utilização pelos meios de comunicação social da pessoa do menor para narração do facto susceptível de desencadear ódio, frustrações ou traumatismo de natureza pessoal ou familiar” e a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, de que Angola é parte obriga que os Estados tratem as crianças com Dignidade. Pergunta-se será que a polícia desconhece esta lei? Como, porque permitiu que a imprensa tivesse acesso ao menor ao ponto de entrevista-la? É mesmo com uma criança de 14 anos que a polícia quer “mostrar trabalho” na missão de combate ao crime? Será que a criança já foi conduzida ao Julgado de Menores ou levaram-na a um estabelecimento prisional e internado numa cela com adultos?


A polícia é um ente de bem por natureza, por isso na tarefa de prevenção e combate ao crime não necessita ser “populista”, “mostrar trabalho” violando a Constituição, a lei e os mais elementares direitos do Detido e Arguido. O crime não se combate violando o direito, é uma contradição.


Não faz sentido, a polícia, “atirar” a culpa e responsabilizar os Jornalistas, pela violação dos direitos e garantias dos Detidos e Arguidos, pois todas as “entrevistas” aos supostos delinquentes acontecem dentro de instituições policiais. Ademais, nenhum Jornalista faz cobertura de uma actividade policial sem ser convidado.


Deste modo, assiste total razão ao Prof. Doutor GERMANO MARQUES DA SILVA, aquando da sua intervenção na II Conferência Internacional de Direito Penal e Processo Penal, organizado pelo Centro de Estudo do Direito da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Angola, nos dias 5 e 6 de Junho de 2017, onde referiu que “ todas as polícias, têm por função defender a legalidade e garantir os direitos dos cidadãos (...) Um dos males das nossas sociedades é a busca de eficácia policial a todo o custo, (...) mesmo com arremedo da lei e dos limites das medidas de polícia que traçam os limites da sua atuação. Para tanto muito contribuem as séries policiais televisivas, erigindo como heróis os policiais que na busca de eficácia abusam dos poderes que as leis lhes conferem e condicionam a sua acção, tornando-se tão criminosos como aqueles que combatem e a merecerem pelos seus excessos mais grave castigo porque não só violam a confiança que a comunidade neles deposita, mas também porque subvertem a função para que são pagos. O Estado de direito democrático não pode tolerar polícias que abusem das suas funções ou se aproveitem delas, seja qual for a motivação”.


Em jeito de conclusão importa referir:

1. O Ministério Público não basta fazer apelos é preciso responsabilizar criminalmente as entidades policiais que permitem que o Detido seja “entrevistado” pelos Jornalistas antes de ser ouvido em primeiro interrogatório. O primeiro interrogatório de Arguido detido, nos termos da lei, é da exclusiva responsabilidade do Ministério Público;


2. A Polícia não deve transformar o Direito Penal num instrumento do “direito penal do inimigo”, “do terror”, “da guerra ao crime”, do populismo policial, mas sim num direito penal do cidadão, num direito pro homine, que se funda no respeito pela Dignidade da Pessoa Humana;

 

3. Os direitos dos Arguidos são um ganho da civilização e património do Direito Penal moderno. Não os observar e garantir o seu respeito é um retrocesso;

 

4. Aos Jornalistas permitam-me partilhar convosco para reflexão, as sábias palavras de Dom Filomeno Vieira Dias, Arcebispo de Luanda, “O Jornalista não deve ser generalista, até rima mas não combina”.