Luanda - Como nota introdutora, queira pedir desculpas, este texto é extensivo, tem o propósito de aprofundar o conceito da bicefalia e do partido-estado, no contexto da concentração dos poderes, como via propícia da acumulação primitiva do capital e da manutenção do poder autoritário e dominante. Que viabiliza, deste modo, a criação de instrumentos impeditivos contra a construção da democracia efectiva e alternante.

Fonte: Club-k.net


Logo, a bicefalia, no ponto de vista biológico, é uma criatura com duas cabeças, que resulta de anomalias ou de malformações que ocorrem durante o desenvolvimento embrionário ou fetal. Neste caso específico, a teratologia, um ramo da medicina, trata-se destes fenómenos, acima referidos, como matéria de pesquisa e de estudo. Note-se que, na natureza existe espécies anómalas, monstruosas ou malformadas com duas ou mais cabeças.


No ramo da política, a bicefalia refere-se essencialmente à presença de dois líderes, na mesma organização ou na mesma instituição, que disputam a mesma direcção, em busca da autoridade, da supremacia e da afirmação do poder. Nas instituições políticas do Estado, por exemplo, a bicefalia constitui um indicador evidente da discrepância existente dentro de um organismo. Pois, a não separação dos poderes públicos e dos poderes dos partidicos politicos, conduz geralmente à sobreposição de competências, com o potencial de provocar uma disputa de autoridade hierárquica. Noutras palavras, a falta de consenso e do reconhecimento recíproco entre as duas entidades politicas, de níveis diferentes horizontais, pode causar um ambiente indesejável.


Por isso, quando surgir a bicefalia numa sociedade, a nível da superstrutura do Estado, torna-se urgente e imperativo tomar medidas convenientes de pôr cobro a divergência existente, para que a situação interna de uma formação politica não ponha em causa a legalidade, a estabilidade e a ordem constitucional. Pois que, num Estado Democrático de Direito, os partidos políticos, além de constituir-se num dos pilares basilares de uma Nação, são eixos principais do poder público, que asseguram as instituições do Estado. Por isso, os seus Estatutos não devem apenas estar em consonância com a Constituição, mas sim, devem subordinar-se e obedecer escrupulosamente à Magna Carta, fazendo parte integral do Ordenamento Jurídico de um Estado Soberano.


Portanto, o que acontece actualmente no seio do MPLA, partido no poder, é preocupante; exige muita prudência e cautela; exortar os dirigentes deste partido governante agir com sentido de Estado e com espírito patriótico; salvaguardar o bem-comum; ter o bom senso, conforme ditam as regras da ética e da moral públicas. Todavia, sem contrariar a opinião pública, não acho que estejamos perante a bicefalia, por excelência. No meu entender, a bicefalia ocorre quando a colisão ou a disputa do poder estiver no mesmo nível vertical, da mesma organização ou instituição.


Neste caso específico, a suposta digladiação entre o Presidente da República, João Lourenço, e o Presidente do MPLA, José Eduardo dos Santos, situa-se a nível horizontal, em instituições diferentes, com competências distintas. Na verdade, o que acontece é que, o sistema politico angolano funda-se na partidarização dos órgãos de soberania do Estado. Neste sistema, o Partido MPLA fixou-se acima do Estado, e sujeitou o poder público à supremacia do Presidente do
Partido. Na altura em que o Presidente José Eduardo dos Santos acumulava todos os poderes públicos e partidários era difícil distinguir bem as duas entidades – Estado e MPLA. Em função disso, os cidadãos angolanos ficaram habituados a este regime político centralizador, autoritário e sectário, que subordina todos os órgãos de soberania do Estado ao Presidente do Partido MPLA.


Em consequência disso, Angola tornou-se uma propriedade privada da família do Presidente José Eduardo dos Santos, rodeada por um pequeno núcleo de famílias privilegiadas, de carácter oligárquico. Para melhor entendimento: “Uma oligarquia é um governo em que o poder está concentrado nas mãos de pequeno número de indivíduos ou de poucas famílias.” Portanto, o Presidente José Eduardo dos Santos assumia-se integralmente como dono de Angola, com poderes extraordinários de agir arbitráriamente, como Monarca Absoluto. Este foi o contexto real, dentro do qual, o erário público foi alvo de saque e de dilapidação extensiva, sob a política da acumulação primitiva do capital.


O objectivo estratégico desta política, era de criar ilicitamente um núcleo de indivíduos ou de famílias, e transformá-las num grupo dominante de capitalistas selvagens, capaz de assegurar o poder político, sustentá-lo e eternizá-lo – em nome do MPLA. Assim que, hoje em dia, este poder financeiro esteja à vista de toda gente. Em consequência disso, o país ficou mergulhado na falência absoluta, sem divisas, sem liquidez, sem capital adequado, sem capacidade produtiva, sem o poder de compra, e sem o poder de exportação e de importação de mercadorias e serviços. Enquanto, lá fora do país, se encontram avultadas somas de dinheiros (desviados) nas contas bancárias dos governantes, dos dirigentes do MPLA e das suas famílias.


Na mesma esteira, observava-se que, à medida que se concentrava riquezas avultadas na posse de uns poucos, aumentava igualmente a pressão enorme sobre o regime oligárquico. Tendo sido forçado para ampliar o leque de enriquecimento ilícito e de tráfico de influências. Razão pela qual, a corrupção institucional em Angola esteja aos níveis mais elevados de todos os órgãos de soberania do Estado – sem excepção. O que torna complexo e delicado o combate contra a cleptocracia, a corrupção, o nepotismo e a impunidade. Ali estará o cerne do problema, que tem sido mal-entendido, como se tratasse de uma mera bicefalia.


Enquanto, na verdade, se trata de uma questão de fundo, que visa salvaguardar o poder financeiro já adquirido ilicitamente, que tem estado a sustentar o poder político até hoje. Se olhar bem às duas alas divergentes, verás que, nenhuma delas esteja fora dos circuitos da corrupção e de desvios de fundos públicos. No fundo, é farinha do mesmo saco. Pois, a política da acumulação primitiva do capital tinha sido aceite e defendida tenazmente pela direcção do MPLA. Somente, o acesso à riqueza ficara restringido e controlado directamente pelo próprio Presidente do MPLA, José Eduardo dos Santos, como Chefe do Executivo. Este procedimento, de restrição de acesso à riqueza, provocara descontentamentos crescentes no seio do Partido, sobretudo nas correntes nacionalistas, que ficaram amordaçadas, excluídas e abandonadas à sua sorte.


Convinha reparar que, no seio do MPLA, existiram sempre correntes divergentes, com visões diferentes, com matrizes político-ideológicas distintas, que ficaram cristalizadas durante as várias etapas da luta. Ou seja, essas matrizes ideológicas divergentes, passaram por várias etapas de crispações internas, sem haver aproximação e reconciliação real e efectiva.

Agora, nas circunstâncias actuais, de transição, as rivalidades políticas estão novamente à superfície, com fim de alcançar o seguinte: Num lado, a defesa do capital financeiro que está em posse dos novos capitalistas, em torno do Presidente José Eduardo dos Santos e sua família. Noutro lado, a projecção e a consolidação do Poder actual do Presidente João Lourenço, apoiado por diversas correntes.


Apesar disso, o partido-estado é o «denominador-comum» que congrega as várias correntes do MPLA. Alias, o partido-estado, em termo filosofico, é uma «ideologia» do Partido, que define a Politica do Estado. Portanto, é dificil que seja facilmente alterado, a não ser que haja uma revisão profunda do ideário do MPLA. Veja que, nesta equação, o poder financeiro constitui o factor chave que sustenta as politicas do partido-estado, assente na partidarização da economia do país; na partidarização das instituições financeiras; na partidarização das instituições públicas; na partidarização das forças armadas e da policia; na partidarização dos órgãos da Justiça; na partidarização dos órgãos da administração eleitoral; na partidarização da sociedade; no trafico de influências; na fragmentação da oposição politica; e no culto de personalidade.


Na base disso, verificou-se no país, de uma forma generalizada, a tomada de «medidas compulsivas de condicionar tudo à militância partidária», para ter acesso à função pública, aos mercados de trabalho, ao sector produtivo, e aos circuitos comerciais e bancários. Mesmo a venda nos mercados e nas praças é feita através do Cartão de Membro do MPLA, da OMA ou da JMPLA. Por isso, a politica da acumulação primitiva do capital está intrinsecamente ligado ao sistema do partido-estado, que serviu de base de sustentação da arbitrariedade, da impunidade, da corrupção e do nepotismo. Tudo isso deveu-se a ausência absoluta da legalidade, da fiscalização, da prestação de contas, da transparência, da responsabilização e do equilibrio politico.


Infelizmente, este conceito centralizador, do partido-estado, está fortemente enraizado no seio do MPLA. Mesmo a teoria da implementação das autarquias está sendo concebida na base do partido-estado, em que, as administrações municipais (de cariz partidário) serão transformadas em autarquias locais, dando-lhes uma legitimidade legal através do sufrágio universal, sem que haja alterações de fundo, na sua funcionalidade – como órgãos autónomos e independentes do poder central.


Analizando bem a realidade do país, notarás que, o poder do MPLA reside neste sistema de partido-estado, que lhe dá poderes absolutos de estabelecer a hegemonia política e o monopólio financeiro e económico. O que torna dificil extirpar este conceito totalitário das mentes dos quadros do MPLA. Por isso, qualquer alteração do status quo, não dependerá apenas da euforia das pessoas, como acontece agora, mas sim, da mudança da mentalidade dos angolanos, em perceber bem os fenómenos do mundo globalizado, e agir em conformidade com os valores democráticos das sociedades modernas, que buscam o pluralismo politico, alternância regular do poder, a liberdade, a igualdade, a justiça e a boa governação.


Alias, o grande desafio do Presidente João Lourenço será de proceder à Reforma pontual da Constituição, de modo a separar as eleições presidenciais das eleições legislativas, para que haja a distinção explícita aos eleitores no acto da votação e do escrutínio. Pois, é no princípio do «cabeça de lista», do artigo 109o, da Constituição, onde reside a bicefalia e a ambiguidade em distinguir (na eleição) os dois órgãos de soberania do Estado.


A Reforma Constitucional é imperativo de modo acabar definitivamente com o sistema atípico, imposto pelo Presidente José Eduardo dos Santos, com propósito de confundir o processo eleitoral, esconder-se atrás do Partido, e evitar a eleição directa do Presidente da República e a eleição nominal de cada Deputado, no seu Circulo Eleitoral. Neste sistema atípico, em vigor, o Presidente da República e os Deputados não são eleitos por méritos próprios, através de círculos eleitorais bem definidos, em que os eleitores sejam capazes de identificar o Candidato, avaliá-lo, escolhê-lo e responsabilizá-lo directamente durante o cumprimento do seu Mandato no Parlamento.
O sistema atípico, de cabeça de lista, de Círculos Provinciais e do Círculo Nacional, não só cria ambiguidade no acto da eleição, mas sobretudo, retira «autonomia representativa» do Deputado e o «poder fiscalizador» dos eleitores. Neste sistema atípico, os eleitores não elegem os Deputados, muito menos o Presidente da República. Elege, sim, os partidos políticos, que têm apenas a responsabilidade abstracta junto dos eleitores.


Em síntese, a bicefalia, desde que não degenerar-se na violência, é superável através da subordinação dos Estatutos dos Partidos à Constituição da República, como Magna Carta do Estado Angolano. Alias, a presença do Presidente José Eduardo dos Santos na Reunião do Conselho da República, do dia 22 de Março de 2018, foi um sinal positivo de reconhecimento da superioridade hierárquica da figura do Chefe de Estado.


Quanto ao combate à corrupção, à impunidade e ao nepotismo, é fundamental que haja firmeza, coragem e autoridade, em responsabilizar duramente os prevaricadores, que causaram e continuam a causar danos enormes ao tecido humano angolano, saqueados os Cofres do Estado, endividado o país, e mergulhando-o na falência absoluta. Mas, tudo isso deve ter em conta a sensibilidade deste processo, por facto de envolver figuras de destaque, que tiveram a responsabilidade máxima de governação do país desde a Independência Nacional em 1975.


Logo, a responsabilização destas figuras de relevo exige o patriotismo, a prudência, a flexibilidade, a sabedoria e o sentido de Estado, para que a justiça seja feita na base do princípio da igualdade perante a lei. Sem ignorar a necessidade imperiosa de salvaguardar a soberania, a legitimidade do Estado, a credibilidade das instituições públicas, a unidade nacional, a legalidade, a estabilidade, a justiça e o bem-estar social.


Como nota de advertência, os Homens sensatos estão sempre atentos aos factos da História Universal da Humanidade. O que quer dizer que, as ditaduras mais ferozes, da época contemporânea, sempre emergiram nos momentos de profundas crises dos países, quando o povo estiver bem desesperado e ansioso de surgir na cena politica um Salvador. Logo, por analogia, Angola, além da crise financeira, o regime debate-se com a depreciação profunda de valores éticos e morais, que põem em causa a estabilidade das instituições do Estado.


Por esta razão, que seja aconselhável não se deixar cair na ilusão de apostar-se no mesmo partido, que mergulhou o nosso país na ruina. Pois, a democracia plural constroi-se num ambiente de equilibrio, com partidos fortes, dinâmicos e competitivos. Caso contrário, torna-se viável a consolidação do sistema do partido-estado, com as suas consequências nefastas.

Luanda, 31 de Março de 2018