Luanda - Assume que nunca usou a condição de filha do actual presidente do Parlamento para ter sucesso. Como empresária, lança dúvidas sobre os benefícios para Angola da Zona de Comércio Livre, critica os bancos “por sufocarem” os empresários, acredita que a crise é passageira e apoia o combate à corrupção, apesar de lançar dúvidas sobre o sucesso da empreitada.

Fonte: Valor Economico

O combate à corrupção é uma das bandeiras do Governo. Acredita no seu êxito?

A corrupção combate-se com melhor educação e a responsabilização dos agentes públicos e não só. Sem medidas criminais exemplares, fica muito difícil de acreditar. Mas, só de existir esta manifestação clara do novo Governo, já é uma verdadeira conquista.

 

Concorda com quem pensa que o fim da corrupção e outras práticas semelhantes representam a falência de grupos empresariais cujo sucesso sempre esteve dependente destas práticas?

Não. Haverá uma organização. Todas as grandes riquezas mundiais vieram de situações que se acreditam ilícitas. Angola não iria fugir a este paradigma. Agora, não pode ser regra. Os conflitos armados mexem com a organização do Estado. A estabilidade política impõe regras claras e justas, onde a riqueza assente no rendimento justo é obrigatória para todos.

 

A nova lei do investimento estrangeiro acaba com a obrigatoriedade da parceria com nacionais. Concorda?

Alteramos tantos procedimentos legais. Nunca percebi, sinceramente, o seu propósito. Uma lei que impunha as parcerias estrangeiras aos empresários nacionais, humildemente falando, tem, na sua génese, um cariz proteccionista. Ao retirar-se esta obrigatoriedade, abre-se a liberdade às iniciativas estrangeiras que gozam de toda a protecção dos seus estados para a procura de novos mercados e esquecemo-nos de capacitar os nacionais. Precisamos de cair no realismo político, social e económico de outro modo. Caminhamos para um monopólio estrangeiro, já existente, só que agora liberalizado e legalizado pelo nosso Estado de direito e democrático.

 

Mas muitos empresários angolanos também defendiam o fim desta obrigatoriedade. Como explica esta posição?

São as ambiguidades tipicamente angolanas. De certeza que são os angolanos com dupla nacionalidade ou duplo interesse. Muito mais virados para o mercado estrangeiro do que para o nacional. Grande parte dos empresários nacionais, se tem capacidade financeira, não tem a tecnológica e, para criar maior dificuldade, a nossa banca de investimento ainda não está tão consolidada de modo a criar-se um proteccionismo aos empresários nacionais sem injecção de capital financeiro estatal. Ou seja, a nossa ‘garantia real’ ainda é o tão sonhado negócio bilionário com o Estado que, na prática, já não existe. Quem se fez rico! Optimo! Quem não se fez, vira servente! Só podemos depreender isso. Vamos caracterizar estas posições de os ‘chamados interesses instaurados’.

 

Quando fala em possível monopólio estrangeiro está também a dizer que a Zona de Comércio Livre pode ser mau para o empresariado nacional?

Sinceramente, só posso considerar que sim. Porque, dentro das políticas macroeconómicas que foram traçadas ao longo dos anos pelo nosso executivo, permitiria um início de processo na Zona de Comércio Livre certamente competitiva com as necessárias adaptações! Os nossos ditos empresários, os chamados fortes, só apostaram em negócios transaccionáveis e nada produtivos para o nosso PIB. Há uma certa relatividade no que a Elizabete diz? Não. Há realismo. Mostrem-me uma indústria nacional forte! Autónoma! Em que os seus custos de produção só dependam dos factores produtivos internos! O que se espera de nós, na Zona de Comércio Livre? Se nem a nossa moeda nacional é capaz de nos segurar e estruturar... Só um milagre.

 

Tem tido contactos com potenciais parceiros estrangeiros. Quais têm sido as maiores preocupações que apresentam?

O repatriamento dos capitais investidos. Temos de ser flexíveis. Quem investe no nosso país está a contribuir para a construção de um património económico e social. Agora é bem verdade que o valor investido só deve sair depois da devida maturidade do negócio e formação contínua dos quadros nacionais.

 

“A crise é temporária”

Como tem estado a gerir a dificuldade de importação de matérias-primas?

Essa questão é estrutural, é uma questão de Estado. Primeiro, não podemos brincar aos empresários, temos de nos preparar para tudo, para os bons e maus momentos, sermos empresários de verdade. Hoje, os problemas estão aí, temos de os enfrentar, procurar soluções. As empresas que estão bem estruturadas vão sobreviver. A crise é temporária e é um teste para filtrar quem realmente é empresário. Estamos a viver também a problemática da escassez de divisas, mas temos parcerias estratégicas lá fora que ainda nos alimentam.

 

Não tem dificuldades?

Temos fornecedores que, mesmo sem divisas, dão os produtos e, na medida que vamos conseguindo, liquidamos as dívidas. Dentro dos próximos tempos, com os nossos parceiros, vamos montar uma unidade de fabrico de cartões, por exemplo, ainda este ano. Vamos também produzir internamente o milho e, no âmbito de uma parceria estratégica, vamos montar uma empresa que vai fornecer vacina animal. Há problemas, mas o desejo de vencer é maior.

A fazenda Pérola do Kikuxi mantém a liderança na produção do ovo?

Representamos 60% da quota do mercado. Um dos grandes segredos é a programação da reposição dos bandos.

 

Qual é a facturação anual da Fazenda Kikuxi?

A facturação anual, com a venda de ovos e galinhas, é de cerca de oito mil milhões de kwanzas.

 

Com estas dificuldades, haverá necessidade de aumentar o preço do ovo?

Produzir ovo é caro, partindo da importação de matéria-prima, água, energia, enfim, tudo isso influencia no preço final. O preço oficial está agora, fixado em 40 kwanzas. É justo. Agora no mercado informal, ronda os 70 a 100 kwanzas, o que já não se justifica.

 

Recentemente, disse que estavam com dificuldade de explorar a 100% a Solmar, fábrica de processamento de peixe, que inauguraram recentemente. Este cenário mantém-se?

Ainda não está a funcionar a 100%, devido, sobretudo, à escassez da principal matéria-prima, o peixe.

 

Qual é o problema, visto que o país tem mar suficiente?

Falta um plano concreto para o devido desenvolvimento das indústrias locais, sem recorrer às importações dos insumos. O processo industrial é uma integração. Nunca pode ser visto como objectivo separado, individualista, sem comprometimento com as políticas do executivo.

 

Como pensa inverter o quadro?

Continuar a trabalhar na busca por melhores soluções. Só paro, se o país parar e penso que tal não vai ocorrer.

 

Esta dificuldade pode ser entendida como resultante de alguma falha na elaboração do estudo de viabilidade?

Esta falha deve-se a um único propósito, a não organização das principais estruturas que asseguram a nossa actividade. Não há nenhum estudo de viabilidade que funcione, caso as instituições não coloquem as mãos nos agentes económicos que agem de má-fé. Muitas licenças atribuídas beneficiam o mercado informal.

Vai conseguir honrar o compromisso com a banca?

É uma questão de honra. Vamos, não tenho qualquer dúvida disso.

“A banca sufoca”

Que avaliação faz da banca?

Devia ajudar os empresários em vez de os sufocar. Em muitos casos, exigem garantias que quem está a começar não tem. É um debate que deve ser levantado, tem de se rever alguma coisa de modo a viabilizar os projectos.

 

Os bancos acusam os empresários de apresentar projectos pouco convincentes. Para que lado pende a verdade?

Sem uma banca realmente vocacionada para a banca de desenvolvimento, nunca saberemos. Existem erros de ambos os lados, o certo é que, quem perde é o nosso país.

 

Tem alguma facilidade em aceder ao crédito bancário por ser quem é?

Se assim fosse, já estava na lista das mais ricas, pelo menos, de África. Não faço uso das prorrogativas políticas e quando tentaram colocar-me nesta condição, retirei-me educadamente. Busco uma postura muito natural. Falando educadamente com quem decide e defendendo aquilo que acredito e os projectos que tenho em carteira.

“Conto com o apoio de homens”

 

É fácil gerir homens?

O mais complicado não é gerir homens, mas gerir pessoas. Gerir pessoas é muito complicado. Mas hoje, o angolano já não olha para o sexo, mas para a competência e para os planos em que todos se revejam. Conto com o apoio de muitos homens. As políticas não são femininas, mas de todos.

 

Quais são as principais características, virtudes e defeitos, dos trabalhadores angolanos?

Sentido de responsabilidade, pontualidade e pressa em ascender sem aprender, na prática, que o sucesso se alcança com trabalho, paciência e humildade. Embora seja uma postura de poucos, quando focados nos seus objectivos, são uma verdadeira mina de ouro. São os chamados ‘diamantes brutos’, que podem ser tão bons como os demais no resto do mundo. Só que, lá fora, é uma regra básica e, em Angola, uma raridade.

 

Na generalidade, o gestor angolano põe em prática o princípio, segundo o qual ‘o principal recurso das empresas são as pessoas’?

Quem não procede desta forma está a lançar-se sozinho para o abismo. Ainda há muitas injustiças no mercado de trabalho. No entanto, há novas formas de actuação dos gestores angolanos, muito assentes no concidadão. Muito se deve também a um posicionamento melhorado do perfil do trabalhador.

 

Há quem diga que as mulheres, quando assumem cargos de direcção, se tornam prepotentes. Concorda?

Acho que não. Há características próprias dos homens e há características comuns das mulheres. A mulher, por natureza, reage de forma emocional, mas não é por prepotência. Eu tenho o cuidado de tomar decisões sem olhar para as características, se são masculinas ou femininas.

 

Que avaliação faz da presença de mulheres na agro-indústria?

Ainda são poucas e com uma forma de trabalhar tradicional. Temos ajudado essas pessoas no sentido de evoluírem, virarem para as grandes indústrias. As mulheres não devem olhar para o género como obstáculo. Devem, primeiro, saber o que querem fazer, unirem-se com as boas pessoas, porque este sector ainda precisa de mais mulheres.

 

Que análise faz do empresariado nacional?

Embora muito competitivo, é muito individualista, não persegue os interesses comuns, infelizmente.

 

Apesar de ser filha de quem é, é muito crítica pela forma como é tratado o sector empresarial. Porquê?

Nunca tinha prestado atenção. Quem vive os problemas e sente deve manifestar-se. Não sei se as pessoas que privam comigo na condição de empresária me vêem como filha de… Busco demarcar-me e só falo na condição de empresária.

 

Pensa um dia deixar o mundo empresarial para abraçar outra carreira?

Vivo um dia de cada vez. Sem deixar de me capacitar para novos rumos ou desafios. Qualquer novo objectivo, que me retire da vida empresarial, terá de ter uma correlação com todo o meu trabalho reconhecido. Ainda tenho algum tempo por estas áreas, sempre inovando.

 

A política é uma possibilidade?

Dos maiores orgulhos que sinto do meu pai, certamente, é pela sua carreira política. Todo o pai quer ver um dos filhos a seguir o seu trilho. Há pessoas que privam connosco e perguntam o porquê do meu pai não me lançar no mundo político. O meu pai responde com o silêncio e eu com um sorriso. Ser uma hipotética seguidora do meu pai não é tarefa fácil. Se acontecer, será muito natural, sem cunhas, não é essa a nossa postura. As pessoas não são só importantes fazendo política activa. Se calhar, o meu trabalho junto das mulheres zungueiras é mais impactante do que qualquer acomodação. Por enquanto, estou realizada nesta condição de empresária.

 

É a favor ou contra as quotas de mulheres para cargos de direcção e chefia?

Não partilho essa ideia. Homem ou mulher, desde que tenha força e capacidade, não precisa de quota. É uma medida discriminatória, que dá a aparente imagem de equidade e, na verdade, não tem impacto. As oportunidades deveriam ser iguais e homens e mulheres a concorrerem em igualdade de oportunidades. Quem é capaz não depende de quotas. Nós, mulheres, já provámos que somos capazes.

 

Quais são as conquistas que as angolanas já alcançaram para provarem que são capazes?

Tantas. Pena que os homens só mencionem aquelas que sejam necessárias por conveniência. Pegue na história das mães dos grandes homens do nosso país e depois diga-me se o mérito é dos pais ou das mães.

 

Está satisfeita com a representação feminina nos cargos de chefias nas diferentes áreas?

Não. Há muita mulher que, com oportunidade, faria mais e melhor, comparativamente a muitos homens que estão em lugares de acomodação sem apresentar resultados.

 

Quais são hoje os grandes desafios da mulher angolana?

Provar, de forma sistemática, que é capaz.

 

Como caracteriza a mulher angolana no geral?

Guerreira, astuta, perspicaz, com sentido de dever e obrigação muito raro. A nossa sociedade só ainda não percebeu que grande parte dos grandes homens, ‘senhores doutores’, foi educada por viúvas, mães solteiras, que foram atiradas com os seus filhos para um cruel abandono.

“Quis sempre ter poder de decisão”

 

É jurista, mas destaca-se no mundo empresarial onde já venceu um prémio. Qual é o seu segredo?

De facto, no ano passado, venci o prémio Sirius na categoria de empreendedora do ano. Foi e continua a ser uma surpresa e uma honra porque não esperava. Trabalho por objectivos e não por prémios, mas, quando o reconhecimento chega, é um orgulho. Quando decidi abraçar o mundo do empreendedorismo, fi-lo por perseguir um objectivo de realização e não por prémios. Mas, quando chega de modo natural, é um orgulho. Sempre defendi, desde criança, que as mulheres podem ser aquilo que elas quiserem, dentro da capacidade e fragilidade de cada uma. Não é uma questão de género, mas sim de mentalidade e determinação daquilo que cada uma das mulheres quer buscar para si.

 

Em que circunstâncias se tornou empresária?

Estudei no Nzinga Mbandi. Outras meninas sonhavam ser médicas, aeromoças e eu sempre disse que seria uma empresária de sucesso. Quis sempre estar num espaço de euforia e de poder de decisão. Foi um sonho, mas, até à concretização, tive de trabalhar muito.

 

Qual foi o primeiro projecto que geriu?

Muito cedo, em 2006, estava em Portugal a estudar e criei, em Angola, uma empresa de eventos, a Kee-Eventos. Na altura, pedi autorização ao meu pai [Fernando da Piedade Dias dos Santos, actual presidente da Assembleia Nacional], mas ele disse-me para esquecer e que, se avançasse, seria por conta própria. Avancei, mas depois retirei-me da sociedade porque faltou coerência e transparência da parte dos sócios. O projecto perdeu a essência. Sai com a minha dignidade, pedindo apenas que se salvaguardasse os empregos dos funcionários.

 

Teve alguma inspiração familiar?

Não. Por incrível que pareça, e perante a minha insistência, só uma pessoa arriscou em acreditar nesta possibilidade. A minha mãe, já falecida, foi uma jovem militar e, naquela altura, não tive ninguém da família que fosse empresário, até porque o sistema empresarial angolano é jovem. A ideia era trabalhar num sector que me motivasse sempre e o mundo empresarial era um deles.

 

Hoje ainda nota esta falta de coerência nas sociedades?

Muita. Há luta por dinheiro e falta de transparência. No meu caso, quando me deparo com estas lutas, prefiro lutar pela minha dignidade. Luto pela justiça, nunca por dinheiro. O dinheiro é o resultado de trabalho e persistência.

 

É acusada de beneficiar da influência do seu pai?

Qualquer um de nós tem um pai e uma mãe, carpinteiro, pedreiro, etc. Eu sei qual é a intenção da pergunta. Sou sim filha do senhor Fernando da Piedade Dias dos Santos (‘Nandó’), mas sempre procurei não associar a imagem política do meu pai aos projectos empresariais, embora ele seja um observador atento do que faço.

 

Incomoda-a as opiniões de que o seu sucesso empresarial se deve, essencialmente, ao estatuto político e social do seu pai?

Sinceramente, não. As pessoas têm direito de emitir a sua opinião sem desmerecer, naturalmente, o respeito e a dignidade dos outros. Desde que esteja consciente das minhas obrigações e dos meus defeitos...

 

Quantas empresas gere actualmente?

Tenho como empresa principal a Deside, da qual sou accionista e administradora. A mesma, neste momento, tem um universo de 32 empresas, entre as quais a Fazenda Pérola do Kikuxi, a Avikuve, a Kikovo, a Nutrimix, a Palma, a Solmar e alguns projectos que vão surgir, brevemente. Umas já estão a funcionar, mas sem apresentação pública. No total, criamos cerca de mil empregos directos.