Lisboa - O segundo livro de José Reis, um dos sobreviventes do 27 de Maio de 1977, é lançado este sábado e analisa as causas do episódio de ajuste de contas, no interior do MPLA, que terminou com o assassinato de muitos milhares de pessoas. Por

*Luis Leiria
Fonte: Esquerda

Um ano depois de ter publicado o seu primeiro livro, “Angola: o 27 de Maio – Memórias de um sobrevivente”, José Reis volta às livrarias com a segunda parte da obra, desta vez intitulada “A História por Contar”. Os dois livros são complementares, como explicou nesta entrevista ao Esquerda.net. Desta vez o autor relata o que, no seu entender, ainda não está contado e é a base para se perceber o que foi o 27 de Maio e por que aconteceu.

José Reis era um destacado militante do MPLA quando foi preso no dia 30 de maio de 1977, acusado de ser “fraccionista”. O relatório do Bureau Político do MPLA nomeia-o na página 19 como tendo feito parte de um grupo de quatro militantes, um “apreciável conjunto” que funcionava como o “cérebro que analisa os factos e os documentos e planifica as ações” dos partidários de Nito Alves.

Só seria libertado dois anos e quatro meses depois, sem nunca ter sido julgado. Nesse período, esteve preso, foi torturado na cadeia de São Paulo, e depois internado num campo de trabalhos forçados. Um dia, chegou a cavar a própria sepultura, sendo salvo in extremis por uma contra-ordem.

O livro é lançado este sábado dia 26, às 16 horas, em Lisboa, na Casa de Goa (Calçada do Livramento, nº 17)

Este já é o segundo livro que publica sobre o 27 de Maio de 1977. Qual é a relação com o anterior?


O primeiro foi um livro de memórias de um sobrevivente, onde acabei por dar voz àqueles que já não o podem fazer. É um livro em que falo da experiência que tive, daquilo que aconteceu e que vi acontecer aos outros. Não deixei nesse livro de falar nos algozes, nos torturadores, nos responsáveis por toda aquela barbárie.

Neste segundo livro o que pretendo é dar a conhecer o meu ponto de vista sobre as razões do 27 de Maio.

Portanto, os livros são complementares…
São. E os títulos mostram-no: o primeiro é as “Memórias de um Sobrevivente" e o segundo é “A História por Contar”, que contém as coisas que acho que não estão contadas e são a base para se perceber, do meu ponto de vista, o que foi o 27 de Maio e por que ele aconteceu.

E o que foi o 27 de Maio?
O 27 de Maio foi basicamente a forma bárbara que os dirigentes do MPLA encontraram para anular uma corrente de opinião que estava de acordo com o programa do MPLA, mas tinha um condão muito especial: eram comunistas e tinham de ser retirados do Movimento. Ou seja: o Movimento ia ser transformado em “partido da classe operária”, partido “comunista”, o socialismo que nos foi dito que íamos seguir era o socialismo científico, o socialismo adjetivado pelo marxismo-leninismo, é isso que está escrito nas declarações e em todos os documentos do movimento… Mas, depois, foi isso o que não aconteceu. Quando criaram o partido “marxista-leninista”, os marxistas-leninistas não estavam na sala. Ou estavam mortos, ou estavam presos.

Porque é que isso aconteceu?
Por causa das características do movimento de libertação nacional, que tem no seu seio todos aqueles que o colonialismo empurrou para o nacionalismo. Mas quando chega a hora de mudar os programas – e o MPLA tinha-o, o programa menor e o programa maior – acabaram por vencer os nacionalistas que se conluiaram, penso eu, com a social-democracia que Neto defendia, não na teoria, mas na prática.


Agostinho Neto fazia discursos inflamados de marxismo, mas aliou-se aos nacionalistas mais estreitos, representados num comité central muito dividido, com poucos marxistas mas muitos nacionalistas que começaram logo por atacar Nito Alves, o homem que se apresentou como o comunista do MPLA. O que é engraçado é que a primeira grande ofensiva contra os comunistas do MPLA foi em 1963, quando correram com o Viriato da Cruz. Ele era um marxista, tinha uma tendência maoísta, mas isso não impede que tenha sido a cabeça e o cérebro de todo aquele movimento – ele fez tudo: programa, a declaração de 1956… mas foi arredado. O MPLA começou por arredar um comunista em 1963 e acabou em 1977.

Ao apresentar assim o 27 de Maio, coloca toda a iniciativa do lado do Agostinho Neto. No entanto, naquele dia houve uma série de iniciativas militares por parte dos que partilhavam as opiniões do Nito Alves…
Houve iniciativas militares, posso até achá-las um pouco musculadas – por exemplo, ir à cadeia de São Paulo retirar os presos foi um ato musculado. Tomar a Rádio Nacional e usar os seus microfones para convocar o povo para uma manifestação também foi um ato musculado. Mas não houve mais.

Houve também idas a casas de pessoas ligadas ao Neto para prendê-las...
Sim, ir ao meu prédio, como conto no primeiro livro, buscar o chefe da cadeia também foi um gesto musculado mas para se ir a uma cadeia libertar quem lá está dentro, é melhor antes ir buscar o chefe, porque ele é que tem a chave para abrir a porta. Enfim, houve de facto algumas movimentações musculadas, mas a resposta foi muito mais musculada.

Mas a que é que atribui essas iniciativas de ir à cadeia, de ir à rádio… O que se pretendia?

As pessoas que se movimentaram nesse dia, quer indo para a Rádio Nacional, quer indo para a cadeia de São Paulo, quer marchando para o Palácio não estão cá para contar o que se passou. Eu, por exemplo, que sou acusado de ser coadjuvante de “cérebros”, dos “iluminados” do golpe, não saí de casa. Nem sabia que ia haver golpe de Estado, ou o que quer que seja. Portanto, é muito estranho que pessoas acusadas de golpistas, de fraccionistas, de terem responsabilidade, não soubessem o que se estava a passar. O meu “chefe” era muito mau, não me avisou. Não me disse “olha, amanhã vai haver um golpe de Estado, a tua parte é esta, faz isto ou faz aquilo.” Neste livro, tento analisar a declaração do Bureau Político que saiu logo após o 27 de Maio, com a data de junho, onde se relatam os avanços e os recuos que foi havendo, desde o dia 22 de maio, data da reunião do Comité Central que expulsou Noto Alves e José Van Dunem, até o dia 27. Segundo o Bureau Político houve várias tentativas adiadas, uma grande confusão. Mas quem conta a história são os vencedores. E quem perdeu tem de andar a coscuvilhar e a ouvir A, B e C, juntar as pontas para saber exatamente o que se passou naquele dia. Eu ainda não sei.

Como vê o papel dos cubanos e dos soviéticos nestes acontecimentos?
O papel dos cubanos é diferente do dos soviéticos. Acredito que tenha havido contactos entre Nito Alves e os cubanos, Nito Alves e os soviéticos, para estarem avisados que no dia 27 ia haver uma convulsão qualquer. Acontece que Fidel Castro tinha estado em Angola uns meses antes e avisou publicamente, num comício, que defender Neto era defender a revolução. E acho que não se levou em linha de conta este aviso. É claro que se tivesse havido um golpe militar de força por parte do Nito Alves, as forças militares mais bem apetrechadas, como a Nona Brigada, estavam sob a sua alçada, e portanto com grande facilidade se tinha tomado o poder.


Eu nunca dei golpes de Estado mas, daquilo que andei a ler, toma-se o poder capturando quem está no poder. Há uma história que me é contada, agora, que diz que Monstro Imortal, um dos acusados de ser cabecilha do golpe, passou toda a manhã com Agostinho Neto. Se isto for verdade, é estranho que o homem que vai dar o golpe de Estado passe a manhã com o homem que vai ser alvo do golpe de Estado e nem o assusta, não lhe faz nada.

Por isso há histórias que precisam ser muito bem contadas, mas, como disse, a história está contada ainda só pelos vencedores.

De qualquer forma, os cubanos tiveram um papel decisivo para o desfecho…
Sem dúvida. A partir do momento em que os cubanos entraram em ação, com os seus canhões, acabou.

Não deixa de ser simbólico que seja a voz, em espanhol, do cubano Moracén Limonta a que anuncia aos microfones que a Rádio Nacional voltou ao controlo dos partidários do presidente angolano.
Exatamente.

Ao mesmo tempo, os soviéticos ficaram a olhar.
Ficaram a olhar. No dia em que fui preso, junto com outros 9 ou 11 companheiros, éramos todos de tez clara, estávamos no quintal da DISA, já em trajes menores, preparados para a primeira fase, que era a fase da pancada, comandada por um homem chamado Jeitoeira. E quando já tinha sido dada a ordem para nos começarem a bater, os cubanos presentes estavam perfeitamente prontos para entrar na festa. E lembro-me de olhar para o lado e ver que a relativamente poucos metros estava um grupo de pessoas que se percebia que eram os soviéticos, e estavam impávidos e serenos, afastados daquela confusão que estava a haver ali. Eu olhava para eles como quem diz: “Olha, vejam lá se me dão a mão porque isto aqui está a correr muito mal.” Mas ficaram impávidos e serenos.


Os soviéticos não participaram na repressão. Os cubanos fizeram a repressão. Porquê? Vamos continuar a investigar as relações Cuba – União Soviética.

Há quem especule que os cubanos demoraram um pouco a entrar em ação porque o Fidel não queria dar a ordem sem consultar os soviéticos antes. Acha isso possível?
Acho que não. Acho que os cubanos já foram para Angola – e bem – um pouco “à revelia” da União Soviética. Há quem diga que os aviões já vinham no ar com os soldados quando os soviéticos tiveram conhecimento. Ou seja: havia uma certa rebeldia da parte de Fidel Castro em relação aos soviéticos. Mas isso são outras histórias.

Agora, no dia 27, consta que o Onambwe terá ido à Missão Cubana mais do que uma vez e só à terceira é que conseguiu que eles interviessem. Mais uma história que não se compreende: como é que se dá um golpe de Estado e se deixa o Presidente da República com o telefone ligado a Cuba para poder pedir ajuda. As telecomunicações seriam uma das primeiras coisas a cortar.

Há interpretações que dizem que a iniciativa do lado do Nito Alves no 27 de Maio é uma tentativa de fazer uma insurreição pacífica, ou pelo menos de fazer uma manifestação de rua que pressionasse o Agostinho Neto a mudar de rumo e afastar a ala mais social-democrata. Que pensa disso?
Neste livro analiso os acontecimentos e chamo à “coisa” três nomes. Insurreição, golpe de Estado ou manifestação. Pretendo teorizar um pouco aquilo que entendo que é uma insurreição, o que é um golpe de Estado e o que é uma manifestação. Se aquilo foi uma insurreição, foi muito mal preparada, porque as insurreições não se fazem assim. Pelo menos é o que está escrito nos livros. Se foi um golpe de Estado, pior ainda. Quando se tem o poder militar e o povo – e ninguém pode dizer o contrário, o povo estava lá – o golpe de Estado torna-se muito simples. Acontece que também aprendi que os comunistas não dão golpes de Estado. E isso Nito Alves escreveu num texto sobre a dialética e a guerrilha. Portanto, eu fico-me pela manifestação. Que pode ser mais ou menos ordeira, mais movimentada ou não, mas houve. As pessoas foram convocadas para uma manifestação junto ao Palácio precisamente para pressionar Agostinho Neto a tomar algumas medidas. Que possa ter havido, durante essa manhã, alguns exageros, acredito que sim. Mas não estive lá. Estava em casa.

Diz que o 27 de Maio foi feito para impedir que os comunistas do MPLA, da linha soviética, ganhassem o congresso do partido e dessem outra dinâmica ao processo angolano. Isso não é contraditório com a atuação que a União Soviética teve nesse episódio?
Acho que não, porque os soviéticos não se deviam envolver numa contumélia interna. O que estava a acontecer em Angola era uma luta de classes pelo poder e tinha de ser tratada entre angolanos. Os soviéticos eram meros observadores. Que ficariam satisfeitos se a tendência, a ala de Nito Alves saísse vencedora, acredito que sim. Nunca ninguém escondeu que os comunistas do MPLA desse tempo eram pró-soviéticos.

Acha que há mais abertura agora para se falar do 27 de Maio?
Tenho vindo a observar que há pessoas com disponibilidade para falar. Não só os que estiveram de um lado da barricada, ou seja, que foram antigos prisioneiros da DISA; também os do outro lado. Por exemplo, o antigo secretário-geral do MPLA Dino Matrosse, que deu recentemente uma entrevista para a Rádio Ecclesia(link is external) em que metade do tempo conta a sua história pessoal e na segunda parte fala no 27 de Maio, apesar de manter a visão do poder. Mas há também entrevistas a pessoas (link is external)que estiveram presas(link is external). É bom que essas pessoas falem, porque vão contando coisas que não sabemos.

Também há artigos de jornais(link is external) que começam a sair agora. Dá-me a sensação de que os que estiveram envolvidos pelo lado dos vencedores começam agora a sacudir-se um pouco. Não que o João Lourenço tenha dito que vai fazer o que quer que seja em relação ao 27 de Maio, mas a precaução é importante… Acho que há pessoas que se estão a precaver para aquilo que um dia pode acontecer e começam a sacudir-se. Nos processos de Nuremberga foi assim também. O Hitler, ou o general acima, é que era o culpado. “Eu não fiz nada, quem fez foram os outros. A mim só me mandaram fazer.” Vamos ver em Angola como vai ser.

Do lado dos vencidos, depois de um período de grande silêncio, os seus livros vêm se juntar, felizmente, a outros depoimentos…
Sim, já vai havendo quem escreva sobre o assunto, os historiadores já têm mais dados para investigar… Acho que aquilo que escrevi pode servir como fonte para trabalhos que se venham a fazer. Os meus livros e os dos outros, as entrevistas que as pessoas vão dando, os textos que vão escrevendo. Mas tudo isso, ao fim de 40 anos, é muito pouco ainda. Mas é um começo, eu estou só a contribuir com a minha quota-parte.

Acha que ainda vai ver o enigma do 27 de Maio finalmente revelado?
Eu vou lutar por isso. Porque escrever dois livros não é suficiente. E a luta continua. Se se vai conseguir, não sei. Já ouço pessoas hoje a falar em Comissões de Verdade, de Reconciliação… Já se falava no passado, mas agora há uma maior insistência. Eu, francamente, não sou adepto dessa modalidade. Eu gostava que fizessem aos outros aquilo que não fizeram a mim: levar as pessoas a um tribunal, porque é lá que as pessoas se defendem. Levam os seus advogados, vão a tribunal, e se forem culpados cumprem as penas. Foi isso que a mim não foi dado. A mim e a muitos companheiros meus. Vão para os tribunais.

Aliás, noutras partes do mundo, passados 50 anos, as pessoas que cometeram crimes foram julgadas.

Refere-se à Argentina, ao Chile…


Sim, estou a falar da Argentina e de outros países também. O meu livro começa com uma história muito interessante passada na Argélia, onde também os comunistas que estavam na Frente Nacional foram dizimados. Portanto, se nós tivéssemos lido sobre o que se passou noutros países, noutras revoluções, se calhar estávamos mais prevenidos para aquilo que nos foi acontecer.

O caso da Argélia é um caso incrível. Eu começo este livro a citar um militante comunista, Henri (link is external)Alleg(link is external), o homem que fazia o Argel Republicano, e escreveu um livro intitulado “A Questão” onde denuncia a barbárie a que foi sujeito. É difícil entender como é que um ser humano pode suportar o que ele suportou. E sem espírito de vingança. Da cadeia onde estava, ele foi lançando cá para fora folhas, umas atrás das outras, que constituíram esse livro que é uma denúncia do terror a que foi sujeito ele e os camaradas.

E ao fim de 50 anos, a viúva de um deles ainda pede ao Sarkozy, na altura presidente da França, que honre o nome do seu marido e que culpe os algozes, muitos deles ainda vivos, se bem que há uma amnistia. Ao fim de 50 anos, as pessoas ainda lutam por isso. O caso de Angola vai ser a mesma coisa. Se as pessoas se calarem, se não quiserem lutar pela memória, os vencedores acabam por ganhar. Mas se as pessoas se manifestarem e lutarem pelos seus direitos, se continuarem a pedir que sejam entregues as certidões de óbito, que se mostre onde estão os desaparecidos, etc., talvez, um dia, aquilo termine.