Luanda - É um dos rostos mais conhecidos da Oposição angolana e do associativismo. Já foi líder da Frente para a Democracia, dirigente do Bloco Democrático e faz parte de outras organizações da sociedade civil. Começou a sua luta pelas liberdades antes da independência, o que lhe valeu um exílio por discordar das teses defendidas, na altura, pelo partido que governa Angola desde 1975. O que poucos sabem é que Filomeno Vieira Lopes já foi um dos responsáveis do partido dos camaradas e, inclusive, membro do seu Comité Central. O economista, que já chegou a ser eleito como administrador da Sonangol, numa assembleia de trabalhadores, mas nunca tomou posse ‘por razões políticas’, segundo o próprio, relata o seu próprio percurso político na primeira parte desta entrevista

Fonte: OP
Quem é Filomeno Vieira Lopes?

"Mas rompi a clandestinidade para conversar com o Presidente Neto"


Agradeço o jornal OPAÍS por trocar algumas impressões comigo. Podemos dizer que é um cidadão que, ao longo da sua vida, se interessou por questões políticas, culturais e sociais. Nascido num bairro em que estas questões eram bem visíveis, que é o Bairro Operário. Um bairro que em 1961 foi completamente cercado. Eu tinha seis anos e pude observar que alguns mais velhos que nos contavam estórias, por volta das cinco horas da tarde, foram levados pelas tropas coloniais e nunca mais regressaram. Também observei na minha casa como é que a tropa entrou, a violência com que os meus irmãos mais velhos foram tratados e a oposição que a minha avó fez às tropas coloniais. Queriam levar o meu irmão mais velho e ela conseguiu impedir isso. Portanto, crescemos neste ambiente. O Bairro Operário era muito activo, com pessoas de várias origens étnicas e sociais. Depois de 1961, muitos dos moradores do Bairro Operário vieram do Norte do país, porque tinha havido uma repressão muito forte. Teta Lando, por exemplo, estabeleceu-se na minha própria rua.

Conceição Branco, uma pessoa que o conhece dos tempos do Comité Amílcar Cabral (CAC), cataloga- te como ‘o Fulano dos Bairros’. Conhece este apelido?

Risos. Estive no Bairro Operário e depois no Bairro Kaputu, que também foi muito interessante porque, de acordo com uma certa política colonial, o que se pretendia era transferir para este bairro um conjunto de famílias já funcionários públicos. Isto foi muito importante do ponto de vista político. Acabou por juntar ali pessoas que estavam nos mais diversos bairros e musseques de Luanda, e assim, no mesmo bairro Kaputu, nasceu uma certa elite de oposição. Vivo sempre nos bairros em que estive.

É assim que surge o ‘Fulano dos bairros’?
Não sei, é uma caracterização da própria pessoa. Provavelmente, porque vivi bastante bem os bairros onde estive e também contactava os outros bairros. Portanto, é todo este ambiente que determina um bocadinho o meu percurso. Comecei a trabalhar muito cedo, aos 16 anos de idade. Antes já procurava trabalho, como por exemplo ali na Textang, descia as barrocas mas o meu pai não sabia destas coisas. Trabalhei numa casa de caixas mesmo sem ordenado, porque queria lá estar e ajudar. Quando terminei o secundário na Escola Comercial, passei para o Instituto Comercial aos 16 anos de idade. Nesta altura, o ensino no Instituto Comercial, onde se tirava o curos de Perito Contabilista, iniciava às seis horas da tarde e acabava às 11 horas da noite. Tive que dizer ao meu pai que tinha de fazer mais alguma coisa e não ficar só a estudar.

Como é que nasce o interesse pela política até chegar ao Comité Amílcar Cabral (CAC) e à Organização Comunista de Angola (OCA)?
São todos estes factos que nos criam um interesse pela política e pela cultura, porque a cultura está muito associada à política no tempo colonial. Uma formação cultural é, matematicamente, um acto político. Mas, mais recentemente, depois de estar no Instituto Comercial, a relação com os estudantes universitários, por um lado, e a nossa actividade muito profunda ao nível da Igreja de São Domingos, criamos células de discussão política muito activas. Aqui devo recordar o papel que o bispo emérito Dom Luís Scarpa teve porque ele era um dos principais oradores escolhidos por nós. Pôs à disposição o próprio aparelho técnico da igreja. Tínhamos muito espaço, muita manobra, numa igreja que tinha um bom anfiteatro, onde fazíamos também teatro com carácter político muito avançado para a época. Nesta altura, fazíamos muito debate político mesmo no seio da igreja. Por outro lado, vou trabalhar também para a Imprensa Nacional de Angola aos 16 anos de idade. Tenho a dimensão social do que é o operariado a trabalhar no sistema que nos regia naquela altura, a noção de trabalho. No sector em que trabalhava, que era o sector social, apanhei todas as mágoas do sistema. Grande parte dos funcionários da Imprensa Nacional tinham problemas sociais gravíssimos. Muitos educadores tinham à sua guarda sobrinhos, familiares cujos pais tinham partido para a luta de libertação nacional. Tínhamos também a organização de células clandestinas que suportavam, sobretudo, a primeira região.

Nesta altura, já se falava no Comité Amílcar Cabral?
Não. Os grupos que dão origem aos CAC começam a emergir antes do 25 de Abril, mas surgem e afirmam-se efectivamente depois desta data, numa confluência de grupos que trabalhavam nos bairros, e os que faziam discussão política nas universidades. Nesta altura, vinha um ou outro intelectual português e já havia um debate muito aceso sobre o sistema colonial. Os CAC´s surgem como uma confluência destes grupos.

Porque é que os CAC’s não se afirmavam inicialmente como um grupo ligado ao MPLA?
Os CAC’s afirmavam-se ligados ao MPLA. Mas repare que a conjuntura que surge após o 25 de Abril é que o MPLA está praticamente impedido de vir ao interior do país e formam-se muitos comités. Naquela altura, houve pessoas ligadas ao MPLA, embora muitas delas não tivessem uma filiação formal. Eram grupos constituídos por antigos presos políticos, activistas que estavam nos bairros. Deve dizer-se que a partir de 1972, o controlo da PIDE era extremamente eficiente, sobretudo em Luanda. Todos os canais de fuga para a luta armada estavam praticamente bloqueados. As actividades que se faziam eram poucas, como debates e algumas acções, mas sobretudo discussões, distribuição de panfletos. Mas, de alguma forma, os últimos grupos que tentaram fugir através das linhas terrestres, com a Empresa de Viação de Angola (EVA), foram apanhados e presos. Cabinda que era uma outra via de fuga também estava bloqueada. Os CAC’s surgem nesta altura, como outros comités, e afirmavam-se sempre como do MPLA.

Qual era o papel que exercia nestes grupos?
O que aconteceu depois é que há um grupo de mais velhos, que eram naquela altura presos políticos, como o Escórcio, Minerva, Braz da Silva e outros, que criam uma estrutura que tenta aglutinar todos os grupos dispersos do MPLA e fazer a ligação com a direcção central. Pronto, nos CAC’s fui militante e também dirigente. Tinha um trabalho muito desenvolvido. Quando se fala dos bairros, provavelmente seja por isso que vou contar agora: ‘nós organizamos a resistência nos bairros. Um pouco ao nível militar, onde surgiram coisas muito interessantes nesta altura, mas sobretudo ao nível da organização social. Porque aqui no interior, logo que há o 25 de Abril, há uma definição de todos aqueles que militavam. Porque o 25 de Abril não era muito claro em torno da independência das colónias, porque falou-se imediatamente no sistema federalista e, por consequência, Angola seria ainda incorporada no império português. Sentimos que havia uma certa instabilidade e dividimo- nos. Uns foram para Brazzaville e Kinshasa, no sentido de reforçar os movimentos de libertação nacional, outros ficaram aqui para organizar a sociedade civil. O meu papel foi ter ficado para organizar a sociedade civil, além da ajuda que demos na organização da corrente sindical.

Que tipo de apoios deram à corrente sindical?
Aquela zona chama-se 1º de Maio porque nós, sobretudo o nosso grupo CAC’s, lutamos para que o 1º de Maio (Dia Internacional do Trabalhador) fosse comemorado em Angola. Como sabe, no regime colonial fascista, os trabalhadores não tinham esta possibilidade de festejar o seu dia. Fomos nós que efectivamente organizamos este processo. Como naquela altura já tinham rebentado os conflitos internos entre nós, o que aconteceu foi que só pudemos fazer o 1º de Maio no dia 22 de Maio. Por acaso, o discurso principal deste acontecimento foi feito pelo meu grupo e pronunciado por mim. E é daí que vem a designação de 1º de Maio a toda aquela zona, porque nós fizemos este comício por detrás do largo do Atlântico. Ironicamente, depois fui proibido de me manifestar no largo 1º de Maio. Mas o que nós organizamos, fundamentalmente, foram as comissões populares de bairro. Daí, provavelmente, esta designação ‘Fulano dos Bairros’. Nesta altura, eu fui o responsável do órgão coordenador das comissões populares de bairros. Analisamos naquela fase intermediária, em que o poder colonial estava a perder autoridade, mas nós queríamos, por um lado, organizar a auto-consciência popular, do povo poder decidir o destino do seu bairro e, naturalmente, andava de bairro em bairro nesta função. Deixa-me dizer que isso foi uma emergência do poder autárquico e que também ao nível do meio rural estudamos as formas associativas que existiam. E lançamos as chamadas formas de ‘kimbo e debate’, porque descobrimos que no meio rural existia uma estrutura clandestina por detrás do soba e do regedor que tomava as decisões no tempo colonial.

No livro ‘O Fim da Extrema Esquerda em Angola’, Leonor Figueiredo aponta-o como tendo sido um dos líderes deste grupo em Angola. Concorda?
Extrema-esquerda é uma designação que é assumida por alguns estudiosos. Nós éramos efectivamente uma esquerda e nos orientávamos por princípios marxistas. Naquela altura estudávamos muito as teorias marxistas, porque era um instrumento de análise social. Sugeria novas práticas de intervenção social, como as comissões populares de bairro. Esta visão surge da necessidade de o povo poder participar em várias decisões. Conseguimos que muitos projectos que havia no tempo colonial não fossem para frente. E fossem para frente os projectos que as próprias comunidades reputavam como prioritárias. O marxismo foi muito importante como teoria que modelou toda esta prática que tivemos. Analisávamos sempre os fenómenos sociais pelas suas causas e não pelas consequências. E tentar motivar processos transformacionais.

As reclamações que faziam ao nível dos CAC’s continuam actuais?
Ainda se fazem sentir hoje. Por exemplo, a questão da participação popular nas decisões é uma reivindicação que nós fizemos. Uma das exigências que tivemos no interior do MPLA era que houvesse uma democratização muito forte.

O que era a democracia popular que defendia nos finais dos anos 70?
Era uma democracia de base sob inspiração popular, do povo e com a participação do povo. Não bastava uma democracia representativa. O nosso plano era que o povo pudesse participar. E as várias formas sob as quais o povo pode efectivamente participar para evitar, digamos, o formalismo das estruturas políticas. As estruturas políticas representativas a dado passo esquecem-se que representam efectivamente alguém, tornam-se autónomas e elas próprias é que são todos os poderes de decisão. E isso é sempre uma desgraça para os povos como estamos a ver.

Naquela fase, nos encontros que teve com o Presidente Agostinho Neto, ainda na década de 70, manifestou esta intenção de se avançar para uma democracia popular?
Eu particularmente tive debate com o Presidente (Agostinho) Neto em que só esteve um assistente, que era um Van-Dúnem. Havia duas correntes que poderiam discutir, debater e chegar a um ponto de vista. Havia uma corrente no MPLA que era pela democracia nacional, um bocado à moda ‘krucheviana’, e uma outra corrente que era pela democracia popular, que era a nossa. A nossa corrente entendia que o modelo democrático seria de base, participativo e popular. Houve uma vez em que se lançou um panfleto a explicar as diferenças entre uma e outra corrente. Na altura, fui chamado pelo Presidente Neto e dialogamos. A grande preocupação do Presidente Neto era que tinha sido lançado um panfleto fora das estruturas normais e clássicas do MPLA. Expliquei-lhe que há muito tempo que nós, perante os problemas políticos que tínhamos naquela altura, uma vez que estávamos prestes a atingir a independência, o programa mínimo e mesmo o maior estavam inadequados. Precisávamos de ter uma reflexão estratégica. E o tipo de democracia que pretendíamos para o nosso país fazia parte, naturalmente, desta reflexão estratégica. Dizia o Presidente Neto que este espaço de discussão estava difícil de ser criado no seio do MPLA. A direcção não dava o passo neste sentido. Portanto, acabamos por provocar um debate desta forma.

E também por criar alguns problemas para o vosso grupo.
Ele disse-me: ‘bom, camarada Filomeno, nós vamos então fazer esta conferência de imprensa e eu vou defender a democracia nacional’. Lembro-me de ter dito: ‘e eu, camarada Presidente, vou defender a democracia popular’. O nosso debate terminou assim, mas naturalmente esta conferência nunca se fez. A direcção não quis discutir estratégia nenhuma. Só que a ideia da democracia popular, as práticas que nós empreendemos junto das populações e que faziam elas participar fez com que este elo de democracia popular fosse muito acarinhado pelo próprio povo. Tanto mais que se formos ver o que ficou escrito na declaração de independência é ‘um Estado de Democracia Popular’. O que está também no hino é o ‘Poder Popular’. Portanto, isso são plataformas que nós tínhamos debatido. Mas, ironicamente, nos meses antes da independência, as pessoas que defendiam este ponto de vista foram perseguidas, presas e algumas tiveram que se exilar.

Foram estas posições que aceleraram o fim do Comité Amílcar Cabral (CAC’s) e da Organização Comunista de Angola (OCA)?
Naturalmente, houve rotura. De um ponto de vista mais geral, a direcção central do MPLA tinha um conhecimento muito escasso da realidade angolana. De facto, as pessoas que viveram durante muito tempo debaixo da pressão colonial tinham um maior conhecimento das dinâmicas sociais. A minha opinião é que a direcção do MPLA teve muito medo desta corrente de activistas, muitos deles bem formados, e o próprio meio operário era extremamente desenvolvido. E a direcção do MPLA que vinha de uma prática de luta interna de poder muito forte, se formos ler os livros de Lúcio Lara, que apresentam um conjunto de actas, ficamos com a clara noção de que nas reuniões do MPLA discutia-se menos estratégia e táctica de combate ao colonialismo e mais luta de poder interno. Portanto, esta direcção tinha uma capacidade de luta pelo poder e sabemos que muitos bons militantes foram assassinados ao longo deste período pelas suas ideias ou por outras circunstâncias. Então, estes métodos foram transferidos para aqui. Foi exactamente isso que foi feito às correntes mais predominantes do movimento social. Primeiro com os CAC’s, que em parte se transformaram em OCA, numa primeira fase. E, numa segunda fase, o movimento mais ligado ao chamado 27 de Maio.

‘MPLA não está disposto a fazer uma profunda auto-crítica

Porque é que os CAC’s e a OCA não aderiram ao movimento de Nito Alves, já que tudo girava em torno do movimento esquerdista?
Não se pode dizer o movimento de Nito Alves. Houve uma altura em que a dita esquerda do MPLA englobava os comités Henda, CAC’s e outros que analisavam as coisas mais por baixo. Depois, o que aconteceu foi que a direcção do MPLA tinha um plano estratégico para onde a corrente de Nito Alves foi atraída para cargos de direcção. E foi usado para a destruição dos próprios CAC’s. Portanto, quando se dá o 27 de Maio já muitos membros dos CAC’s estavam presos. Devemos notar que em 1975, uma grande corrente dos CAC´s que trabalhava nas comissões populares de bairro, como o Nogueira, Sirgado, o mais velho Airosa, Ana Major, foram presos antes da independência do país. Já estavam presos. Não tínhamos ninguém ligado à corrente de Nito Alves presa. Mais tarde, foram outras pessoas presas, como o Adolfo Fontes Pereira, que acabou por morrer quando os carcamanos sul-africanos invadiram Angola. Morreu com o comandante Kassanje. Quando se dá a situação em 1977, nós já estamos na clandestinidade, somos presos do sistema em que as próprias pessoas ligadas ao Nito Alves também estavam. É natural que nesta altura do 27 de Maio nós não tivéssemos juntos. As primeiras rupturas verificaram-se ainda em 1975, quando discutimos o conceito da “segunda semana do poder popular”.

Houve duas correntes na segunda semana do poder popular, e isto começou logo pela palavra de ordem. Nos CAC’s dizíamos que era uma segunda semana de luta pelo poder popular, e havia uma segunda corrente que defendia uma que nós próprios é que havíamos iniciado e depois retificamos: ‘a luta pela consolidação do poder popular’. Nesta altura, tivemos um debate muito crítico no Sambizanga, onde esteve o Presidente Agostinho Neto, Pepetela, Nito Alves e nós fomos o alvo do ataque da direcção. As pessoas não sabem até como saí do Sambizanga, porque aí me opús abertamente à posição da direcção, num contexto de muito nervosismo e agitação. As pessoas queriam firmar muito claramente as suas posições. Aí as pessoas ligadas às correntes de Nito Alves e aos comités Henda, com as quais trabalhamos antes, já defendiam uma outra perspectiva, porque tinham aderido também à posição da democracia nacional. Nito Alves tinha feito um discurso a aderir à democracia. E depois toda esta demagogia de que já havia um poder popular e que era necessário consolidá-lo. Nós não estávamos de acordo e houve uma ruptura. E começaram as perseguições.

Falou de Nito Alves: sabemos que perdeu o seu irmão Elisiário Vieira Lopes e a mulher no 27 de Maio. O que falta dizer em relação aos acontecimentos de Maio de 1977?
Eu acho que falta quase tudo. Era bom que os arquivos fossem tornados públicos. O MPLA funciona sempre com uma visão histórica de glória e não está disposto a fazer esta profunda auto-crítica. Em primeiro lugar, é preciso dizer que na repressão ao 27 de Maio, o próprio relatório que foi escrito e conduzido creio que pelo ex-Presidente (José) Eduardo dos Santos, em que acho que também esteve o Lúcio Lara na Comissão, tentou juntar todas as correntes políticas no mesmo saco para se justificar a repressão alargada. É preciso dizer que a preocupação da direcção do MPLA no 27 de Maio foi mandar uma mensagem muito clara de que aqui mandamos nós e que ninguém se meta connosco. Portanto, era necessário associar esta repressão às pessoas mais activas do 27 de Maio, os seus familiares, amigos e todos aqueles que eventualmente o MPLA achava que constituíam factores perturbadores.

O que aconteceu com o seu irmão?
Tanto quanto sei, o meu irmão não fazia parte da corrente do 27 de Maio. Utilizaram alguém do 27 de Maio sob pressão. Tiveram que fazer uma entrevista e dizer que ele também estaria associado, porque era uma pessoa que tinha uma posição crítica em relação à gestão da província. Repare que o meu irmão Elisiário é médico, foi dirigente da Casa de Portugal em Angola, juntamente com Zezinho de Carvalho, José Leitão e outros, e na base de um compromisso que tinham assumido lá, todos eles deveriam ir às zonas mais recônditas e de maior sacrifício para darem a sua contribuição à luta de libertação nacional. Era um ponto de vista radical, mas foi aquilo que eles sentiram que tinham que fazer. Estavam formados, viveram sob regime colonial, mas achavam que aqueles que tinham vindo da luta armada sacrificaram- se muito mais e que eles agora deveriam dar esta co-participação. É assim que o meu irmão vai para o Moxico, apesar de que a direcção do MPLA tinha ficado sem quadros por causa da sua ruptura com a Revolta Activa, pretendeu que muitos desses quadros ficassem nas cidades, sobretudo em Luanda. Mas ele cumpriu com o que tinha sido acordado colectivamente, e foi parar ao Moxico. Lá, criou uma importante rede postos médicos que dava um apoio extraordinário às populações. O assassinato dele foi perfeitamente bem pensado porque ele estava em Luanda, foi visitar os meus pais e apareceu uma delegação militar qualquer que diz que ele tinha que ir ao Moxico. E é aí onde naturalmente é assassinado. Ainda há coisas por se descobrir, por exemplo a forma como foi assassinado e um conjunto de pessoas nacionais e também estrangeiras, como cubanos, que estão implicados nisso. Há pouco tempo saiu um livro da Lara Pawson que também fala sobre isso. Ela até manteve contacto com um indivíduo cubano que esteve no assassinato dele e que está com algumas perturbações. Naquela altura, os meus pais tiveram uma solidariedade muito grande dos povos do Moxico.

Que tipo de solidariedade?
Houve pessoas que vieram do Moxico conhecer os meus pais e cumprimentá- los. Enfim, foi uma grande perda. Morreu ele, a esposa e o filho mais velho que estava em casa, tinha 11 anos. A tia ‘Nany’, Agnela Barros, é que foi a grande heroína da família. Naquele contexto muito difícil foi buscar os meninos no Moxico.

Como é que se dá a sua fuga para Portugal e regressar somente ao país em 1985?
Os arquivos ainda não estão abertos! Estou à espera que os outros abram os seus arquivos para eu poder abrir também os meus. Os CAC’s tinham uma boa rede implantada em toda Angola. Tinha um bom sistema de informação e estávamos metidos em todas as estruturas. Também estávamos metidos nas estruturas que despachavam pessoas para Portugal. Portanto, naquela altura só tive que me ‘desmatilhar’ um bocadinho. Eu tive uma boa trunfa. Rapei o cabelo, meti-me no avião e cheguei lá apenas com uma moeda de um escudo para fazer um telefonema. Já naquela altura, os aviões que saíam eram vigiados pelas FAPLA. Mas olharam para mim e não desconfiaram de nada. Deixaram-me passar. Fiquei desconhecido durante muito tempo. Em Portugal, uma boa parte da minha vida foi na clandestinidade. Cheguei a participar em alguns comícios em Portugal encapuçado e várias vezes foram mandados lá emissários, mas acabaram sempre por ser desviados da sua rota.

Que tipo de emissários?
Era para saber onde é que eu estava, o que fazia ou não, para inclusive depois criar-se algumas intrigas. Mas tudo isso foi suportável.

São cerca de 50 anos de luta contra o MPLA. Quando é que sentiu que já não tinha mais nada para fazer neste partido?
Eu sai de Angola dias antes da independência. Tive que entrar na clandestinidade para aí um mês antes da independência, porque já estava a ser perseguido e tinha até alguma sentença de morte decretada. Mas rompi a clandestinidade duas vezes: uma para conversar com o Presidente Neto. E outra, na sequência desta conversa, para ter um encontro com o Nito Alves.

Quem colocou a sua cabeça a prémio?
Foi a direcção do MPLA. Não vale a pena estar a destacar um ou outro dirigente que saiu à rua e que em comício depois afirmou isso. Nesta altura, muitos colegas meus estavam presos. Rompi a clandestinidade e telefonei ao Presidente Neto. Perguntei por que razão é que por algumas divergências políticas, que existiam dentro de uma mesma organização, se estavam a prender e a torturar pessoas. Ele disse que desconhecia. Fiz-lhe um relatório muito pormenorizado de todas as prisões, assustou-se um bocadinho e pediu-me para falar com Nito Alves. Telefonei para o Nito Alves, mas sabia que os telefonemas eram perigosos porque toda a rede de funcionários públicos era do MPLA. A rede dos Correios era do MPLA. Aliás, o MPLA teve uma grande vantagem na luta contra os outros movimentos políticos porque tinha de facto este poder. Os telefones estavam todos sob escuta. Mesmo assim telefonei para o Presidente Neto e depois para o Nito Alves. Mas quando faço isso eu já tinha pedido a demissão de alguns cargos que exercia no MPLA.

Quais são os cargos que chegou a ocupar no MPLA?
Eu era membro da Organização de Massas. Eu e o (Manuel Pedro) Pacavira éramos os responsáveis deste pelouro ao nível nacional. Era membro da Comissão Directiva de Luanda e também membro do Comité Central. Portanto, demiti-me do cargo da Comissão Directiva de Luanda e também do DOM. Acho que o Nito Alves depois foi substituir- me. Escrevi uma carta a pedir demissão destes cargos naquela altura. Expliquei que os métodos que estavam a ser utilizados não íam de acordo com a linha do próprio movimento. Ao haver uma ditadura interna significava que havia uma predisposição para a ditadura externa. Demiti-me. Combinei com o Nito Alves, encontrarmo-nos, e ele não apareceu. A minha intenção naquela altura era travar a repressão, sobretudo porque afectava um sector que era muito importante para mim: os bairros.