Luanda - Hoje vem um Jissábu triste. Triste como o canto dolente dos pretos de outrora caminhando para o Contrato. O Jissábu de hoje fala de casebres – quer dizer, casas de pobres – demolidas por serem afinal isso mesmo. Casebres, casas de pobres. Jissabu pois, meu canto dolente.

Não Inventa, Semhor Nguvulu

noticias de Angola celcoEra uma vez o Pobre fugiu da guerra. Veio para Luanda em busca de sossego, procurando uma Paz que alguém lhe tirara sem ele mesmo saber porquê. Pegou na família, arrumou tudo na carrpoçaria de um camião que passava e veio para Luanda. Veio viver uma vida de Paz, veio procurar a oportunidade de pôr pão na mesa dos filhos, vesti-los com roupas decentes e envia-los à escola. É que o Pobre pede pouco à vida, apenas a ventura de deixa-lo viver em Paz.

O Pobre veio a Luanda sem ninguém para acolhe-lo. Quer dizer, teve a indiferença, o egoísmo e a agressividade selvagem desta selva de betão como forma de acolhimento. Assustado, o Pobre nem por isso perdeu a esperança.

Acicatado pelo desespero silencioso da companheira e a fome mal disfarçada dos filhos, partiu para a luta. Quando pôde foi roboteiro; outras vezes vendedor de rua. Muitas vezes engoliu o orgulho do outrora dono de duas lavras de mandioca e banana e estendeu a mão para pedir esmola aos locupletados donos de bólides luxuosos parados no semáforo. Se bem que cada humilhação calou fundo no seu coração de orgulhoso trabalhador, o desespero da mulher e a fome dos filhos susteve-o. Impediu a amarga revolta expandir-se e forçou-o a mendigar tostões para comprar o kilo de fuba e o pedaço de peixe seco para aldrabar o estômago dos miúdos ao jantar.

Na ânsia de fugir ao sol e à chuva do relento, foi ao primeiro terreno baldio que encontrou e juntou dois ou três papelões e com eles fez um primeiro chimbeco. Só para não ficar ao ar livre, dizia à mulher, depois faremos uma casa igua àquela lá da terra. Pequena, modesta, mas nossa. Assim ficou o Pobre, sustentado apesar de tudo, pela força teimosa da sua esperança.

Ninguém algum dia ensinou ao Pobre as regras selvagens desta selva de betão que agora é Luanda. Onde os predadores não caçam apenas para matar a fome, caçam pelo prazer de matar, destruir, locupletar-se até à exaustão. Ninguém preparou o Pobre para calcorrear Luanda de lés a lés para empilhar a montanha dos documentos necessários para legalizar o terreno baldio onde erguera o seu chimbeco – o tal casebre, como agora diz o nguvulu. Entretanto, o terreno que era baldio tornou-se o naco apetitoso que atraíu a gula dos predadores. Esses sim, conhecem bem os esquemas dos documentos e autorizações do nguvulu e logo-logo tinham os papéis todos do terreno onde o Pobre erguera o tal casebre. Vai dali, chama o kamartelo e na ânsia de tudo comer quase nem deixa o Pobre resgatar os filhos que dormem o sono bom da madrugada. Sono esse interrompido brutalmente pelo rugido dos motores das máquinas da destruição, pelo som macabro do kamartelo abatendo-se sobre o casebre do Pobre – o único abrigo que tem – e os gritos de desespero das mães pontuados pelos gritos e tiros dos cipaios do Nguvulu. Assim ficou o Pobre sem o chimbeco incompleto. Ficaram os filhos sem a cobertura de papelão que eles em sonhos inocentes viam como o palácio das Mil e Uma Noites. Ficou a mulher com o desespero ainda mais profundo, sem presente e sem futuro, ficou o Pobre sem sequer o consolo do respeito de quem lhe prometera um milhão de casas. Ele até só tinha votado na casa que lhe caberia. Ficou todo satisfeito – parece – o Nguvulu-Maior, a vir gabar-se cá na rua que era bem feito, o Pobre tinha sido teimoso, e o que o kamartelo tinha destruido não era nada casa: era casebre. Por isso não merecia ali estar.

Só faltou mesmo o Nguvulu Soito dizer que o Pobre devia mazé era ser erradicado deste novo País e remetido para... onde mesmo? Será que ele tem outra terra que não essa, o Pobre?

Revoltou-se o Pobre e quis tirar satisfações. A quem? Ao Chefe da Nguvulação, que tinha prometido ao povo todo um milhão de casas. Juntou-se aos outros Pobres, também deserdados pelo Sistema e quis ir ao Palácio outrora do Povo perguntar onde ia então morar. Até as velhas não quiseram ficar, seus passos trôpegos caminharam a subida do morro em busca da tão ansiada resposta,
Debalde. O sistema mandou anti-motins contra as velhas. Cavalos contra a mulheres enraivecidas e cães contra os homens armados apenas com cartazes da sua razão. E os Polícias, os Cavalos e os Cães travaram a marcha dos Pobres. Os Pobres não chegaram nem perto do Palácio que era do Povo e agora é do Chefe. Uma velha levou bassula do ninja, uma senhora levou puretada do Polícia, um homem quase deixou as matubas na boca do cão-polícia e aquela tia mais atrevida foi empurrada para o lado sem cerimónias pela anca arrogante do Cavalo.

Desconsolado, o Pobre voltou para o Casebre destruido, a pensar na sua vida agora completamente detruida. Esperança? Nem pensar. No esquema de nguvulação da Tia Xica e Mano Bento, o Estado não tem nada que ajudar o Pobre a refazer o chimbeco nem que seja no quinto dos infernos. Só lhe resta assim... o nada!

Senhores Nguvulus, não inventem cá leis: Demolir casebre de Pobre é crime sim senhor. Pelo menos assim é no coração sofrido daquele que no tal casebre tem o único tecto que o protege do sol e chuva. Se na vossa cartilha legal isso não é crime, então há que repôr a legalidade do coração do Povo.

Quem foi o filósofo que disse que as Revoluções surgem de onde se quer que exista... Nada?

Fonte: LAC