Luanda - D. Belmiro Chissengueti diz que é preciso ter coragem para atacar as causas dos graves problemas sociais em Angola, e uma delas é a corrupção. Em entrevista à Renascença, conta como a recente nomeação do Papa o apanhou de surpresa, desdramatiza as críticas à sua escolha, e garante que está “tranquilo” para assumir a diocese a partir de 7 de outubro.

*Ângela Roque
Fonte: RR

D. Belmiro Cuica Chissengueti, de 49 anos, era até agora o provincial dos Missionários do Espírito Santo em Angola. A 3 de julho, foi escolhido pelo Papa para ser o novo bispo de Cabinda. Em Portugal, onde participa no Capítulo dos Espiritanos, que decorre até final do mês, falou à Renascença sobre a sua nomeação, as críticas de que foi alvo e também a realidade que se vive em Angola.

Diz que não compreende que um país em reconstrução tenha tanto desemprego, considera urgente investir na educação e na saúde, mas elege a burocracia e a corrupção como os grandes problemas do país.

 

Foi recentemente nomeado pelo Papa como novo bispo de Cabinda. Ficou surpreendido com esta nomeação?

Fiquei surpreendido, na verdade não contava com a nomeação para bispo, pelo trabalho que tinha em mãos. Fui eleito há um ano e meio Provincial dos Espiritanos, na mesma altura também fui eleito para presidente da conferência dos superiores maiores de Angola, mais o trabalho ao nível da Comissão Justiça e Paz, tínhamos planos para um horizonte temporal de 3 a 6 anos, portanto esta nomeação apanhou-me de alguma forma de surpresa, porque tenho de interromper todos estes planos. Estou já a trabalhar nesta fase de transição de responsabilidades para os outros que as devem assumir e, portanto, neste âmbito foi mesmo um corte radical.
Mas, custou-lhe aceitar?

Coloquei-me naquela atitude de obedecer à Igreja. Como sabe os pedidos que são feitos pelo Santo Padre vêm da nossa fonte de obediência máxima, que é o Papa, por conseguinte embora se pudesse ter a liberdade de dizer 'não', para mim tanto a vida religiosa, como o sacerdócio, ficariam sem sentido. Portanto foi neste âmbito de obediência à Igreja e sentido de serviço, e de escuta da própria voz de Deus, que aceitei o pedido do Santo Padre e estou consciente das responsabilidades atendentes a esta minha aceitação.

Das responsabilidades e também de algumas dificuldades. É uma missão difícil a que o espera?

Não sei se é uma missão fácil. De toda a maneira, cada missão tem os seus desafios, as suas implicações.

 

Cabinda é um território complicado, até pelo desejo independentista de alguns setores. Isso também faz com que esta possa ser encarada como uma missão de alto risco, vê assim as coisas?

Não, não vejo como uma missão de alto risco, vejo simplesmente como missão. Já trabalhei em contextos de guerra muito mais violentos, tenho trabalhado na Comissão Justiça e Paz e já andei um bocadinho pelo mundo africano, e pelo resto do mundo. Portanto, sei que haverá problemas, de certeza, porque os há em todos os lugares, mas havemos de encontrar soluções, ou pelo menos caminhos de solução, para que não vivamos dos problemas, mas vivamos com alegria a missão que nos foi confiada. A minha missão é fundamentalmente pastoral e espiritual, portanto este é o âmbito da missão de um bisco numa diocese.

 

No dia em que foi conhecida a sua nomeação foi divulgada uma ‘Carta Aberta’ a pôr em causa o facto de D. Belmiro não ser um natural de Cabinda. Como é que reage a essas críticas?

Eu respondi logo no dia a essa carta, lembrando que aceitei a nomeação pela mesma fé que já levou vários ilustres filhos de Cabinda a serem bispos em várias dioceses de Angola, como D. Manuel Franklin da Costa, natural de Cabinda, que foi arcebispo de Huambo, D. Damião António Franklin, natural de Cabinda, foi arcebispo de Luanda, na diocese de Luena esteve D. José Próspero Puaty, que também era natural de Cabinda. E D. Eduardo André Muaca, que foi o primeiro bispo negro em Angola, era natural de Cabinda, e foi bispo em Malange e arcebispo de Luanda. Portanto, são exemplos de que a fé não olha muito para as tribos. A fé dá-nos uma cidadania universal, e a partir do momento em que se compreende esta cidadania universal que a fé dá, é que nós acolhemos o missionário não como um estrangeiro, mas como missionário, porque está dentro da sua cidade, e a sua cidade é a Igreja. É com esta mesma fé que aceitei a responsabilidade que me foi dada de pastorear os irmãos na fé em Cabinda.


Já foi a Cabinda?

Desde que a nomeação se tornou pública ainda não.

 

Mas, conhece o território?

Conheço. Estive em Cabinda duas vezes nos últimos 12 meses, na qualidade de Superior da Congregação do Espírito Santo, visitei os meus confrades em agosto do ano passado e estive lá também em abril deste ano.

 

Só vai ser ordenado bispo a 30 de setembro, e a entrada solene na diocese está marcada para 7 de Outubro. Já definiu prioridades?

Não, seria prematuro. Tenho uma ideia do que deveremos fazer, mas só ficará definida a partir do contacto com a realidade. Mas devo dizer-lhe que tenho recebido muitas mensagens de felicitações, dos colegas no sacerdócio em Cabinda, de religiosas, também da parte do antigo bispo, D. Filomeno do Nascimento, que nos tem dado toda a ajuda necessária para nos podermos inserir dentro deste novo ministério. E muitos fiéis de Cabinda têm ligado para mim, mandam mensagens, etc. Por isso penso que temos a base necessária para iniciarmos um ministério com tranquilidade.

 

Espera ser bem-recebido?

Não estou preocupado, estou mesmo tranquilo.

 

Era até agora o Provincial dos Missionários do Espírito Santo, tem estado ligado à Comissão Justiça e Paz de Angola, e também à Pastoral Social. São áreas a que está particularmente atento e sensível?

Sim, sem dúvida. Tenho estado na Comissão de Justiça e Paz da Conferência Episcopal de Angola e São Tomé desde junho de 2001, portanto são 17 anos. Trabalhámos por exemplo na vigilância do orçamento geral de Estado, para ver se aquilo que era orçamentado era executado. Na verdade, algumas coisas não foram executadas, outras foram, mas mal. Por exemplo a rede viária que foi reparada há menos de 10 anos, está toda danificada. Há muito para fazer. Ao nível do que chamamos a integridade da criação, nem sempre é suficientemente levada em consideração. Nas zonas de exploração diamantífera e de exploração petrolífera há problemas ambientais sérios.

E Cabinda é uma delas...

Exatamente. Por isso, além deste trabalho habitual que faz parte da missão da Igreja, que é a proteção da natureza, mas sobretudo a proteção das pessoas, ajudando a garantir as suas liberdades individuais, são áreas a que sou particularmente sensível.

 

Como é que estão as relações da Igreja Católica angolana com o poder político?

Bem, as relações entre a Igreja e o Estado angolano têm várias dimensões, mas cada um ocupa o seu espaço e tenta agir de acordo com a sua identidade. Como sabe Angola é um país laico e não assume nenhuma religião como sua, como aconteceu no passado, antes da Independência. Há um tratamento de respeito e consideração, e sobretudo valorização de trabalho que a Igreja faz. E há uma relação de cooperação e de complementaridade no trabalho que afinal incide no mesmo homem.

Quando é necessário a Igreja ajuda a governação a ter um olhar diferente em relação a determinadas questões. Ainda há dias saiu uma comunicação sobre as autarquias locais, o Estado defende um gradualismo geográfico, a Igreja defende que tem que haver autarquias para todo o país, porque há grandes assimetrias regionais, e a dimensão que é pensada neste momento não vai ajudar em nada. O grande mal de um Estado centralizado é, por um lado, a burocracia, por outro lado a corrupção, e por ainda uma dependência excessiva, que torna aquele que administra localmente alguém que está sempre em atitude de ‘gratidão’, entre aspas, para com quem lhe fez um favor, portanto. não tem a liberdade de corrigir o que está mal e melhorar o que está bom, segundo o slogan do partido no poder.

Um autarca tem mais poderes, é mais vigiado, tem um conselho fiscal, tem o parlamento autárquico, que não é um simples instrumento de consulta, mas é um instrumento de governação. E penso que Angola precisa disso. Não faz sentido que um município para tapar um buraco tenha de esperar ordem do governo central.

 

A descentralização devia se uma prioridade política?

Sem dúvida. Já está há muitos anos prevista, já desde 92, creio eu, e foi reforçado na constituição de 2010. É tempo de fazer andar as coisas, para não atrasar ainda mais o desenvolvimento do país. E a Igreja já manifestou publicamente a sua visão de fazer com que as autarquias sejam para todo o país. Dizer que são precisos mais 10 ou 15 anos é uma brincadeira política que é preciso saber ultrapassar, tanto mais que está provada a falência do Estado excessivamente centralizado, com todas as consequências sociais que hoje Angola vive.

 

E no âmbito social há muito ainda para fazer? Se tivesse que eleger um problema, qual seria?

Há muito para fazer. Temos um nível de desemprego altíssimo, que não se justifica, porque um país que está em reconstrução deve consumir mão de obra, e mão-de-obra jovem, mas não é o que se nota. O desemprego é um problema social muito grande, porque os jovens, formados dentro e fora do país, estão sem muitas alternativas.

Outro problema gritante em Angola tem a ver com a educação. Há necessidade de um sistema educativo mais eficaz e mais adequado às necessidades reais do país. É urgente para não sermos um país atrasado, porque a educação é a chave do progresso.

Outro problema é a questão da saúde. Angola só é um país bom quando os ministros, o próprio chefe de Estado, todas as pessoas fizeram, ou puderem fazer o seu tratamento médico em qualquer hospital público. Enquanto isso não acontecer não há qualidade de saúde suficiente. O governo está a tentar dar resposta, mas não basta ter vontade, é preciso atacar as causas do problema.

 

E quais são?

A causa maior das dificuldades que hoje se vivem em Angola, tanto a nível do desemprego, da crise social, da educação, da saúde, e mesmo do acesso a bens e serviços, é a corrupção. Há dinheiro a mais que saiu do país, e agora foi aprovada uma lei para o repatriamento de capitais, mas não sei se vai dar em alguma coisa. Vamos ver para crer. O eixo da corrupção é tão poderoso, tão diversificado e tão deslocalizado, que no fundo se protege. Grandes fortunas de África, da Ásia, do Médio Oriente e da América Latina, habitam em bancos ocidentais, a produzirem juros e a enriquecerem aqueles que já têm muito, deixando o resto na indigência.

Além desta grande corrupção, que é financeira, há também a corrupção que leva a falir nações inteiras que têm recursos naturais, mas não recebem. Não sei se procuram ajuda suficiente para que a gestão desses recursos possa produzir desenvolvimento, o que produz é ricos, alguns, que não tendo feito grande esforço para obter tal riqueza, nem sequer sabem apreciar ou usar aquilo que conseguiram pela corrupção. É preciso atacar este mal. Já começou, mas é uma luta que vai levar muitos anos.

 

Os Missionários do Espírito Santo estão a assinalar os 150 anos de presença em Angola. Continua a ser uma presença importante no país?

Sem dúvida. Os espiritanos chegaram a Angola antes de chegarem a Portugal, e tem sido um caminho muito valioso, porque o método utilizado na evangelização de Angola pelos missionários nos últimos 150 anos permitiu que a fé se enraizasse muito mais do que nos 350 anos precedentes, da primeira evangelização. Foi dada uma catequese intensa, que tornou as pessoas conhecedoras e convicta da sua fé, foram criadas famílias cristãs, nalguns casos aldeias cristãs, e foi criada a Igreja local. As dioceses que hoje temos, muitas delas foram pensadas no âmbito da evangelização feita pelos espiritanos, tanto mais que só depois de 100 anos de presença em Angola é que os espiritanos começaram a formar padres para a congregação, até lá foi só para implantar a Igreja local, formar os padres diocesanos que foram aqueles que depois da independência seguraram as dioceses que hoje temos. E foi bom e providencial, porque como sabe a nossa independência foi violentíssima. Em 1974 tínhamos perto de 250 espiritanos a trabalhar em Angola, mas um ano depois ficaram menos de 50 ou 40.

 

E hoje quantos são?

Hoje somos 127 em Angola, ligados a Angola, porque muitos não são angolanos. Mas, o método utilizado pela evangelização feita pelos espiritanos permitiu que, mesmo durante a guerra, regiões que ficaram 15 ou 16 anos sem presença missionária, se sustentassem com a presença e a responsabilidade dos catequistas, o que de facto foi uma grande obra.

 

Hoje Angola é um país com muitas vocações?

Graças a Deus há muitas vocações, temos seminários cheios de jovens. Na Congregação do Espírito Santo no aspirantado, aqueles que entram depois do 12º ano, são 22. Temos 54 a fazerem filosofia, sendo 16 finalistas do 3º ano, que depois irão ao noviciado. Temos oito no noviciado, que vão professar este ano, nove no estágio, que deverão iniciar teologia no próximo ano, e 20 em teologia em Angola, e dois fora do país. Temos, felizmente, este manancial de vocações. Agora, o que é prioritário é preparar essas vocações para as exigências da missão, porque um ou outro às vezes têm outras ambições, é preciso limá-las e terem a consciência clara de que quem quiser ser rico que vá ser empresário, ou uma outra profissão qualquer, mas quem quiser ser missionário tem que estar apto para viver uma vida simples, de pobreza, de entrega, de alegria pela sua vocação, e de confiança em Deus na implantação e crescimento do seu reino na história.