Luanda - Ponto prévio: O presente ensaio visa simplesmente abordar as consequências sociais das alterações corporais com recurso a métodos artificiais, e sem quaisquer indicações médicas ou terapêuticas. O nosso objectivo não é interferir no comportamento privado das pessoas, mas evidenciar os problemas sociais que podem resultar das escolhas individuais.

Fonte: Club-k.net

Nos dias que correm o corpo se tem tornado alvo de múltiplas atenções e ao mesmo tempo de grandes investimentos. A forma como se lhe dá visibilidade e se tem manifestado na nossa sociedade serve de incentivo para uma busca desenfreada por um corpo perfeito recorrendo-se, com alguma frequência, a um conjunto de elementos artificiais para arquitectar a beleza. Este interesse que o corpo desperta está intimamente relacionado às rápidas transformações sociais que, entre outros aspectos, implicam mudanças nas formas de relacionamento, na manifestação da identidade e, por conseguinte, nos conceitos e padrões de beleza.


A corrosão do carácter e da moral pública contribuiu para que o exercício de autoridade se fosse degradando progressivamente inclusive em instituições centrais de socialização, responsáveis pela transmissão de valores e estilos de vida. Ao mesmo tempo que assistia-se a crise do social outros padrões de estética e beleza eram interiorizados na consciência colectiva (sobretudo dos mais jovens), por meio da exibição de publicidade, programas televisivos e, posteriormente, reforçados pelas novas tecnologias. Perdida a matriz de referência ética, práticas que antes eram repreendidas passam a ser assumidas e, em muitos casos, incentivadas. E, deste modo, simples gestos ou expressões capazes de inibir e regular comportamentos (como um olhar de reprovação sobre determinada atitude ou forma de agir) passam a ser alvo de indiferença, desprezo e até motivo de alguma violência verbal ou física.


Constituído o cenário em que os padrões de boa conduta são constantemente questionados, confrontados e/ou desafiados, sentimentos ou emoções como a vergonha e a culpa - que resultam da incapacidade de cumprir com obrigações e regras do grupo - perdem consistência e intensidade na gramática e nas práticas da nossa convivência quotidiana.

É neste sentido que, estimuladas por universos culturais e simbólicos externos, as diferentes manifestações de conflito de identidade e autonomia por parte da juventude abrangem agora uma nova moda: alterações do corpo com recurso a técnicas cirúrgicas, injecções de diverso material sintético ou outros implantes, provocando alterações consideráveis na estética corporal e evidenciando o corpo como mais um elemento descartável na cadeia de consumo.


No entanto, como os altos padrões de consumo moderno criam um estado de descontentamento constante sobre os bens adquiridos e até sobre o próprio corpo, torna-se maior número de pessoas que se sentem inibidas ou envergonhadas com a sua estrutura física e, assim, dispostos a inúmeros sacrifícios para alcançar o tipo idealizado de beleza. A constante ansiedade provocada pela busca de aprovação social, pelo simples facto de exibir um “corpo atraente”, pode ser susceptível de provocar crises de auto-estima desperdiçando-se experiências saudáveis da vida em sociedade. Por seu lado, o excesso de mentalidade egocêntrica e individualista ofusca a centralidade da vida familiar e da vizinhança no conjunto de relações sociais, daí serem hoje muito comuns expressões do tipo “o corpo é meu e faço dele o que bem quiser”.


Finalmente, importa salientar que o culto ao corpo pode ser um potencial indicador da busca de elementos simbólicos e culturais de orientação, de visibilidade e até de reivindicação de status social numa paisagem marcada pela competição desequilibrada, consumo excessivo e modernização acelerada.


Ponto conclusivo: Na sociedade brasileira, onde as práticas cirúrgicas de alteração do corpo são muito comuns, abriu-se, recentemente, um debate abrangente sobre a real dimensão do fenómeno e as suas consequências, tanto no domínio da saúde pública como da sociedade de um modo geral. Esperamos que sirva de ponto de partida para um debate entre nós.


Pesquisador e Mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra.