Benguela - Na presença de mais de 100 participantes, a 20 de Agosto de 2009, no Solar dos Leões (Benguela), foi subscrita a Declaração de Benguela (em relação às demolições e desalojamentos forçados), uma iniciativa de 23 personalidades que animaram todas as edições do QUINTAS DE DEBATE (Novembro de 2008 a Agosto de 2009). tes da leitura da referida Declaração, a Sra. Luizete Araújo (prelectora do dia) falou sobre "As Demolições e Suas Consequências".

Declaração de Benguela


Nós, membros da sociedade civil angolana aqui presentes, em seu nome e em nome dos representantes de organizações e indivíduos que assinaram este texto, declaramos estar extremamente preocupados pela recrudescência de desalojamentos forçados já implementados ou anunciados, que constituem uma violação dos direitos dos cidadãos a uma vida digna. Neste contexto, assumimos uma posição clara em favor do respeito pela lei e pelos direitos fundamentais dos cidadãos, razão pela qual nos declaramos especialmente contra as condições em que os desalojamentos estão a ser perpetrados, porque as instituições do estado são os principais responsáveis pela garantia de direitos numa base universal e, no caso, devem fazê-lo através de uma política habitacional participativa, abrangente e pró-pobres, ou seja, adequada à realidade da grande maioria das famílias vivendo neste país.

De acordo com a Observação Geral N.º 7 do Comité da ONU sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, entende-se “desalojamentos forçados” como sendo “o facto de fazer sair pessoas, famílias e/ou comunidades das suas casas e/ou das terras que ocupam, de forma permanente ou provisória, sem oferecer-lhes meios apropriados de protecção legal ou de outra índole nem permitir-lhes o acesso a eles”. Ainda de acordo com o mesmo documento, o referido Comité chegou à conclusão que “os desalojamentos forçados são prima facie incompatíveis com os requisitos do Pacto [Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais]”.

Entre 2001 e 2007, organizações locais e internacionais documentaram o desalojamento forçado de mais de 30 000 pessoas. Uma parte delas viu as suas casas serem demolidas sem serem avisadas, menos ainda consultadas, sem protecção legal nem habitação alternativa adequada. Muitos desalojamentos foram executados por agentes da polícia, membros das forças armadas ou de empresas de segurança privada, com uso excessivo da força.

No mês passado, 3000 casas foram demolidas no Município do Kilamba Kiaxi em Luanda, o que significou o desalojamento de 3000 famílias, ou seja, pelo menos 15 000 pessoas. No Lobito, desde Fevereiro deste ano, 250 famílias vivendo na feira vêm sendo ameaçadas de desalojamento. Na previsão do CAN e de projectos turísticos entre Benguela e Lobito, as administrações locais anunciam futuros desalojamentos de bairros inteiros, comportando milhares de famílias. Elas não foram ainda avisadas e nenhuma actividade de consulta está prevista. Muitos outros casos ocorrem em várias províncias, não só nas cidades mas também no meio rural onde terras são confiscadas das comunidades locais, que sobrevivem da agricultura de subsistência.

Por causa das numerosas deslocações internas durante a guerra, de um sistema administrativo débil e da falta de uma política habitacional pró-pobres, entre outros factores, estima-se que em Luanda, por exemplo, 75% das famílias não têm títulos formais sobre as suas casas e terras. Várias vezes, como no caso de famílias da feira de Lobito, elas foram realojadas naquele local pela própria administração municipal, mas sem que nunca lhes tenha sido dado um título de propriedade, deixando-as vulneráveis a novos desalojamentos, cada vez que a administração precisar do terreno por outros fins.

As razões oficialmente dadas pelo Governo, central ou local, para esses desalojamentos, vão da reconstrução do país à requalificação das áreas, à expropriação por “utilidade pública”, à preparação do CAN, ou ainda a investimentos públicos ou privados. Mesmo que algumas destas razões possam considerar-se justificadas e legítimas, existem normas internacionais, reconhecidas pelo sistema jurídico angolano, que regulam a forma de desalojar. De qualquer modo, não é aceitável que este tipo de medidas seja sistemático e julgado normal pelo Governo, porquanto deve-se recorrer a elas apenas em última instância, e só depois de terem sido organizadas, entre outras condições, alternativas adequadas.

Estamos ainda mais preocupados porque outros factores nos fazem pensar que esta onda de desalojamentos forçados pode aumentar e violar os direitos de muitas outras famílias, se não forem adoptados, processos adequados. Trata-se do novo Código Mineiro que, se for aprovado como está a ser apresentado agora, colocará todas as áreas contendo recursos minerais, inclusive os destinados à construção civil, como zonas restritas de onde as populações locais terão de ser desalojadas. Trata-se também da implementação da Lei de Terras, no sentido do pouco que está a ser feito para que as comunidades rurais e as famílias nas cidades registem sistematicamente os seus terrenos, afim de ter maior segurança jurídica no futuro.

Trata-se finalmente dos futuros grandes investimentos no país, seja para a produção de biocombustíveis em Malanje, alumínio em Benguela, prata no Kwanza-Norte, cobre no Uíge ou urânio no Sul do país. Estes investimentos são necessários e podem criar empregos e crescimento, mas se o Estado angolano não proteger as famílias que vivem nos locais visados, o número de desalojamentos e confiscos de terras, sem alternativas nem compensações, poderá crescer em proporções alarmantes nos próximos anos. E, mais uma vez, o crescimento económico não será acompanhado de desenvolvimento social.

É de lembrar que no seu Artigo 2º, a Lei Constitucional angolana vigente declara que “A República de Angola é um Estado democrático de direito que tem como fundamentos”, entre outros, “a dignidade da pessoa humana” e “o respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais do homem”. O seu Artigo 20º afirma que “O Estado respeita e protege a pessoa e dignidade humanas”, e o 29º que “A família, núcleo fundamental da organização da sociedade, é objecto de protecção do Estado”.

Além disso, o Artigo 21º da mesma Lei reconhece que “As normas constitucionais e legais relativas aos direitos fundamentais devem ser interpretadas e integradas de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, e dos demais instrumentos internacionais de que Angola seja parte”. De facto, Angola ratificou a Carta Africana em 1990 e os Pactos Internacionais sobre os Direitos Civis e Políticos, e sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais em 1992. Como Estado parte, Angola aceitou então as obrigações de respeitar, proteger e realizar os direitos humanos, inclusive o direito a uma habitação adequada.

Por último, gostaríamos de lembrar que aquando da revisão de Angola, em Novembro de 2008, pelo Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, foi recomendado que Angola deve:

a) adoptar medidas firmes para conseguir que só se recorra a desalojamentos em última instância e leis e directivas que definam rigorosamente as circunstâncias e condições para levar a cabo um desalojamento em conformidade com a Observação Geral n.º 7 do Comité sobre o Direito a uma Habitação Adequada (art. 11.1) e os desalojamentos forçados (1997);

b) investigar todas as alegações do uso excessivo da força por parte dos agentes da polícia e de funcionários do Estado que participam nos desalojamentos forçados, e colocar os autores à disposição da justiça;

c) velar para que se ofereça a todas as vítimas dos desalojamentos forçados uma alternativa de Habitação Adequada ou indemnização, e para que as vítimas tenham acesso a recursos jurídicos eficazes;

d) garantir que todos os desalojamentos forçados que sejam levados a cabo no contexto do CAN, cumpram com os requisitos e as directrizes da Observação Geral N.º 7.

Neste contexto e tendo em mente preocupações para o presente e o futuro do nosso país:

1. Posicionamo-nos contra o recurso sistemático a desalojamentos forçados, demolição de casas e expropriação de terras;

2. Apelamos aos governos provinciais a criarem comissões, em cada município, com ampla participação da sociedade civil e representantes de cada bairro e comunidade, para discutir, com antecedência, sobre todos os planos de construção de casas, desalojamentos e realojamentos na área, e para facilitar a realização de consultas e negociações caso por caso;

3. Exigimos que os direitos à informação, à participação e a recursos jurídicos, todos reconhecidos pela Lei Constitucional angolana, sejam respeitados;

4. Pedimos que o direito a uma habitação adequada para todos, o que inclui os componentes de segurança jurídica da ocupação, habitabilidade, acesso a serviços públicos, acesso físico e financeiro, localização e adequação à cultura, seja integrado na nova Lei Constitucional do país;

5. Apelamos ao Governo a utilizar o direito à habitação como base da sua política, programas e orçamentos habitacionais, urbanísticos e de utilização do espaço, que devem ter sistematicamente uma componente pró-pobres, afim de começar a inverter o quadro das desigualdades sociais no nosso país;

6. Apelamos ainda ao Governo a respeitar o direito à habitação e todos os outros direitos humanos nos Decretos que promulga, assim como nos acordos bilaterais e multilaterais que assina com outros países;

7. Recomendamos que a Relatora Especial da ONU para a Habitação Adequada esteja oficialmente convidada pelo Governo de Angola, afim de poder entrar num diálogo construtivo com o mesmo, e apoiá-lo a cumprir com as suas obrigações de respeitar, proteger e realizar o direito à habitação.

Benguela, 20 de Agosto de 2009.
Fonte: http://quintasdedebate.blogspot.com/