2. Vivemos um verdadeiro jogo, um jogo com resultados imprevistos, certos deles mesmo injustos… Tivemos, também, desenlaces perfeitamente aceitáveis, sem qualquer contestação. Compete, porém, aos historiadores, avaliar o mérito de cada resultado final. Mas, vamos ao que interessa.

3. O Francisco Miguel, o “Michel”, recordou há tempos o drama do “27 de Maio de 1977”, por isso, editou a “Nuvem Negra”, um livro onde faz o relato do que ele e alguns dos seus companheiros viveram, sobretudo, no Campo de Morte da Kalunda, no Moxico. Aí se vê o turbilhão e a voragem do maior drama que Angola viveu, logo depois da nossa independência. Com o livro, o “Michel” quis homenagear aqueles que com ele sofreram, numa repressão especialmente tingida pela cor de sangue, o espelho da insanidade de alguns homens que optaram por relegar para a distância o seu lado humano.

4. A escritora e jornalista portuguesa, Dalila Cabrita Mateus, e o seu marido, Alfredo Mateus,pesquisaram vários arquivos e ouviram testemunhos de sobreviventes e familiares de mortosdo “27 de Maio de 1977”. Rebuscaram a memória com a edição de um livro cujo nome pode parecer incómodo: “Purga em Angola”. Aqui, os autores traçam a sua visão sobre aqueles acontecimentos que enlutaram o nosso país, com um saldo não inferior a 30.000 mortos, numa avaliação que muitos ainda assim julgam bastante moderada.

5. A contracapa do livro insere esta frase lapidar: “Purga em Angola aborda os acontecimentos ocorridos no dia 27 de Maio de 1977, portanto, há 30 anos. Militantes e simpatizantes,amigos e familiares dos “purgados”, dezenas de milhar de pessoas, homens e mulheres,velhos e novos, passaram por cadeias e campos de concentração. E muitos foram mortos após aterradores interrogatórios ou em fuzilamentos sumários, sem nunca terem sido julgados e sem se saber sequer onde repousam as suas ossadas. Por estranho que possa parecer, as atrocidades cometidas no Chile de Pinochet assumem modestas proporções, se comparadas com o que se passou na Angola de 1977”.

6. Ao tentar interpretar o sentido desta frase, intui que Augusto Pinochet, o ditador Chile, aqui teria sido, talvez, “um garoto de coro de Igreja”, se comparado com os nossos principais actores da época, por muito que me custe assumir tal comparação.

7. Foi posto agora à venda nas principais livrarias de Portugal um outro trabalho, um livro com mais de 600 páginas, intitulado “Holocausto em Angola – Memórias de entre o cárcere e o cemitério”, da autoria de Américo Cardoso Botelho. Engenheiro português, pertenceu ao corpo directivo da Diamang, quando chegou a Angola, no dia 9 de Novembro de 1975, até ser preso, logo no início do ano de 1977. Como ele próprio diz: “quando os portugueses empreendiam a viagem de navegação inversa”.

8. O Eng. Américo Cardoso Botelho esteve preso durante cerca de três anos e meio, pelo que observou muito daquilo que se passou por entre os muros das nossas prisões. Em conjunto, vivemos muitos desses dramáticos momentos. Homem atento e experiente, o engenheiro aproveitou todas as ocasiões para recolher informação, quer por observação directa, quer através do testemunho dos nossos companheiros de prisão. Recolheu, também, muitos dados sobre os verdadeiros “gulags” que se criaram em Angola, no Moxico, em São Nicolau, na SAPU (em Luanda), na Kibala, na Damba de Malange, no Capolo (Bié), etc.

9. Com pequenas imprecisões – por exemplo, na escrita de nomes – ou outros pormenores insignificantes, o Eng. Botelho, agora com 90 anos de idade, deixa-nos um testemunho impressionante desses “anos da brasa”, até ao raiar da década de 1980. Ele conviveu com os presos de todos os processos de então, desde os da Revolta Activa (entre os quais me incluo), os CAC (Comités Amílcar Cabral), OCA (Organização Comunista de Angola), os do “27 de Maio”, Grupo “José Estaline”, etc.

10. O Eng. Botelho narra ainda o desenrolar e o epílogo de muitos casos individuais, como o do Eng. Rosa (um piloto de aviões que se viu acusado de espião na famigerada “Operação Cobra 77”). Esse engenheiro angolano, formado em Israel, foi morto na tristemente célebre noite de 23 de Março de 1978, uma verdadeira “noite das facas longas”, cujos desenvolvimentos nunca me sairão da memória. Nessa noite, um jovem de pouco mais de 16 anos, o “Jango”, foi morto como se tratasse de um perigoso e calejado golpista.

11. O “Jango” morava nas redondezas da prisão de São Paulo, e entrou na prisão, depois de as portas terem sido escancaradas pelos sediciosos. Ele apenas ajudou a abrir algumas celas. Denunciado, foi preso. Durante quase um ano funcionou como mecânico de automóveis dentro das instalações da cadeia. Por isso, viu muito. Passou a saber muito, porque tinha uma margem de liberdade que lhe dava acesso a informação comprometedora. Foi morto, barbaramente, na “noite das facas longas” com outros que nada tinham a ver com o “27 de Maio”, como o Eng.Rosa, o Cachimbo (ele que já estava preso muito antes do assalto às prisões. O Cachimbo dizia,quando o interrogavam sobre o motivo da sua prisão: “fiz lau-lau com a minha sterling…”), o Mingas-Fina (militar, de cerca de 17 anos, preso ele também muito antes do “27 de Maio”), o “herói de Mucaba”, e tantos mais, que a fresca memória do Eng. Botelho recorda agora.

12. No livro, o Eng. Botelho não esquece os prisioneiros estrangeiros: os namibianos (como o Marcus), os sul-africanos (como os irmãos Harold e Chico), os mercenários, os portugueses e os brancos angolanos que lutaram do lado da FNLA. Dedica, também, algum espaço ao caso da família Bickhman, assassinados no Kwanza-Sul pelo Icambo, depois fuzilado com o Raúl, um filho do escritor Raúl David, e outros tantos, que só um livro dessa dimensão conseguedescrever.

13. Este é o testemunho de um estrangeiro (um observador independente), que vem trazer luz sobre muita mentira veiculada ao longo destas sangrentas três décadas cheias de mentiras e omissões.

14. Foram, pois, muitos os que mancharam as suas mãos com o sangue dos angolanos, e até de estrangeiros. Verão agora aí escarrapachados os seus nomes, e narrados os seus feitos sem glória. O seu passado não os orgulhará, certamente… Já não é possível esconderem os seus rostos por detrás do manto de silêncio que o regime impôs até agora, para se proteger e para os proteger. Foram cometidos crimes contra a humanidade, e os crimes contra a humanidade não prescrevem, nunca. Os criminosos poderão voltar a delinquir. Basta terem uma pequena oportunidade. Estão à espreita. Já se vê!

Fonte:  Jornal Capital (27/11/07)