Luanda - Numa análise jurídica e política dos 30 anos de governação de José Eduardo dos Santos (JES) é possível adivinhar três fases essenciais em que os méritos e deméritos se confundem numa governação de cunho autocrático sob formas clássicas primeiro de democracia socialista (centralizada) e segundo de democracia pluripartidária. São essenciais a fase de ascensão (desde a sucessão ao primeiro presidente as primeiras eleições democráticas) – em que JES manifesta uma obediência canina ao MPLA quase confundindo a sua acção governativa com a do partido; a fase da consolidação (desde 1992 ao fim definitivo da guerra civil) – em que JES começa a tomar consciência da governabilidade do Estado de forma não colegial; e a fase do declínio (desde a assinatura do memorando de entendimento do Luena aos dias de hoje) – em que se verifica a separação entre o seu elenco governativo e o MPLA transparecendo apetência para concentração de riqueza e controlo do poder político para além dos interesses do MPLA com a ideia de eternidade no poder por eventual transmissão aos filhos.

 

Fonte: Semanário A CAPITAL

(des)construção do estado de direito  


As três fases completam-se num gráfico em que a curva representa uma queda qualitativa na progressão governativa diminuindo ano após ano as expectativas políticas dos angolanos relativamente aos esforços empreendidos e sacrifícios consentidos na luta pela independência nacional em meio ao desvalor do quadro jurídico-constitucional e legal que ganha o ápice com o total desrespeitos aos mais elementares direitos humanos quer pela violação de direitos e interesses constitucionalmente protegidos quer pela falta de interesse em realizar as expectativas económicas e sociais auguradas pela maioria do eleitorado que tem depositado confiança e esperança a pessoa do Presidente da República.

 

Dentre os méritos surgem situações visíveis de concretização da soberania popular materializadas com a corporização dos diálogos com a UNITA que deram lugar aos acordos de Bicesse e de Luzaka para o fim da guerra civil – não está em causa quem terá tomado a iniciativa – e a consequente marcação das eleições de 1992 e 2008 – apesar da quase inexistente vontade de “cedência” do poder –, possibilitando o nascimento de um texto constitucional de relativo consenso na forma da Lei 23/92. Nos dias de hoje a grande tendência de extensão económica da governação de JES – embora em detrimento da dimensão social – é sensível com o investimento no betão (plano de megalópoles) e com a formação de uma classe capitalista detentora da maioria do capital, transferindo o poder financeiro do Estado a núcleos de confiança numa clara, porém precária, imitação de Dubai. Uma tentativa de reforma da Lei Constitucional – as restantes são meras “correcções ortográficas” pontuais num fundo constitucional centralista operadas antes de 1992 – podem ser inscritos no palmarés do mais alto magistrado da nação (Lei de Revisão Constitucional n.º 23/92), embora em nada tenha contribuído para conformar a realidade constitucional ao texto constitucional de forma a realizar o encontro dos cidadãos com o texto da Magna Carta.


Em demérito arrastam-se muitíssimos casos que podem ser pulverizados em todos os sectores da vida da nação basicamente sustentados pela existência de um sistema jurídico formal e a sua consequente ineficiência material. A prova primeira desta realidade é a contestável legitimidade do mandato presidencial que se arrasta há anos, desde o longínquo ano de 1992 em que se realizaram as inconclusivas primeiras eleições. Para a gestão do erário público constituem particulares desastres a alienação desregulada do património público em geral (imóveis públicos e expropriação ilegal de grandes extensões de terras aráveis de camponeses) e das empresas públicas por via de falência forçada (casos da Angonave e muitas outras que desapareceram do mapa empresarial do Estado sem visível justificações) dando origem a oligopólios privados. A aprovação da Lei de Terras, o novo regime Jurídico da delimitação das actividades económicas e vários outros diplomas legais reguladores do sector económico e financeiro são dos grandes instrumentos que JES utiliza qual boomerang para arremessar contra os seus partidárias para de seguida voltar-se contra si mesmo. É nesta óptica visível a pretexto de combater a corrupção, a tendência para a expropriação de propriedades, sobretudo imobiliária, detidas por altas patentes das FAA e membros do Governo. Assiste-se assim, a uma coreografia diabólica que levará certamente JES a uma situação de crise irreversível de governação culminando na falta de apoio interno no seio do próprio MPLA descrevendo com isso uma curva negativa na sua progressão política até aqui linear.

 

As injustiças descritas com inúmeras violações a Lei permitiram o surgimento da greve mais longa do mundo protagonizada pelos trabalhadores da extinta Angonave. É ainda, neste campo, marcante a existência de numerosos diplomas legais inconstitucionais vagando arbitrariamente pelo sistema jurídico angolano. São exemplos a Lei das Reuniões e Manifestações, a Lei de Imprensa entre muitos outros diplomas legais. É sensível neste particular a tendência para impor um quadro normativo antidemocrático para sustentar um modelo governativo do tipo centralista.

 

A invasão de estrangeiros, viabilizada por um regime jurídico dos estrangeiros perigosamente permissivo, tem sustentação paternal nestes 30 anos de Governação em que os cidadãos são-tomenses e cabo-verdianos tinham título de cooperantes ganhando salários avultados contra a magra remuneração dos angolanos, situação que modernamente se alargou para numerosos estrangeiros entre brasileiros e portugueses entrincheirados nos diversos organismos públicos e interesses detidos pela minoria capitalista emergente ligada ao regime. A negociação do contrato bilionário com a China favorecendo largamente o emprego da mão-de-obra chinesa em detrimento da nacional é o exemplo refinado da falta de vontade política em desenvolver os recursos humanos angolanos para os desafios em prol do desenvolvimento do país.

 

Com o advento das eleições de 2008 uma acção com vista ao desaparecimento de importantes partidos políticos e a consequente democracia pluripartidária foi desencadeada com a aprovação do pacote legal referente ao processo eleitoral numa clara violação aos princípios consagrados na Lei Constitucional culminando com a vitória esmagadora do MPLA numa clara implementação do projecto de controlo absoluto do poder para completa depredação do erário público e controlo das instituições do Estado ao serviço de interesses particulares. Assim, a democracia alcançada em 1992 foi gravemente diminuída infundindo um clima de incerteza quanto o futuro político nacional.

 

No campo criminal, mortes como as de Mfulumpinga Nlandu Victor e de Ricardo de Mello não foram sequer alvos de inquérito investigativo conclusivos. A criminalidade infantil impune foi alimentada durante muito tempo pela falta de estabelecimentos prisionais vocacionais. Milhões de dólares americanos desapareceram dos cofres do Estado através de Ministérios e outros departamentos governamentais em diversas ocasiões numa clara alusão a permissividade da corrupção institucional e sem quaisquer consequências graves para os seus titulares, enquanto que Fernando Garcia Miala desaparece aos poucos numa prisão legalmente infundada. Faculdades legais como a amnistia, indulto ou a comutação de penas foram fartas vezes exercidas para beneficiar cidadãos com envolvência criminal aos bens patrimoniais delapidados do Estado em detrimento de indivíduos como os ex-membros da SIE com cadastro criminal de causa e idoneidade duvidosa.

 

O reflexo das insuficiências, incoerências e violações legais durante os 30 anos de poder de JES é fundamentalmente marcada pela falta de certeza e segurança jurídica – formatado noutros termos como imprevisibilidade funcional das instituições do Estado – a que se encontram mergulhados os cidadãos angolanos ganhando o ponto máximo com situações como as demolições massivas de moradias que ocorrem um pouco por toda a parte de Angola desabrigando milhares de famílias em gritante apelo ao desrespeito aos mais elementares direitos humanos, quando muito e a descompensada petulância na violação das normas de procedimento administrativo, quando menos. O que nos permite dispor que Angola é hoje Estado de Direito sem consagração formal, sobrevivendo com uma prótese constitucional na forma da Lei n.º23/92 em suporte a um aparelho jurídico obsoleto quando se tratam de disposições de natureza cível e criminal e reflectindo, pelas enormes insuficiências, marcadas nuances de uma realidade pró-centralista quando em matérias públicas, cuja provisoriedade se estende de forma indefinida com a recém criada comissão de Revisão Constitucional.

 

Nesta última fase do mandato de JES (incluindo uma eventual reeleição) é adivinhável a crise instalada no seio do MPLA em que se percebe que JES perde cada vez mais apoio, o que recomenda a necessidade de instalar um mecanismo constitucional como as eleições ditas “atípicas” para não permitir que o MPLA ao controlar o processo eleitoral não o defraude com uma espécie de “golpe partidário” na expectativa de renovar o seu mandato. Urge pois controlar a olhos vistos quem o apoia neste projecto de renovação de mandato. Façanha possível apenas numa Assembleia Nacional habituada ao voto de mãos levantadas.


(Texto comemorativo dos 30 anos de poder de José Eduardo dos Santos como Presidente da República elaborado a pedido de Tandala Francisco, Director Geral do Semanário A CAPITAL)