Luanda - À semelhança da minha adolescência, queria poder voltar a ver os adolescentes dos tempos de hoje a manifestarem com o mesmo vigor de um passado recente o refrão «Dos Santos, amigo, o povo está contigo».


Fonte: A Capital

«Dos Santos, amigo» fez-se distante daquele povo que o aplaudiu

Recordo-me - ainda na adolescência - que este era um quase hino, um repetido refrão, nos comícios políticos e onde quer que o Presidente JES se fizesse presente. Eram tempos de romantismos, tempos em que cada angolano se via igual perante a Lei. Aprendia-se sobre o Presidente da República, o seu percurso e as suas perspectivas para a Nação, a partir de casa. A escola era um complemento desses ensinamentos.


Nos comícios, em vistas de campos ou em qualquer outro local em que o Presidente da República se apresentasse, era ver homens, mulheres, velhos e crianças, em vozes ensurdecedores, sorrisos rasgados estampados nos rostos, ainda que famintos, por reconhecer no Presidente o papel de pai da Nação, o fiel depositário dos ensinamentos de Agostinho Neto, a quem JES sucedera.


Hoje por hoje, os tempos mudaram e as vontades, essas, também: o Presidente distanciou-se dos demais, o seu sorriso simpático deu origem a um sorriso fechado. O povo que venerava, simplesmente imitou-lhe o gesto: distanciou-se também, de tal forma que as crianças compreenderam, surpreendentemente, que no lugar do «Dos Santos, amigo» existe, isto sim, um ser cada vez mais ausente de um povo que o acarinhou.


Um povo que se identificou consigo e o apoiou, sobretudo numa fase em que procurava consolidar a sua posição no interior de um partido (MPLA) polvilhado de uma velha guarda, que reclamava para si todo o protagonismo da luta de libertação e que parecia disposta a reduzi-lo à insignificância, à simples figura decorativa.


O «Dos Santos, amigo» não só se pôs a milhas dos seus correligionários partidários, mas também fez-se distante daquele povo que o aplaudiu, muitas vezes mesmo debaixo de um sol abrasador.


O povo agradece-lhe o papel jogado para a pacificação do país, em função de uma guerra atroz, que fragmentou não só o tecido humano, mas também físico do país. Mas, queria tê-lo mais perto de si. Só que, como tudo indica, até para as crianças, o povo parece temê-lo mais do que apenas respeitá-lo.


É que o Presidente, que todos cantam amigo, em actos públicos, fez-se rodear de pessoas que extrapolam as suas competências e de um «exército», que quando sai à rua, fá-lo sempre com ares de poucos amigos e uma postura ameaçadora.


José Eduardo dos Santos continua ainda o amigo com quem o povo está? Na minha modesta opinião, não. Absolutamente não. É que se o fosse, não teria permitido, por exemplo, que as demolições forçadas acontecessem, não permitiria que crianças de tenra idade fossem jogadas ao relento por força de camartelos insensíveis.


Mas, ele trouxe-nos a paz e restituiu a dignidade aos angolanos, diriam os defensores do templo. Muito bem, obrigado. Ninguém, nem mesmo a história, poderá roubar-lhe este feito, que exige, acima de tudo, sérias reflexões, porquanto é avisado olhar-se para o passado para, desta forma, perspectivar-se o futuro.


É que o inverso também é verdade: em sete anos desde o calar das armas, o Presidente da República, porque chefe do Governo, teria empreendido todos os esforços tendentes a reduzir o cortejo de mortes que se assiste no Hospital Pediátrico, por doenças evitáveis, assim como impediria que o país continuasse a dispor de um enorme «exército» de crianças fora do sistema de ensino.


Resultado: o país, gerido por José Eduardo dos Santos, continua a figurar nos lugares cimeiros dos países com um dos maiores índices de mortalidade infantil – onde chegar aos cinco anos pode significar um milagre – e os níveis do analfabetismo, mais do que baixar, disparam.


José Eduardo dos Santos ainda é o «Dos Santos amigo»? Não. Absolutamente. Caso o fosse, teria evitado as colossais assimetrias entre os poucos que têm muitos e os muitos que têm muito pouco. Todos nasceriam e seriam iguais perante a Lei.
Se, na realidade, fosse o amigo de um passado recente, de certeza absoluta que teria conferido oportunidades iguais entre os filhos da «nomenklatura» e os da plebe. Mas, não é o que se vê: os filhos do poder, porque beneficiados por compadrios e outras conveniências, jactam-se como empreendedores.


A «arraia-miúda», essa, que aplaude o «amigo» nos comícios de sol ardente, apenas assiste a caravana a passar, ladra, mas a sua voz não se faz ouvir, e rende-se aos desígnios e caprichos daqueles que se fizeram endinheirados com o dinheiro que pertence a todos os angolanos.


Será que ainda vale gritar, a plenos pulmões, «Dos Santos, amigo, o povo está contigo»? Talvez sim, talvez não. Sim, porque vale a pena acreditar que o lado humano do Presidente da República venha ao de cima e os angolanos sejam contemplados com um país de iguais oportunidades. Não, porque, pelo rumo que o país real tem vindo a tomar, o clientelismo deixou de ser excepção. É regra.


Confesso que gostaria de ver crianças a gritarem, com o mesmo entusiasmo, o refrão que parecia um quase hino. «Dos Santos, amigo, o povo está contigo». Mas, tal parece uma pretensão parece impossível, porque assim como «a democracia não enche barriga», as palavras de ordem, essas também, não alimentam.


E as crianças desses tempos já não aprendem «coisas de sonhos e de verdade», deixaram de aprender como se ganha uma bandeira, porque a fogueira apagou-se e esfumou-se o sonho de um país melhor. Aprenderam que antes do patriotismo mais vale aprenderem a lei da sobrevivência, sob pena de acabarem na rua, com as mãos estendidas à caridade alheia.


Aperceberam-se, mesmo em tenra idade, que o país real continua mergulhado na mesma incerteza dos tempos da guerra. Os discursos continuam mais falaciosos do que realistas. Promete-se mas há dificuldades no cumprimento das mesmas.
E o mesmo povo, que um dia gritou, de viva voz, «Dos Santos, amigo, estamos contigo», é o mesmo povo que agora se manifesta cansado dos dizeres laudatórios, de promessas que se esfumam ao simples virar de esquina.


E o «amigo» sabe que esta é a realidade. Percebeu-se, quanto antes, que por detrás daquele semblante alegre de quem o acena nos comícios e noutras manifestações, esconde-se o desejo manhoso de alguém que se pretende vingar nas urnas.
O «amigo» compreendeu, por isso, que, mais do que escalar, é de todo inteligente contornar a montanha. E contornar pode significar evitar o grande desafio. Não o «Grande Desafio» imortalizado por António Jacinto – num tempo que se punha despreocupadamente o livro no chão -, mas, isto sim, o grande desafio das urnas.


Mas, a realidade tem tratado de demonstrar, indirectamente, que essas directas serão atiradas para as calendas gregas. E dali, então, virá o fim: perder-se-á o «amigo», mas, em contrapartida, poder-se-á ganhar um «líder eterno».


Com «amigos» assim, que povo, que país, precisaria apelar por inimigos?