Luanda - Ponto prévio IV: Perante a pandemia Covid 19, cada um deve fazer a sua parte, pelo que é reservado aos, investigadores, estudiosos, enfim, proporcionarem neste período do estado de emergência, entre outras, artigos acadêmicos capazes de transformarem a quarentena versus fica em casa versus isolamento social, não momentos de tédio e de inércia mas, momentos de aumento de conhecimento do domínio científico-social na sua transversalidade, com enfoque sempre que possível (para nós angolanos), sobre a realidade histórico-social da nossa pátria – Angola, (a verdadeira história de Angola ainda está para ser contada), razão pela qual me propus a partilhar esta nova temática.

Fonte: Club-k.net


A visão politica de Agostinho Neto, Primeiro Estadista de Angola Independente, ultrapassou fronteiras quando transformou a independência de Angola não um fim da dura luta anti-colonial, mas um novo marco de continuação desta luta aos países da região austral de África ainda sob julgo colonial e ou segregacionistas.


Mas foi o pragmatismo da sua visão geral de África de então (década 70 do século passado), a braços com um complexo processo de descolonização (que se misturava com tentativas de neocolonização por parte das ex-potências) que marcou o seu espaço num núcleo restrito de líderes africanos comprometidos com o sentido progressista dos povos, com a célebre frase “... África parece um corpo inerte, onde cada abutre vem debicar o seu pedaço...” em razão do contínuo e desenfreado interesse monopolista e imperialista, na pilhagem dos recursos naturais africanos, em não poucos casos, acobertados pelas elites políticas dos Estados recém independentes.


Quis o destino (qual feitiço virar contra o feiticeiro) que mais de 40 anos depois, Angola a sua pátria, é aos olhos de todos os epicentro não do coronavírus, mas de uma das maiores engenharias de delapidação da coisa pública, remetendo o povo angolano novamente a uma situação de vida difícil.


Tal como refere a peça difundida pela Televisão Pública de Angola, “... Pessoas com posição de autoridade, disfarçadas de bons cidadãos, descomprometidas com o bem comum, egoístas, gananciosas, pessoas supostamente boas, aproveitam-se da sua posição de autoridades, enganando o cidadão e ao Estado...”.

Se Neto chamou de abutres aos delapidadores dos recursos de África, João Lourenço optou em chamar de marimbondos aos delapidadores dos recursos angolanos, criando um espaço de abordagem académica sobre a dimensão da corrupção, sua incidência na economia e no sistema de Estado angolano, uma linha de pesquisa para investigadores de vertentes económico-financeiras, que não é o meu caso, pelo que faço uma inversão de abordagem, para a vertente da governação e gestão pública com incidência local, partilhando algumas reflexões em torno da actual situação das localidades africanas, com a temática: África parece um corpo inerte... agora por falta de uma identidade local.

UMA ABORDAGEM ACADÉMICA ASSENTE NA ANÁLISE CRÍTICA DESCRITIVA


A 30 de Agosto de 2019 o Club K honrou-me com a aceitação e publicação do meu primeiro artigo intitulado “ A DESCENTRALIZAÇÃO EM ÁFRICA ENQUANTO FRACASSO POLÍTICO DOS GOVERNOS” uma hipótese académica assente na análise crítica descritiva, alertando que a descentralização em África estava a revelar-se sinónimo de fracasso político dos Estados/Governos africanos. Recordei estudiosos, que nas suas abordagens sobre o quadro da relação Poder Central e Poder Local por via da descentralização, considerarem esta (descentralização), representar um recurso político e institucional de que os poderes pós-transicionais se apropriam e reivindicam como prova da sua conversão à ordem democrática, sem que, todavia, seja fundamentalmente posta em causa a sua natureza autoritária: em duas palavras, mudar tudo para que nada mude.


A constatação nua e crua era de que a maioria dos Governos dos Estados africanos, não têm conseguido resolver na generalidade a problemática da pobreza das populações locais, a satisfação das suas necessidades básicas, da saúde, educação etc, etc. As localidades africanas na sua maioria caracterizam-se por uma acentuada degradação das estruturas de saneamento, sistemas de energia e de água para não falar do mau estado das vias de acesso com consequências para a mobilidade de circulação de pessoas e bens, entre outras.
Apontei como causas desse fracasso político da descentralização em África, entre outras, os conflitos (político/militares) cíclicos decorrentes particularmente dos pleitos eleitorais, o formato da devolução de atribuições e competências do Poder Central para o nascente Poder Local, bem como a forma como os Estados Africanos abordam o ordenamento do território e a urbanização das respectivas localidades.

 

Defendia que, a forma como os Estados Africanos abordam o ordenamento do território e a urbanização das respectivas localidades, constituía o factor crítico e condicionante do êxito da descentralização em África, pois remetia-nos ao elemento estruturante da visão do Estado sobre o local e que os Governos dos Estados africanos precisavam impor-se como desafio: A necessidade de uma nova identidade para as actuais localidades africanas, cujo alinhamento é também consentâneo com uma visão pragmática da União africana “os Estados devem ser construídos a partir das respectivas localidades”.


Dias depois da publicação deste artigo, fui surpreendido com uma chamada de um jornalista da Voz da América, parabenizando-me pela linha da pesquisa, mas com interesse maior em compreender o que “então” significaria Nova identidade local para as actuais localidades africanas.


Dada o período curto da entrevista, em maior ou menor grau, recordei-lhe que a maioria dos actuais países africanos foram colonizados (em quase 5 séculos), cuja relação colonizador e colonizados inicia numa fase de desenvolvimento social local precário, sendo atribuído por conseguinte aos colonizadores a criação das localidades africanas em função das suas vivências e necessidades económicas, pelo que soe dizer-se que as localidades africanas corporizaram-se nos antigos fortes, entrepostos comerciais, fazendas, áreas piscatórias, cruzamentos de estradas, etc, etc.


Mas no referido artigo fundamentava que, se por um lado é compreensível que os Estados africanos saídos das respectivas independências herdassem as localidades criadas pelas vivencias e interesses económicos dos respectivos colonizadores, constituía agora um “paradoxo” como gosta de afirmar o Presidente da República, que passados 20, 30 e tal anos, os Estados africanos não se impusessem o desafio de criar a sua própria “Identidade local”, consentânea com a forma de ser e de estar dos respectivos munícipes. Não existindo uma nova identidade local, assiste-se a uma continuada descaracterização das localidades herdadas, por via da sobreposição de novas infraestruturas físicas, aumento populacional e, em consequência o desordenamento do território e a desarmonia urbanística. Os investimentos públicos (novas escolas, hospitais,...) recentes, não se traduzem em eficientes, muito menos elevam a qualidade de vida local perante a desarticulação estrutural das localidades, que desincentivam o regresso dos cidadãos das grandes cidades para as pequenas localidades (em alguns casos nem mesmo a troco de inserção no funcionalismo público). O resto todos nós sabemos: Falta de qualidade de vida, aumento da delinquência, aumento de doenças (algumas inclusive outrora erradicadas), acentuados conflitos de interesses de ocupação territorial entre o sector agrário, industrial e habitacional, etc,etc.


No fundo e, em hipótese académica, considero dificilmente resolvido a situação actual das localidades africanas, somente por via da devolução de atribuições e competências do Poder Central para o Poder Local (uma perspectiva jurídica em que a maioria dos Estados africanos já em fase de descentralização se encaminha), mas em primeiro lugar pela determinação de uma nova “Identidade local” que transcenda o estágio de governação local (desconcentrado ou descentralizado), mas garante o desenvolvimento local harmonioso nas várias dimensões – urbanísticas, ordenamento territorial, económicas-produtivas, equipamentos de utilidade pública equiparada nos vários níveis de divisão político-administrativa (cidades, vilas, povoações), etc, etc.


Nessa perspectiva académica e de forma sintética, a nova “identidade local” obedeceria a fundamentos sociais, preferencialmente sem ferir uma estratificação e hierarquia lógica de reestruturação do Estado a nível local, nomeadamente:


(i) A imperatividade das localidades africanas estarem dotadas de um novo instrumento (plano) de ordenamento da respectiva circunscrição territorial, alinhada (caso exista) aos instrumentos (planos) regionais, nacionais e transversais de ordenamento do território,


(ii) A imperatividade das localidades africanas estarem dotadas de instrumentos (plano director) urbanísticos, alinhada (caso exista) aos instrumentos (planos) regionais e nacionais de urbanização que permitam a implantação harmoniosa dos vários equipamentos – residências, infra-estruturas publico- administrativos, desportivos e de lazer, religiosos, de defesa e segurança, etc etc,


(iii) Dotar as localidades africanas de equipamentos sociais de interesse público (escolares, hospitalares, desportivos, recreativos...), consentâneoa com as tendencias inovadoras actuais, tirando partido também das novas tecnologias


(iv) (iv) Dotar as localidades africanas de equipamentos versus infra- estruturas de apoio a produção local, como canais de irrigação e áreas para implantação de infra-estruturas logístico- transformadora, para tipo de produtos agrícolas produzidos nas respectivas localidades;


(v) (v) Definir uma identidade padrão para as infra-estruturas administrativas das localidades, uniformes e ou de cobertura nacional de cada Estado africano, (Administração, palácios, tribunais, unidades policiais...).

O CASO DE ANGOLA


No que pode ser entendido como a procura de uma nova identidade local, contextualmente e do ponto de vista histórico, pode o ano de 2002, (com o alcance da Paz definitiva), ser considerado o marco do engajamento do Estado angolano, na revitalização das localidades (cidades, municípios, comunas e demais entes territoriais). Na verdade, assiste-se nessa década uma dinâmica generalizada (jamais vista em Angola) de reabilitação de infra-estruturas sociais, de saneamento e de mobilidade, ao meio de novas construções habitacionais (do Estado, de imobiliárias, privadas e ou particulares), no que foi corporizado posteriormente como PROGRAMA HABITACIONAL, ou politicamente eleitoralista como a CONSTRUÇÃO DE UM MILHÃO DE CASAS.


Nesta linha de desenvolvimento local, assente na requalificação dos principais centros urbanos, na infra-estruturação ou no simples loteamento para auto- construção dirigida, bem como na expansão urbana das principais cidades de Angola com o posterior surgimento das CENTRALIDADES, é historicamente incontornável associar a mudança das imagens das cidades de Luanda ao Sr. Aníbal Rocha; do Huambo ao Eng Paulo Cassoma, ou do Lubango ao Eng Isaac dos Anjos, tidos como cabos (não de guerra) da governação local, com marcas indeléveis na coordenação local das reabilitações e ou requalificações dessas localidades, pelo meio de processos politicamente expostos de realojamentos de munícipes – uma prática então pouco habitual, sendo que, inesperadamente no auge do exercício da governação, foram cooptados para a governação de outras provinciais e ou a assunpção de cargos políticos a nível central, no que pode ser visto como um dos grandes tabús (ou academicamente referido como factor condicionante) do MPLA enquanto partido no poder: A gestão dos seus quadros indicados para o exercício de funções políticas no aparelho do Estado.


Sem querer estabelecer paralelismo sobre o tal “tabú”, homenagem seja feita ao Ex Deputado do MPLA, da então Assembleia do Povo MANUEL DA FONSECA (assassinado no Huambo no decurso dos sangrentos 55 dias – pós eleitoral de 92),com quem privei anos de convivência familiar e de ensinamento da visão de mais velho, que a seu tempo atribuía a União Nacional dos Trabalhadores Angolanos – UNTA, o descalabro da economia nacional, pelos contornos da política de emulação socialista, onde os melhores trabalhadores, tidos como mais destacados (bons mecânicos, agricultores, carpinteiros....) eram a seguir cooptados para assumirem serviços de caris político-partidário, nas estruturas da referida organização sindical, fragilizando continuamente a evolução produtiva das empresas de que eram provenientes.

Outra particularidade do processo de revitalização das localidades angolanas na busca de uma nova identidade, foi a designada CONSTRUÇÃO DE 200 FOGOS HABITACIONAIS POR MUNICÍPIO, que poderia ter sido um factor para o alavancar da vida nos municípios, mau grado as disfunções de planeamento, a escolha “cinzenta” dos empreteiros e a execução financeira pouco transparente (para não falar de mais factores condicionantes), terem levado ao descambar do referido sub-programa.


Assim é que, a partir de 2014, envolta de recessão económica (ou fim do saco cheio) e de outros factores condicionantes ligados ao planeamento, versus execução financeira e quebra dos contratos celebrados de manutenção e serviços, assiste-se ao regredir da imagem das localidades angolanas, ao meio pelo colapso das estradas nacionais (depois chamadas descartáveis), transformando centros urbanos como o Huambo, Lubango, Benguela e mesmo parte da cidade de Luanda, numa marca de DESCALABRO DA SUSTENTABILIDADE DO DESENVOLVIMENTO LOCAL, face aos avultados investimentos realizados, cujo não retorno condicionaram até aos dias de hoje, a execução de outras grandes obras de infra-estruturas integradas em cidades como Sumbe, Porto Amboim, Cabinda, Mbanza Congo, etc.

 

No actual contexto de governação e, ciente do seu papel na preservação do bem estar do cidadão, o Executivo põe em marcha o PIIM – Programa Integrado de Execução Municipal, como novo instrumento para a revitalização das localidades, numa perspectiva de cobertura das principais necessidades (de infra-estruturas a todos os níveis), em arrojada e controversa engenharia financeira, tendo como suporte o Fundo Soberano. O PIIM, em razão da sua embrionária execução mantém em aberto qualquer análise académica.


Os aspectos acima referidos corporizam sinteticamente a evolução das localidades angolanas na busca de uma nova identidade cujos factores condicionantes são similares às das localidades africanas acima apontadas, (salvaguardando-se aqui o quadro das diferenciações das realidades e políticas públicas de cada Estado), pelo que à guisa de conclusão consideramos A VIDA FAZ-SE NO MUNICÍPIOS, possível se (i) os municípios estiverem doptados de forma agregada ou separada de instrumentos de ordenamento de território e de urbanização, clarificando-se a identificação e uso dos terrenos ajustados aos diversos fins (ii) Dotar os municípios de equipamentos sociais de interesse público (escolares, hospitalares, de serviços públicos,..) e consentâneos com as tendências inovadoras actuais, tirando partido também das novas tecnologias, (iii ) Definir uma identidade padrão para as infra-estruturas administrativas das localidades, uniformes e ou de cobertura nacional (Administração, palácios, tribunais, unidades policiais...), (iv) Dotar municípios de equipamentos versus infra-estruturas de apoio a produção local, como canais de irrigação e áreas para implantação de infra-estruturas logístico- transformadora, para o tipo de produtos agrícolas produzidos nas respectivas localidades.

 

Finalmente referir que os desafios do Estado angolano, face a imperatividade da implementação das autarquias locais, serão pouco avisados, se ultrapassarem o que a literatura académica, o que os manuais do sistema das Nações Unida e os documentos dos Órgãos Especializados da União Africana, convergem: “AS LOCALIDADES E OU ASSENTAMENTOS POPULACIONAIS DEVEM ESTAR PREVIAMENTE, REPITO PREVIAMENTE DOTADOS DE INSTRUMENTOS DE ORDENAMENTO DE TERRITORIO E DE URBANIZAÇÃO”, pelo que auguro enquanto cidadão e académico, que a institucionalização das autarquias locais não descure esse elemento logico- cientifico, que levou ao fracasso do exercício da governação local pelos órgãos da Administração Local do Estado, para o mesmo fracasso aos nascentes Órgãos da Administração Autárquicas de Angola.


Eduardo Lisboa – Mestre em Governação e Gestão Pública