Lisboa - Depois do fim da guerra só em 1980 a sua saga terminou. Foi reintegrado e promovido a Capitão (graduado em Tenente-Coronel). O império e as malhas que o mesmo tecia iam ficando cada vez mais para trás

Fonte: Observador

Marcelino da Mata vangloriava-se de ser o mais condecorado oficial vivo do Exército Português. Já não é; morreu na quarta-feira. Uma Ordem da Torre e Espada, três Cruzes de Guerra de 1ª classe, uma Cruz de Guerra de 2ª classe e outra de 3ª, eram as condecorações em que assentava a honraria. Todas elas conquistadas ao longo de uma intensa vida operacional de doze anos nas matas da Guiné a combater o PAIGC.

 

Numa entrevista que lhe fiz faz já alguns anos comecei por uma pergunta elementar: o que é que havia levado um guineense retinto, como ele a combater o PAIGC, bandeira de tantos guineenses como ele na causa da independência da Guiné? A resposta que parecia ter na ponta da língua foi pronta e singela: não fora ele o único e todos os que, como ele, seguiram esse caminho, foi por se considerarem portugueses. Um português da Guiné tinha o “dever” de combater o PAIGC, acrescentou.

 

No seu caso houvera, contudo, outra razão pessoal, de vingança, como fez questão de precisar. Em 1962 um grupo armado do PAIGC matou-lhe o pai, bem como uma irmã, de seu nome Quinta da Mata, que estava grávida de oito meses. A mãe, desesperada, fugiu para Bissau onde ele, ao tempo, viria a cumprir o serviço militar obrigatório que era próprio desses tempos.

 

O sentido de missão com que encara o serviço militar leva-o a voluntariar-se para frequentar um curso de Comandos. Também o atrai o garbo daquele corpo de tropas especiais. Passou com boa classificação e não tardaria vir a ver-se integrado num grupo de Comandos, o primeiro a operar na Guiné, cujo comandante foi o Alferes Sousa Saraiva. Marcelino, um dos 25 elementos do grupo, tinha então o posto de 1º cabo.

 

A sua vida operacional como Comando começou em 1964 quando participou na Operação Tridente que se desenrolou na Ilha de Como, sob o comando do Comandante Alpoim Calvão – do qual falava, carregando sempre na expressão, como “o mais valente” militar português que passou pela Guiné. A seguir punha na lista os nomes de António Ramos, Carlos Azeredo, Carlos Fabião e Lobato Faria.

 


Integrado no grupo de Comandos do alferes Saraiva ainda participou noutras operações convencionais, como a de Canchafá, a Norte de Pirada, na qual o seu desempenho lhe valeu a promoção a Furriel, por distinção. Mas será já como comandante de Grupos Especiais, primeiro os “Roncos”, de Farim, depois os “Vingadores”, que viria a distinguir-se e a adquirir fama. Cedo passaria a 2º sargento e depois a alferes.

 

Eram grupos de composição reduzida, no máximo 20 homens, dotados de grande mobilidade; actuavam à paisana ou com disfarces apropriados às circunstâncias e isso era para não deixar marcas, sobretudo quando os alvos a atingir se situavam no Senegal ou na República da Guiné. Montagem de emboscadas, assaltos, minagens e sabotagens – eras essas as acções mais usuais. Ao todo, mais de mil. Nunca foi ferido.

 

A operação de que guardava “boa memória”, dizia assim, foi, porém a do resgate de um piloto, tenente Miguel Pessoa, que se ejectara de um caça Fiat G-91 depois de o aparelho ter sido atingido na cauda por um “Strella”. O corredor de Guiledje no qual o tenente viria a cair era uma zona infiltrada pelo PAIGC. Não havia tempo a perder para evitar que caísse nas suas mãos. Ao cabo de uma noite de progressão na mata, os “Vingadores” de Marcelino da Mata, reforçados com um grupo de pára-quedistas, deu com o piloto, ferido, e procedeu ao seu resgate.

 


O PAIGC execrava Marcelino da Mata e o seu grupo – em especial o seu “trabalho”. Tratava-o por sanguinário e traiçoeiro. Negava os epítetos revelando-me que passara a levar para as operações um corneteiro, Putna, com a função bizarra de anunciar ao adversário o lançamento das suas operações. “Djunto”, nome pelo qual tratava um homem franzino que veio com ele para a entrevista, confirma a façanha. Era o seu adjunto nos “Vingadores”. Assim olhava ainda para ele.

 

No dia 25.Abril.74 estava estacionado com o seu grupo em Gadamael, quando o comandante do Batalhão de Aldeia Formosa lhe comunicou, de chofre, que “a guerra acabou”. Já não precisava de continuar com as suas operações de localização e assalto de bases do PAIGC ou de perseguição de grupo itinerantes de “terroristas”, como ainda na véspera eram tratados (mas depressa deixaram de ser).

 

À medida que os ardores revolucionários avançam na Metrópole (o anti-colonialismo é um dos seus principais alimentos), Marcelino da Mata vê o seu passado e a sua história virarem-se cada vez mais contra si próprio. A 12 de Maio de 1974 deixa Bissau rumo a Lisboa, mas para isso precisou já de contar com a cumplicidade do último comandante da Base Aérea e seu compadre, o então Coronel Martins Rodrigues.

 

Os tempos que vive daí para a frente são de má memória. Diz que foi tratado “como um cão” pelos revolucionários e novos-revolucionários que o viam como um empecilho ou um intruso. Passou por estar ligado ao MDLP e isso custou-lhe dissabores como o de ter sido preso e seviciado. Só em 1980 a saga chegou ao fim. Foi reintegrado e promovido a Capitão (graduado em Tenente-Coronel). O império e as malhas que o mesmo tecia iam ficando cada vez mais para trás.