Lisboa - Quando a Organização Territorialista Judaica andou à procura de espaços possíveis para uma implantação, Angola, nomeadamente o Planalto de Benguela, era uma das hipóteses favoritas. O projeto chegou a ser aprovado pelo Senado português em 1913, mas nunca sairia do papel, como conta Esther Mucznik no seu novo livro A Grande Epopeia dos Judeus no Século XX, aqui em pré-publicação


Fonte: Visão

1000 famílias judaica partiriam para Benguela em 1913

O VII Congresso Sionista tem lugar em 1905. No decorrer dos trabalhos foi analisado o relatório final sobre o Uganda e a sua conclusão foi negativa. O território disponível para colonização judaica apenas permitia acolher 20 000 pessoas, número insignificante face às necessidades das centenas de milhares de judeus, principalmente russos.


Assim o Congresso, no qual predominam os então denominados «Sionistas de Sião» – entre os quais está Haim Weizmann, o obreiro da Declaração Balfour em 1917 e futuro primeiro presidente do Estado de Israel –, rejeita a oferta do Uganda. Para estes o objectivo é o retorno à terra ancestral e nenhuma outra a pode substituir. Mas o Congresso não é unânime. Uma minoria signifcativa, tendo à cabeça o escritor Israel Zangwill, defende a necessidade imediata de um território judaico autónomo em qualquer parte do Mundo e abandona a Organização Sionista.


A sua máxima será: «Mais vale um sionismo sem Sião do que Sião sem sionismo.» Zangwill fundará a ITO, Organização Territorialista Judaica, com sede em Londres e que subsistirá até à aprovação da Declaração Balfour, altura em que, com a perspectiva palestiniana mais próxima, grande parte dos seus membros se junta à Organização Sionista. Embora a sua dissolução só seja confirmada em 1925, a ITO já perdera nessa altura a sua razão de ser.


Mas em 1905 a Palestina ainda era uma possibilidade remota e a ITO procura espaços possíveis para uma implantação judaica. Um deles é Angola, nomeadamente o Planalto de Benguela. O interesse judaico nos territórios coloniais portugueses vinha de longa data: em 1886, Abraham Anahory, eminente judeu de Lisboa, já propusera Angola, nomeadamente a zona dos planaltos, como possível destino de uma imigração judaica maciça.


No Boletim n.º 1 de 1912 da Comunidade Israelita de Lisboa que acabava de ser reconhecida oficialmente pelo regime republicano, José Benoliel, escritor, professor e director do Boletim, refere que, por intermédio de Anahory, ele próprio entrara em contacto com o visconde de Ouguela e com a Aliança Israelita Universal (AIU) para «aproveitar a próxima vinda do barão de Rothschild a Lisboa com o objectivo de, pela sua o&ciosa intercessão, melhorar a situação dos israelitas portugueses, que sob vários pontos de vista deixava muito a desejar» e «promover a vinda para Portugal de colónias de israelitas russos ou romenos».


O destino desses israelitas seria Angola, mas José Benoliel acrescenta que, por motivos que nunca chegou a conhecer, a AIU entendeu não dever patrocinar a ideia. Mais tarde, em Maio de 1903, o próprio Theodor Herzl chegou a encontrar -se com o representante português em Viena de Áustria, o conde de Paraty, para estudar a hipótese do estabelecimento de uma colónia judaica em Moçambique, mas esta tentativa também não resultou. Foi preciso a mudança de regime em 1910, para a hipótese de Angola ser encarada de forma mais séria.


Um Estado dentro de outro Estado?

Antes mesmo da aprovação do projecto-lei, o órgão sionista Die Welt dera conta, nas suas páginas, das propostas portuguesas, o que motivou a vinda a Portugal de delegados da Suíça e da Rússia da ITO, assim como do próprio presidente Israel Zangwill. A imprensa portuguesa dedica bastante atenção ao acontecimento, sublinhando de uma forma geral as vantagens do projecto, nomeadamente as financeiras. Com efeito, a 28 de Maio de 1912, o jornal O Século considerava que, por muito pobres que fossem os judeus perseguidos da Rússia, deixariam inevitavelmente uma parte do seu capital durante a sua escala em Lisboa.


Por seu turno, Terlö, entrevistado pelo mesmo jornal a 5 de Junho de 1912, assegurava que 1000 famílias partiriam para os planaltos angolanos, para o que dispunham já de 1300 contos de réis. Afirmava também que se iria realizar uma conferência em Viena com o objectivo de reunir o máximo apoio financeiro para o plano de colonização. A conferência teve efectivamente lugar a 27 de Junho de 1912 e Terlö foi o relator do projecto, entretanto aprovado, com base em relatórios preparados por Pereira do Nascimento, chefe das missões de estudo ao longo de cinco anos no Planalto de Benguela.


A 2 de Agosto parte para o Lobito uma comissão designada pela ITO para estudar a situação dos planaltos angolanos, che&ada pelo professor John Walker Gregory. Durante cerca de três meses, a comissão percorreu uma região de «3000 milhas quadradas, num total de 1126 percorridas, das quais 340 milhas a pé»15, para além de se encontrar com diversas entidades primeiro em Lisboa, antes de embarcar, e depois em Benguela. A comissão regressou a Inglaterra a 17 de Outubro de 1912, mas o relatório só seria divulgado em Junho de 1913.


Gregory considera positiva a colonização judaica, sublinhando o facto de a presença da ITO em Angola poder ser vista pelo Governo português como um reforço da sua própria soberania em Angola, nomeadamente face à cobiça de países estrangeiros. Também considerava que a terra angolana era superior à da Palestina para efeitos de colonização. Por seu turno, no prefácio ao relatório, Zangwill destaca outro aspecto a seu ver muito positivo: a «presença de sangue judeu entre os portugueses». Na sua opinião: «Todo o Portugal está subtilmente saturado de subconscientes simpatias raciais e essa combinação de judeus e portugueses para criar um novo centro de civilização em Angola é uma mistura mais natural do que qualquer outra.»


O projecto-lei só será discutido pelo Senado em Maio de 1913, sentindo -se, segundo Medina, «um vento hostil» ao longo do debate que dura até finais de Junho. As razões prendem -se essencialmente com o receio da instalação de um «Estado dentro doutro Estado», conforme já referira na Câmara o deputado Bernardino Roque, opositor do projecto, que interpretava como a concretização «da sua [dos judeus] velha aspiração, o ideal da sua nova Sião». No geral, a simpatia é pouca, apesar de intervenções como a de Francisco Correia Lemos, lembrando a necessidade de reparar «um grande pecado, praticado por D. Manuel», ou de José Nunes da Mata, lembrando que «se o Senado der o seu voto à proposta de lei, presta um bom serviço à humanidade e à Pátria e pratica um acto de reparação para com muitos descendentes de israelitas que foram vítimas dos nossos antepassados». O projecto acaba, contudo, por ser aprovado pelo Senado a 29 de Junho de 1913, mas nunca passará do papel. O passo &nal obrigatório era a votação conjunta pelas duas câmaras mas, inexplicavelmente, isso nunca aconteceu, inviabilizando na prática o projecto. Receio de perda de soberania portuguesa, desconfiança e, sobretudo, o próprio desinteresse do Governo de Afonso Costa terão contribuído para este desfecho.


Mas não só. Nas vésperas da Primeira Grande Guerra, a própria ITO entrava em crise e muitos dos seus apoiantes abandonavam a organização a favor do sionismo palestiniano. O próprio Israel Zangwill, juntamente com Alfredo Bensaúde, concordou que o projecto angolano devia ser abandonado. Na verdade, para os judeus que durante 2000 anos oraram «Para o ano que vem em Jerusalém», Sião só poderia ser em Sião, ou seja, na Palestina do século XX.