Luanda - Na sequência da série de entrevistas com os professores de literatura, fomos ao encontro de Manuel Muanza, docente de literatura do Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED). Aquele académico falou-nos sobre as várias nuances porque passa a literatura angolana, elencou alguns conceitos teóricos da literatura, como o de angolanidade, geração das incertezas, a função das editoras no nosso mercado e, como não podia deixar de ser, o papel da academia em relação à literatura.  

Fonte: SA

   
Professor, se tivesse que fazer uma descrição em termos historiográficos da nossa literatura, como é que o faria?


M.M- Bom, é sempre uma tarefa difícil, historiar uma literatura, não é? Porque é preciso tomar em consideração todo processo do surgimento, evolução do processo de produção estética; é uma tarefa muito complexa. Só para dar um exemplo, existe uma comissão que foi nomeada há anos, pelo então Secretário de Estado da Cultura, para se construir uma história da literatura angolana. E a comissão até hoje ainda não começou a escrever, não é? Então é uma tarefa difícil. Mas, pronto, a literatura angolana, como qualquer literatura, tem sempre o seu momento de começo e é o caso da nossa literatura escrita. Para ser feita uma história literatura escrita, é preciso compreender os seus antecedentes que são os momentos em que não houve escrita, aquilo que se pode chamar de literatura sem letras, a literatura oral ou, melhor, oratura.

 

Este último não deixa de ser um conceito contraditório. Em princípio, literatura é o que está escrito. Quando se diz literatura oral já é uma contradição; é um conceito contraditório mas que é aceite embora um e outro conceito se refiram a sistemas diferentes de produção estética. Podemos falar em literatura oral. Há quem prefira o termo “oratura” (Hamilton, por exemplo), que é o processo que consiste em passar para escrita aquilo que permaneceu na oralidade até à data da sua passagem para escrita. Há quem, na tradição francófona, prefira “oralitura”, o que me parece lógico.

 

S.A- Como é que avalia, enquanto professor, a literatura angolana?

 

É sempre uma tarefa difícil porque quando falarmos do estado da literatura teremos de tocar em nomes de produtores e de obras. Mas, é preferível falar de obras do que dos homens que as produzem. Como se sabe em teoria, a história de uma literatura não é uma história dos homens, mas é a história das obras. Olhando para a história da literatura, olha-se para as obras e não para os homens. Isto é fundamental para evitar a suspeita em privilegiar uns em prejuízo dos outros.

 

Ora a literatura angolana deve ser entendido como sistema cujo processo teve origens, evoluiu e continua a manter-se. É sistema porque se trata de uma produção constante de obras. E vemos que há cada vez mais obras que se juntam àquelas que são fundadoras, entre as quais existem aquelas que são consideradas as mais representativas, as chamadas obras canónicas. Mas o cânone também é um outro caso polémico. Em todas as literaturas há produtos que são reconhecidos e que circulam universalmente, obras de reconhecido valor estético.

 

Não gostaríamos de citar nomes de autores, como atrás se disse, mas podemos citar obras, tais como o conjunto de que faz parte Mayombe, Jaime Bunda, o conjunto de obras de que faz parte Luanda. Há este tipo de obras que ultrapassam as fronteiras nacionais e que se vão inscrevendo no próprio património cultural universal. Este é um indicativo importante para se dizer que a literatura angolana é um sistema que se mantém vivo. Se me pergunta qual é o actual estado da literatura angolana, a resposta, quanto a mim, é curta: a literatura nacional é um sistema que está em permanente existência, porque das obras anteriores somam-se novas obras que se afirmam. Novos autores e novos produtos: isto é importante para caracterizar uma literatura. Como qualquer outra, por exemplo uma literatura europeia, tomemos exemplo de uma literatura qualquer de um dos países europeus, ou do continente americano que, das origens até aos nossos dias, mantém o sistema em produção permanente. Portanto, isto é o que se deve valorizar.

 

Professor, sem pretender ser nostálgico, mas gostaríamos de recuar para as décadas de 80 até meados da década de 90, altura em que houve uma produção literária pujante por parte da União dos escritores angolanos. Naquele tempo também havia um exercício mais regular da crítica literária. Hoje o quadro é diferente, a que se deve isto?

 

Bem! Naquele tempo houve também muitos e bons leitores. Comprávamos o livro ao preço do pão. Lembro ter coleccionado textos de todas as séries da UEA. Perdi-os quase todos, muitos são hoje irrecuperáveis. Só para dar um exemplo, nunca mais vi a obra de Freitas, Silêncio em Chanas, uma narrativa que prendia o leitor. Sem pretender ser sentimentalista, penso que as condições históricas que favoreceram a produção de leituras críticas em relação às outras não são as mesmas de hoje. O Estado Angolano permitiu que acontecesse o que se deu na altura, que é a produção de textos de reflexão em torno da literatura. Porquê? Porque houve órgãos financiados pelo Estado e que recebiam apoios do Estado e que regularmente foram feitas edições de obras. Por consequência, surgiam pessoas que reflectiam sobre a literatura, refiro-me por exemplo a “Lavras & Oficinas” que, apesar de ser produzida pela U.E.A, tinha o apoio do Estado, e funcionava normalmente. Hoje, pessoalmente não sei quais são as razões que fizeram parar aquele órgão. A U.E.A não tem um órgão impresso, apesar de ter a página na NET.

 


As condições são diferentes hoje. Talvez seja esta a causa. Perdemos também um instrumento importante que era o Vida & Cultura, um espaço disponível para se ir reflectindo em torno das artes e da literatura em particular. Penso que são estas as condições que permitiram que houvesse uma produção e reflexão em torno das obras. Hoje em dia temos poucas possibilidades de encontrar um espaço específico para reflectir sobre as artes. Por exemplo, é possível publicar um texto num jornal generalista sobre literatura, mas não é um espaço apropriado, deviam existir espaços especializados para a publicação de reflexões em torno das artes, estes espaços não existem. Como vê, Vida & Cultura, por exemplo, foi um espaço importante, porque o crítico olhava para os instrumentos de que dispõe para publicar e lembrava-se que havia esse espaço e mandava para lá o texto. Hoje quem pretende reflectir em torno disto pensa duas vezes, se vai publicar num Jornal generalista. Coloca-se a questão de que nem toda a gente compra o Jornal generalista, há quem compre apenas os veículos da sua especialidade. Eu sou um exemplo disso. Quando vou à livraria, a primeira coisa que eu faço, é olhar para os livros da minha especialidade; um ou outro livro doutra área pode chamar-me atenção mas não o compro, embora goste, não compro porque ficou abalado pela sensação de estar a jogar o dinheiro para rua, porque não me faz falta um determinado livro que posso ler na biblioteca.

 


Então, vou lê-lo, de outra forma, vou à Biblioteca Nacional, ou peço emprestado a alguém, não compro para mim. O mesmo acontece com os Jornais, não vou comprar cinco títulos de Jornais todos os fins-de-semana, quando para minha especialidade nada ou pouco posso receber. Daí que, de vez em quando, posso encontrar um artigo num ou noutro jornal. Daí, em meu entender, o investimento nesta área devia ser o de retomar espaços especializados para publicar textos que reflectem sobre as artes, um jornal específico por exemplo, ou uma revista especializada ou um suplemento, que é fundamental para se fazer este exercício.

 

 

Quanto à Universidade, não se pode lamentar que não haja espaços daqui em diante. Nós aqui ao nível do ISCED temos a Revista Kulonga, que é especializada em ciências da educação, mas há espaço para outras coisas, há espaços para publicar textos em torno da produção literária, que é especialidade aberta no Mestrado e leccionada na graduação. Nós temos estado a pôr alguns textos fora do país, temos estado a exercitar reflexões em torno da literatura, por via da participação em fóruns internacionais, temos estado constantemente em conferências internacionais sobre Literatura, e alguns docentes estão filiados em organizações e centros de estudos na Europa e na América, concretamente no Brasil e Portugal. Isto é também uma maneira de levar o conhecimento e a reflexão que se faz em torno da literatura lá fora. Nós, neste momento, estamos a organizar a especialidade; já organizamos um caderno de estudos literários e linguísticos que está na Editora, que já deverá estar a caminho de impressão. Também já organizamos uma colectânea de textos dos docentes de literatura aqui no ISCED, que já devia estar publicado mas faltam verbas. Arranjamos um patrocinador, mas não conseguimos pagar a diferença que é necessária para o custo do papel, não temos dinheiro…riso.

 


Há estes problemas. Se houvesse no país instituições que financiassem a investigação seria mais fácil. Por exemplo, o caderno de estudos literários e linguístico vai ser publicado por uma editora do mercado local e a colectânea de textos e estudos literários será assumida por nós. Um dos caminhos que garante a publicação do que se faz na Universidade deve ser também o apoio de instituições vocacionadas. Infelizmente, não há no país tais instituições à semelhança, por exemplo, de Fundações que financiem a produção científica em várias áreas, sobretudo na área de reflexão sobre as artes. Lá fora existem, por exemplo, é possível organizar-se um colóquio e ser financiado por uma Fundação, cá não há Fundação alguma que financia este tipo de actividade, não é? Este é o grande problema, um país assim não pode viver nem avançar, não é? Nós podemos tentar fazer um esforço pessoal, um esforço de grupo, mas se não há um organismo que olhe para a promoção e financiamento da investigação em torno das artes e da literatura em particular, podemos fazer alguma coisa mas será sempre pouco, a experiência que conhecemos nos outros países é que existem instituições que apoiam e financiam a investigação e a publicação.


Que papel jogariam as editoras neste meio, professor. Porque hoje já temos pouco mais de meia dúzia de editoras. Que papel devem elas desempenhar?

 

Bom! Há aí duas questões, talvez, a colocar em relação às editoras. De um lado há textos de reflexão. Do outro lado há textos com valor estético, que é o valor predominante para o produto gerado pelos escritores. Em torno da literatura, por exemplo, não podemos dizer que não há publicações. Em relação à publicação desse tipo de textos de criadores o problema é complexo. Seleccionar este ou aquele é um problema complexo para uma editora. As editoras nascentes em Angola procuram, como se faz em qualquer parte do mundo, comercializar a qualidade. Mas neste momento em que se dá o começo da actividade editorial, haverá sempre o risco de publicar certos textos sem que tenham, por vezes, valor estético aceitável ou qualidade que a editora desejaria. Isto porque a editora deve ser selectiva, tem um fim comercial, além de promover a cultura. Uma editora está para produzir rendimentos, para lá do seu objectivo social de promoção de cultura. Mas tudo dependerá dos gabinetes de leitura que existem nas editoras, porque elas são apoiadas geralmente e, em qualquer parte do mundo, por um gabinete de leitura, que lê e determina se a obra tem alguma possibilidade de ser bem recebida pelo mercado. Determina também se um texto que vai ser publicado pode caber naquilo que se pode chamar de qualidade estética. É por aí que eu responderia a sua pergunta sobre se as editoras podem fazer parte daquela entidade valoradora do texto literário. Portanto, o facto de terem um gabinete de leitura já é bom, porque geralmente no gabinete de leitura existem especialistas em determinadas áreas: da literatura à arquitectura, do direito, etc. Estes gabinetes de leitura são os que apreciam e emitem juízos sobre o texto proposto à publicação. Quando publicado, para já comercialmente ganha a editora, mas também do ponto de vista estético ganha a própria literatura como sistema. Há este duplo objectivo das editoras.

 

Agora passemos para uma outra questão, que tem a ver com angolanidade na nossa literatura…

 

 

Bom! O conceito de angolanidade pode ser visto sob diferentes perspectivas, sob a perspectiva sociológica, perspectiva histórica, perspectiva política, de tal modo que o conjunto da produção literária de uma época ou de um período pode também ser visto sob várias perspectivas. Há o critério histórico, há o critério sócio – cultural e há o critério político para o estudo de um período ou de uma época literária. Isto é fundamental.

 

Angolanidade está relacionada com a visão do mundo que os intelectuais constroem em torno do espaço político, geográfico, cultural (incluindo espiritual). As tentativas de explicação que já ouvi e li são imprecisas e variadas e isto tem a ver com a dinâmica do próprio processo de produção do conhecimento científico.

 

Eu penso que com este conceito procura-se, no fundo, demonstrar que uma determinada literatura é uma literatura que tem uma nacionalidade. Há uma velha questão, que ocorreu em Moçambique, sobre a nacionalidade dos textos de Rui Knopfli: se os seus textos eram considerados literatura Moçambicana ou não eram literatura Moçambicana. E surgiu uma certa polémica. Angolanidade, no fundo, deve ser lida sob várias perspectivas. Isto tem uma relação com a maneira como se abordou a questão que se levantava nos anos 60, 70 e 80, na área da política, em África: a questão da africanidade de determinados procedimentos políticos e em muitos países falava-se de autenticidade. Então, era autêntico um determinado procedimento, se o mesmo respeitasse, por exemplo, as tradições; não era autêntico para um determinado procedimento político se esse incorporasse valores ou procedimentos ocidentais. Mas isto é hilariante porque quem defende a expulsão do que é ocidental na literatura usa gravada e fato ocidental. Por que razão, então, não busca pele de animal para vestir à africana?

 

Isto tudo, no fundo, acaba por ser uma falsa questão, porque hoje não há culturas puras; é difícil, por exemplo, olhar para um fenómeno e dizer que este fenómeno é puro e é genuinamente angolano e que não há elementos estrangeiros. Ora as culturas alimentam-se e realimentam-se entre si, e há aquilo que se chama de interculturalidade, ou seja, elementos de uma determinada cultura que circulam noutra cultura e encontros entre diferentes culturas, de tal modo que esta questão da angolanidade deve ser vista sob várias perspectivas e sem extremismo. É verdade que há sempre elementos específicos a determinados espaços territoriais ou a determinados grupos culturais ou linguísticos, mas a ponderação é sempre necessária na apreciação dos fenómenos. Se não for assim, chegaremos ao ponto de dizer que a obra do angolano tal não veicula angolanidade e deve ser expulsa da literatura nacional.

 

Estou a reparar que neste momento está na sua banca uma obra académica do professor Hamilton, com título “Literatura Africana, Literatura Necessária”. O que aborda esta obra, professor?

 

É interessante, porque esta obra volta sempre à minha mesa, tal como a outra do professor Pires Laranjeira, que é “literaturas africanas de expressão portuguesa”, e também professor Salvato Trigo, “Ensaios da Literatura luso - afro – brasileiro,” e do professor José Carlos Venâncio “Literatura Versus Sociedade”, e “Literatura e poder na áfrica lusófona”. Estas obras voltam sempre à minha mesa por uma questão académica. Porque nós estamos a formar professores no ISCED e a nossa perspectiva de ensino da literatura não é historiográfica. Nós não historiamos a literatura. Em relação aos estudantes, o que procuramos é que eles compreendam, tenham o essencial sobre as origens, os momentos de evolução e os momentos de ruptura na produção literária. Queremos que o estudante compreenda isto.

 

Porquê esta via? Porque procuramos que, essencialmente, o estudante que vai ser professor saiba olhar para um texto literário e explicar, demonstrar aos seus alunos, que um texto literário tem várias dimensões, aquilo que Juan Mukarovsky apelidou de “valores” da obra da arte: valor estético, existencial, ético socio-histórico, cultural. Posso dar um exemplo: ontem, numa das minhas aulas de literaturas africanas, estivemos a estudar Cabo-Verde.

 


Em relação a Cabo-Verde abordamos a claridade, os produtores da claridade, olhamos também para uma temática muito interessante daquele grupo, que era a seca. Então, o que se coloca aqui em relação a quem vai ser professor, por exemplo: tomando dois livros importantes como os Flagelados do vento do Leste (de Manuel Lopes), Famintos (de Luís Romano), que têm como tema a seca, extrai-se um episódio de cada obra. O estudante deve ser capaz de formular propostas de plano de aulas e preparar aulas sobre isto, destinadas aos alunos da 7ª, 8ª ou 12ª classe. O que é que nos interessa transmitir? O que nos interessa é que a partir destes textos os alunos estudem a língua e também a literatura, compreendam, por exemplo a dimensão histórica. Dimensão histórica porquê? Porque nos anos 40 dá – se então a seca em Cabo – Verde. E esta seca que foi terrível aí, teve como consequência a destruição das produções agrícolas. Luís Romano e o Manuel Lopes vão ficcionar esta realidade. Então, esta é a dimensão histórica do texto. Há uma dimensão pedagógica que é também fundamental: que é o lamento dos dois autores, sobretudo em Flagelados do Vento Leste, que dizem que naquela altura os Cabo-verdianos haviam sido abandonados pela comunidade internacional que não prestou atenção a eles. Então nós dizíamos que aí temos de explorar, em relação aos alunos, que se tratava de um momento em que os países ocidentais estavam empenhados na segunda guerra mundial, então não era prioridade apoiar qualquer crise que fosse; daí Cabo – Verde tenha sido um caso esquecido. E com isto os alunos acabam por aprender que nos anos quarenta havia a guerra mundial e que em Cabo – Verde se deu a seca, e que há textos literários que reflectem a este propósito. Quer dizer que finalmente os alunos acabam por compreender que a literatura africana pode, embora sendo ficção, servir para reflectir sobre os diferentes acontecimentos em diferentes momentos da história de um povo. Este é o valor pedagógico do texto literário. Por isso é que eu tenho este livro aqui…risos.

 

Como professor, gostaríamos de ouvir de si que leitura faz da expressão geração das incertezas?

 

As designações das diferentes produções estéticas estão muito ligadas à História e aos contextos. Geralmente a designação dos períodos literários e a designação das gerações obedecem também a estes critérios que são os critérios históricos, sociais e políticos.

 

É uma questão de sistematicidade na leitura que se pretende dos factos. Portanto, a designação é apenas uma questão de disciplina metodológica que procura orientar a leitura e compreender o carácter da produção numa determinada altura. Por isso é que se designam as diferentes gerações por algum nome, ou os diferentes períodos literários por algum nome. Quando se dá uma designação a uma geração ou a um período literário, o que se pretende é tentar demonstrar que em determinado momento da história da literatura predominou uma determinada estética, predominou um determinado estilo, predominaram determinadas temáticas fundamentais. Por exemplo, com o chamado Humanismo europeu pôs-se fim ao teocentrismo a favor do antropocentrismo na construção do texto literário. Boccaccio imortalizou-o em Novelas do Decameron. É mais ou menos isto que leva a diferentes leitores e historiadores da literatura procurarem ajustar as leituras que fazem a uma determinada designação, para facilitar abordagem. É mais para facilitar abordagem. Por isso, não há polémica nenhuma em olhar para uma determinada designação, contestar, aceitar ou propor uma nova designação; não há problemas nenhuns que isto aconteça, e esta designação pode ser tratada da mesma forma como se pode tratar da geração da Mensagem, não é? Porquê geração da Mensagem?

 

Por causa de uma determinada estética, a tal estética de compromisso com a sociedade, a estética de compromisso com a liberdade dos povos, não é? A chamada literatura comprometida relaciona-se com aquela geração que tinha o texto literário como arma de combate. E, por exemplo, geração da Mensagem porquê? Porque esta designação tem muito a ver com um determinado veículo, a revista Mensagem, a quem estavam vinvulados os autores da geração. Mas a geração, para já, do ponto de vista teórico, quando se diz que há uma geração, pretende dizer-se que criadores de textos estéticos, texto literário, têm as mesmíssimas preocupações na abordagem do tema, tem geralmente do ponto de vista biológico as mesmas idades (perspectiva biológica), há o predomínio de determinadas temáticas e as preocupações de estilo também são praticamente as mesmas. As tendências estilísticas são as mesmas, pode haver uma ruptura em relação a esta geração quando surgir uma outra forma de produzir o texto, no fundo não há assim que fazer uma grande dissertação em torno das designações dos períodos literários ou das gerações literárias. É uma questão, no fundo de comodidade, e de disciplina metodológica, para distinguir um tipo de produção do outro tipo de produção, ou de uma produção literária num momento concreto, em relação ao outro, do momento anterior ou do momento seguinte, só isto é que permite as designações.

 

Professor em 2005 foi criada uma comissão multidisciplinar, pelo então Ministro da Cultura Boaventura Cardoso, para escrever a História a literatura angolana; foram criadas várias comissões constituídas por especialistas estrangeiros e nacionais, e que tinham como prazo de entrega do draft em 2009. A verdade, porém, é que já passamos do período inicialmente demarcado, e até agora não temos qualquer outra informação sobre o andamento da referida comissão.

 

Gostaríamos de saber se faz parte desta comissão e se tem alguma informação sobre o andamento da mesma?

 

Bom! É útil que se tenha um texto orientador sobre o que aconteceu na história da literatura angolana. É sempre bom que o país tenha este texto, isto é importante, porque orienta a escola, orienta quem estuda, orienta o estrangeiro que não conhece a literatura, e orienta todos aqueles que, num momento ou noutro, estão interessados em compreender o fenómeno da literatura. Isto é importante, e esta iniciativa até é boa. Agora, claro, há o problema dos procedimentos, não é? As coisas falham sobretudo e não é bom que um organismo de Estado projecte um programa, que conceba um programa, organize um projecto e não cumpra os prazos. Isto não é muito bom para nós que temos uma visão crítica das coisas, com uma certa independência e com a liberdade de falar.

 


Podemos dizer que quando um projecto organizado pelo Estado falha sem explicação, sobretudo sem explicação pública, deduzimos que não há seriedade, não é? Geralmente é isto, mas se olharmos para as pessoas, individualidades convidadas, professores universitários no estrangeiros e no país, escritores e outros, dizemos que a seriedade relaciona-se com o projecto. Quer dizer que o problema não é com as pessoas integradas no projecto. Creio que o Estado deve fazer mais esforços para esclarecer isto. Eu não pertenço a nada, não estou ligado e nenhuma comissão, estou mais preocupado com a produção de textos orientadores para o processo de ensino e aprendizagem propriamente dito.

 


É o que me preocupa; estou mais preocupado com a possibilidade de existirem apoios para que nós, Universidade, professores, produzamos textos orientadores para os estudantes que aprendem a literatura, para os professore que ensinam a literatura. Isto é que é importante, mas na verdade esta questão da história da literatura angolana começa realmente a ser mal vista quando é o Estado quem promove e organiza depois não dá uma informação clara sobre o que terá acontecido e o público devia ter conhecimento. É como tudo, quer dizer, em todos as áreas não só na cultura: quando determinados organismos fazem projectos, o Estado deve esclarecer, porque nós somos, no fundo, contribuintes, os fundos que o Estado gasta são fundos públicos e todos nós somos descontados do salário no sentido de contribuirmos para excussão das tarefas. E o Estado deve-nos explicações, agora nós temos uma cultura de não exigência no país, as coisas acontecem, são ditas nos discursos, as coisas são prometidas, há promessas por todo lado, usam o nosso dinheiro, depois não se faz nada e nós não pedimos nada. Acho que o que temos que fazer agora é pedir explicações, saber porquê não funcionou, e porque foram usados, de certeza, fundos públicos, e como é que foram usados, isto é fundamental, eu creio que como cidadãos temos que pedir isto.


Como académico, que recado gostaria de deixar para aqueles que pretendem navegar para crítica literária, não os estudantes mas também para os autodidactas que gostariam de aderir à literatura de uma forma geral?

 

Para já, gostaria de salientar que quando se fala em crítica literária, há questões a esclarecer. Crítica literária quer significar reflexões valorativas sobre o produto estético. A crítica tem por finalidade fazer uma mediação entre o leitor e a obra literária. Esta mediação tem vários objectivos. Por exemplo, o de informar sobre determinada obra através de recensões, como bem o escreveu Warner Krauss.

 


 Há outros recursos como o ensaio, que permite reflectir para apontar ao leitor alguma perspectiva de leitura, alguma possibilidade de leitura, de um determinado texto. Esta é também uma tarefa da crítica. A mediação entre o leitor e a obra intervem porque o leitor pode, enquanto receptor, lidar com a obra, ler e ficar na dúvida em relação ao significado que se pode atribuir ao texto. O crítico é aquele que dá algumas sugestões de leitura. Esta é uma visão científica sobre a crítica que podemos encontrar em teóricos como Himbert ou Rosenfeld.

 


No fundo, é esta a tarefa mediadora. Agora, para se fazer a crítica literária é preciso ter em conta aquilo que se chama de memória cultural, que é uma série de indicações acumuladas em torno do fenómeno que está em estudo que é a literatura e outros campos da ciência, como bem teorizaram Wellek e Warren. É importante ter alguns conhecimentos em diferentes áreas, pois a multidisciplinaridade é importante. Por isso é que na escola, por exemplo, a pessoa vai ser médico, mas acaba, na primária e na secundária, por estudar literatura, Matemática, Artes Plásticas e Música. À partida, diremos que isto nada tem a ver com Medicina. Mas na verdade, trata-se de algo que serve depois como bagagem para pessoa exercer em condições a actividade reflexiva. Portanto, a crítica literária é uma mediação entre a obra literária e o leitor. Agora, para exercer a critica literária, não há mistérios, há este conhecimento básico que deve existir do fenómeno da literatura ou da arte que se está a estudar. Há vários tipos de crítica, há aquela crítica universitária suportada por métodos bem sistematizados.

 

Há aquela crítica fora da Universidade, que também tem as suas perspectivas. Em resumo, tudo isto tem muito a ver com a existência de veículos de publicação; se houver espaços para publicar, espaços especializados, melhor será a qualidade da crítica que se vai fazer. Se não houver espaços especializados, haverá pouca credibilidade e pouca divulgação do que se publica em termos de crítica literária. É preciso que se criem espaços especializados para o estudo da arte. Aí, sim, a reflexão vai ser mais responsável e haverá mais seriedade e mais cuidado na abordagem; as pessoas vão procurar informar-se melhor sobre aquilo que fazem, porque não basta conhecer um pouco da literatura para exercer reflexões científicas em torno da literatura, é preciso ter-se conhecimentos sistematizados e não saberes dispersos. Agora, as reflexões têm várias perspectivas, nem todos devem adoptar a mesma perspectiva. As desconstrução que aprendemos do francês Jacques Derrida deu-nos uma arma científica que contraria a intenção estruturalista e criticista que procurava impor regras universais extraídas de textos individuais com vista a construir uma ciência da literatura e, por consequência, impor um procedimento universal à leitura de todos os textos.

 


Como dizia, há várias perspectivas para a abordagem do texto literário. Por exemplo, alguns especialistas acabam por interessar-se pela Sociologia da literatura e acabam por abordar a literatura na perspectiva sociológica; outros acabam por interessar pela perspectiva histórica. Há outros estudiosos que são especialistas e diplomados em literatura, como é o nosso caso aqui no ISCED. Temos um grupo de professores que estão preparados para esta área e que também têm instrumentos apropriados para olhar para literatura em determinadas perspectivas, mas cada um tem uma maneira de olhar para a literatura. Não há aquilo que se pode chamar de terrorismo do gosto. Na apreciação da obra literária não pode haver o terrorismo de gosto, como escrever Lothar. Há várias perspectivas de abordagem do texto literário. Portanto, o que tem de haver é a discussão em torno de cada uma das perspectivas. Olhar para reflexão em torna da literatura e querer que todos sigam uma determinada perspectiva é contrária à liberdade do pensamento.    


* Cláudio Fortuna