Luanda - A consagração do conceito de Poder Executivo (art.º 108º) na nova Lei Constitucional em substituição do conceito de Governo da anterior Lei Constitucional, tem levantado inquietações públicas desnecessárias para o debate doutrinário na medida em que o novo legislador constitucional preferiu não usar o termo Governo por razões meramente estéticas, já que passamos no fundo do conceito de Governo Colegial (então assumido pelo Conselho de Ministros como órgão superior da Administração Pública) para o conceito de Governo Singular ou Unipessoal, se quisermos, em que o órgão superior da Administração Pública já não é o Conselho de Ministros mas o próprio Presidente da República.


Fonte: jukulomesso.blogspot.com

 Do governo colegial ao governo singular

Não se colocam quaisquer questões de inexistência de Governo como se veicula publicamente para confundir as percepções menos atentas. O Governo mantém, mas de forma singular. E não é novidade. A nova Lei Constitucional, neste capítulo vem apenas a tornar claro o poder centralizado na pessoa do Presidente da República que materialmente era sensível ao abrigo da anterior Lei Constitucional.

 


Questão de interesse público e doutrinário está em descobrirmos se faz sentido o Presidente da República ser Chefe do Executivo (art.º 108º) já que em si mesmo incorpora o poder executivo sendo os restantes órgãos meros auxiliares seus. Perfilhamos dos argumentos do eminente cientista político e jurista Nelson Pestana “Bonavena” segundo o qual o executivo é o próprio Presidente da República e como tal não existe qualquer chefia sobre executivo algum no sentido em que pretende o texto constitucional. O executivo é aqui um mero “Staff” ou “Bureau” sem qualquer importância política. Já não existe, a luz desta realidade, o conceito de membro do Governo que não seja atribuível ao próprio Presidente da República. Os Ministros de Estado, Ministros e Secretários de Estado integram a Administração Pública como altos funcionários do Estado sem a cobertura de órgãos políticos como era habitual no âmbito da Lei Constitucional anterior; Não são membros do Executivo ou Governo (sublinhe-se) e tão pouco são partes dele; são meros órgãos auxiliares de uma Administração Pública titulada única e simplesmente pela pessoa do Presidente da República. Argumento, aliás, bem assimilado pela própria Lei Constitucional que reconhece o Conselho de Ministros como um órgão auxiliar dentre vários órgãos que integram o poder executivo (art.º 134º e seguintes). Assim, faz sentido que não se fale em poder executivo mas em Governo Singular, já que este conceito é mais esclarecedor quanto a unipessoalidade do poder executivo assumido pela nova Lei Constitucional.

 

O Conselho de Ministros como órgão auxiliar mantém a competência de formular e conduzir a política geral do país e da Administração Pública (art.º 134º) porém parece concorrer, neste papel, com um outro órgão: A Casa Civil do Presidente da República. Com efeito, ao abrigo do Decreto Legislativo Presidencial n.º1/10 (doravante DLP) que aprova a organização e o funcionamento dos órgãos auxiliares do Presidente da República, a Casa Civil do Presidente da República ocupa o lugar cimeiro no contextos dos órgãos essenciais auxiliares que em geral “têm por finalidade prestar assistência, assessoria e apoio técnico directo e imediato ao Presidente da República…” (art.º7º - DLP). A Casa Civil do Presidente da República dedica-se ao apoio técnico e ao controlo da legalidade dos actos do Presidente da República na condução da actuação do executivo (art.º9º - DPL) que é feito, na prática, antes do concurso do auxílio do Conselho de Ministros visto que é um órgão essencial do Presidente da República. Dá para esquadrinhar aqui, um momento interessante na formulação da política geral do Estado em que a Casa Civil do Presidente da República concebe um quadro operacional através do qual o Presidente da República inicia a sua agenda executiva.

 


Fazendo transparecer que o Conselho de Ministros apenas entra em cena mediante agenda “proposta” pela Casa Civil do Presidente da República. Se assim é, o Conselho de Ministros passa, na prática, a um órgão subalterno da Casa Civil do Presidente da República; ou auxiliar para sermos dramáticos, onde são percebidos os elementos e impulsos externos da governação do Estado. Logo, o Conselho de Ministros é, neste contexto, um mero órgão de auscultação do Presidente da República através do qual a Casa Civil do Presidente da República melhora ou adequa a estratégia de governação por si concebida com as múltiplas preocupações sectoriais aí afuniladas pelos seus integrantes, entre ministros, secretários de Estado e governadores provinciais.

 


A Casa Civil do Presidente da República vai mais longe. O seu apoio técnico directo e imediato estende-se ao relacionamento do Presidente da República com a Assembleia Nacional. Competência, esta que tem justificado a presença do Ministro de Estado seu titular em sessões parlamentares em exercícios de justificação da acção do executivo. Tem natureza ministerial e é dirigida por um Ministro de Estado e Chefe da Casa Civil do Presidente da República. Novidade orgânica incitadora de curiosidade é a acumulação necessária de funções, ou seja, o Chefe da Casa Civil é necessariamente Ministro de Estado. Não se compreende porque é que não se denominou Ministro de Estado Junto da Casa Civil do Presidente da República já que se apresenta completamente inútil a junção de dois cargos para uma única função.

 

 

 A sua estrutura compreende 7 (sete) secretarias, cada uma dirigida por um secretário com a categoria de Secretário de Estado, o que faz transpirar a ideia de um governo dentro de um outro, pelas funções multifacetadas correspondentes as áreas executivas do Estado, como sejam assuntos políticos e constitucionais; judiciais e jurídicos, diplomáticos e de cooperação Internacional; económicos; sociais; locais; comunicação institucional e imprensa (art.º 10º - DLP). Embora coabite com a Casa Militar do Presidente da República e a Secretaria Geral da Presidência da República entre os órgãos essenciais (art.º8º - DLP), a Casa Civil do Presidente da República reduz, na prática, a capacidade interventiva daqueles órgãos, já que compreende igualmente o Gabinete do Presidente da República; o Cerimonial do Presidente da República e os consultores do Presidente da República (art.º 10º). Numa palavra: incorpora o próprio Presidente da República enquanto órgão. A sua hegemonia no quadro dos órgãos essenciais auxiliares vai mesmo ao ponto de ter junto de si o Gabinete da Primeira Dama da República, o que exalta a curiosidade sobre a necessidade estratégica de um órgão desta natureza no contexto de um Governo Singular.

 

De todo o modo, tamanha complexidade orgânica e funcional atribuída a Casa Civil do Presidente da República deixa claramente a ideia de um órgão que se pretende verdadeiramente auxiliar do Presidente da República no sentido em que seja capaz de controlar a acção governativa do Estado em toda a sua plenitude e nalguns casos, senão na maioria deles, substituir-se ao Presidente da República no quadro do exercício material do poder executivo. E justifica-se. Ora, num contexto em que, por força da nova Lei Constitucional, o Presidente da República se propõe a assumir integralmente a responsabilidade dos actos de governação do Estado, já sem Primeiros-Ministros como bodes expiatórios, ao mesmo tempo que, parece, não se propor a apresentar as contas pessoalmente, nomeadamente junto da Assembleia Nacional através de eventuais interpelações dos deputados, o surgimento de uma Casa Civil do Presidente da República poderosa e encabeçada por uma das maiores autoridades técnico-legais de Angola e homem de faro político-administrativo afinado como é o Dr. Carlos Feijó tem completa oportunidade.