Luanda - Vivemos numa época em que é visível, em todos os sectores da vida humana, uma crescente planetarização da cultura ocidental, cuja absorção ocorre, muitas vezes, de forma acrítica e pacífica.


Fonte: JA


O que se designa por globalização, só se efectiva, de forma justa e equilibrada, se valorizarmos as manifestações culturais locais e os feitos das grandes personalidades da política e da cultura dos países em desenvolvimento, ou seja, mais do que aplaudirmos, de forma silenciosa, a globalização, torna-se necessário valorizar e enaltecer a importância histórica das culturas locais.

 

É neste âmbito de entendimento, reconhecimento e valorização da globalidade das culturas, que nos propomos revelar uma faceta, pouco conhecida, do Presidente da República, Eng. José Eduardo dos Santos, enaltecendo o seu perfil cultural e artístico, nas comemorações do seu 68º aniversário.

 

A musicalidade do Presidente da República, enquanto cantor e compositor, integrado, primeiro, nos Kimbambas do Ritmo e, depois, no Conjunto Nzaji, esteve sempre relacionada com os objectivos da luta de libertação nacional, concretizada na guerrilha,  facto que culminou, de forma vitoriosa, na posterior conquista e celebração da independência nacional.

 

A música, na guerrilha, teve uma função litúrgica, de feição mobilizadora, cuja magnitude e efeitos psicológicos, através do programa "Angola Combatente", ajudaram, grandemente, na mobilização do povo angolano, fazendo compreender, junto da população portuguesa e do mundo progressista, as razões objectivas da luta de libertação, desencadeada pelos nacionalistas angolanos.

 

À época, as várias manifestações da cultura angolana, constituíam um pólo identitário que se confundia com os objectivos da luta anti-colonial, complementando o desejo de emancipação política e cultural.

 

A máxima do poeta Agostinho Neto "...Nós somos nós" carrega consigo a ideia de singularidade cultural, avessa aos desígnios da submissão assimilacionista, um património integrado e aberto ao movimento cultural universal.

 

Com o início deste estudo, que pretendemos mais aprofundado, é nossa intenção criar uma imagem positiva do Presidente da República em relação à cultura, divulgar as linhas de força do discurso proferido pelo Presidente da República no III Simpósio Sobre Cultura Nacional, revelar uma faceta, para muitos desconhecida, do Presidente da República na sua relação com as artes e a cultura.

 

Quem conhece, mesmo que de forma superficial, a trajectória política do Presidente da República, Eng. José Eduardo dos Santos, nunca deixará de associá-lo à cultura e, mais propriamente, à música, sobretudo aquela que sustentou o lado romântico da época fervilhante da clandestinidade e da guerrilha, veiculadas nas mensagens mobilizadoras das canções difundidas no programa radiofónico, "Angola Combatente".

 

Era a época do Conjunto Nzagi, uma formação que marca o início da composição da música engajada, com mensagens explícitas aos propósitos da independência nacional. A dimensão cultural do Presidente da República não está emancipada de uma outra arte, a de fazer e de entender, com sobriedade genial, os complexos meandros da pragmática política.


Julgamos que os primeiros passos que enformam a dimensão política do Presidente da República assentam na tomada de consciência da singularidade cultural do seu povo, vilipendiada, subvertida e truncada pela atroz violência colonial portuguesa.


As canções, "Kaputu", "Dr. Neto", um panegírico ao poeta Agostinho Neto, "Deba" e "MPLA in nvuluzi", são temas paradigmáticos da música revolucionária, que a contemporaneidade retoma para reviver a poeticidade e a memória de uma época de esperança, luta e certeza na vitória.

 

Nessa altura, o Presidente da República funda e orienta a estétia do Conjunto Nzagi, uma formação que primeiro se designou os "Derrepente", emanação dos "Kimbambas do Ritmo", formação musical criada em 1959, que, na época, já acusava uma assinalável solidez estrutural e criativa com José Eduardo dos Santos (composição,voz e viola) Brito Sozinho (voz), Maria Mambo Café (voz), Loy (voz e composição), Mário Santiago, Faísca (viola), e Biguá (voz), o conjunto Nzaji veio a tornar-se o paradigma da música de guerrilha, uma formação musical com preocupações, claramente mobilizadoras.

 

As contingências da guerra e do seu esforço para se alcançar a paz  remeteram para o sótão da memória a arte de compor e  cantar as alegrias e tristezas  do seu povo, ficando incubada uma natural propensão de criatividade e de abordagem  das questões de cunho cultural e artístico. Julgamos que o discurso proferido pelo Presidente da República no III Simpósio Sobre Cultura Nacional, que decorreu em Luanda, de 11 a 16 Setembro 2006, é a continuidade de uma reflexão, cujo início se situa numa época em que a luta de guerrilha reclamava, pela sua natureza cultural, a prática do exercício das artes, em particular da música, pelos seus efeitos de mobilização imediata. Notemos as palavras introdutórias do Presidente no referido Simpósio: "Pronunciei-me poucas vezes sobre este tema. A minha principal atenção foi dedicada às inúmeras prioridades que, no plano político, militar, económico e social, todos tivemos de assumir para defender a pátria angolana das agressões externas e para manter a integridade do nosso território, dentro das fronteiras estabelecidas. Ao fazê-lo estávamos afinal a fazer um acto de cultura, pois assim, protegíamos  a matriz material, na qual todas as manifestações culturais e artísticas se podem concretizar e expandir". Interessante a forma como o Presidente da República considera a defesa da pátria, e, consequentemente, a sua "matriz material", como sendo actos superiores de  cultura.

 

O discurso pronunciado pelo Presidente da República na abertura do III Simpósio Sobre Cultura Nacional, para além de constituir um importante documento de trabalho, porque aponta linhas de acção pragmáticas, dá subsídios à constituição de uma teoria geral  da cultura angolana.

 

Endógeno, nos seus propósitos mais profundos, o discurso do Presidente traça os caminhos da prática e da gestão cultural no pós-guerra, valoriza o múltiplo e o controverso, consubstanciado no diálogo entre a tradição, a modernidade e a contemporaneidade, alertando, de forma profética, o início de uma nova era de percepção do assunto cultural: "Estamos hoje em condições de trabalhar com maior dinamismo para o desenvolvimento da cultura nacional", augura o Presidente, afirmando que "resgatar as valiosas tradições é um trabalho que se impõe pois são elas as balizas que definem o carácter identitário do nosso povo e que podem transmitir princípios e valores do nosso passado comum que nos diferencia dos demais povos..."

 

O Presidente da República estrutura um pensamento cultural, aplicável a todas as manifestações de produção humanista e artística, baseado no equilíbrio das heranças das quais somos depositários, que vem dos nossos antepassados, e que nos é transmitida ao longo das várias gerações, e aquela, cada vez mais determinante, que nos chega dos nossos contemporâneos, das nossas vivências actuais e do acesso ao conhecimento científico".
"Mesmo que alguns elementos de integração cultural e social possam ser considerados ainda como sendo frágeis", afirma o Presidente a dado passo do seu discurso, "a tendência inexorável é a sua consolidação", é a perspectiva visionária do Presidente, respeitando as culturas em presença e, mais do que isso, facilitando e legitimação e o exercício de uma concepção inclusiva e integradora da cultura angolana, numa tese que cabe, inteiramente, no âmbito da Sociologia da Cultura.

 

Da valorização à preservação e restauro do património material e imaterial, passando pelas línguas nacionais à filosofia dos costumes, das tradições aos rituais de iniciação, a abrangência do discurso do Presidente da República, recoloca a cultura, plasmada numa inequívoca actualização científica, na agenda da reconstrução e do desenvolvimento: "Há assim que investigar, cientificamente, para conhecer toda a realidade cultural nacional, estudar, sistematizar e divulgar as manifestações culturais que se realizam a todos os níveis e valorizá-las, ressaltando a importância dos elementos que concorrem para a consolidação da identidade nacional e da nação angolana".

 

Num sábio exercício discursivo, de estratégia intertextual, o Presidente da República retoma a questão da globalização e da consequente planetarização da cultura ocidental, no seu discurso nas comemorações do dia 11 de Novembro de 2005, alertando que os "valores da cultura universal e as normas da civilização ocidental, se disseminam sem fronteiras... quem não for capaz de administrar o seu mercado e preservar os valores da sua identidade, transformando-os em contributo ao processo global, ficará sem expressão".

 

É fácil inferir, neste intertexto, a forte dimensão nacionalista do discurso, ou seja, o Presidente da República entende que Angola tem que dar o seu contributo ao processo global de desenvolvimento, preservando os valores da sua identidade, num "espírito de abertura ao mundo... sem complexos".

 


Vamos partir para o "mundo com uma identidade cultural própria, este propósito é válido para todos os domínios da arte e da cultura, enraizada na nossa história e na do nosso continente, mas aberta  a um património de valores que já pertencem a toda humanidade e que nos permite competir, em pé de igualdade, com outros povos do mundo".

 

Finalmente importa realçar que o discurso em análise continua actual, porque estabelece uma interacção entre os quadros tradicionais e modernos da experiência humana, no domínio da cultura, com os processos hodiernos de teorização das artes e das linguagens da cultura, valorizando o património, na sua lata acepção, incluindo a dimensão mitológica do património material e imaterial africano, particularizando, sem preconceitos, o caso angolano.


Mais do que isso, o Presidente delimita nítidas linhas de força que inspiram a acção imediata, o que nos anima a parafrasear uma máxima do Presidente da República, Eng. José Eduardo dos Santos, segundo a qual, é necessário "Criar novos factos culturais" ...


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Tema de uma palestra proferida no dia 28 de Agosto de 2010, no ciclo de palestras e debates da IV edição da Feira Internacional da Música e da Leitura, um evento integrado no Programa Oficial das Comemorações do 68º aniversário do Presidente da República.