Luanda - ANTÓNIO QUINO nasceu em Luanda, no bairro da Calemba, aos 3 de Agosto de 1971. É mestre em ensino de literaturas em língua portuguesa e licenciado em ciências da educação pela Universidade Agostinho Neto. Jornalista de profissão, é docente desde 1992, sendo actualmente assistente estagiário, leccionando a cadeira de Técnicas de Expressão I e II no ISCED-Luanda.


Fonte: SA


É membro do colégio de estudos literários do Isced-Luanda e do secretariado da Kulonga, revista de ciências da educação e estudos multidisciplinares do ISCED-Luanda, onde publicou textos nos Cadernos de Estudos Literários e Linguísticos e no Como se lê um texto literário (org. Manuel Mwanza).

 

Tem ensaios publicados em Angola (Jornal de Angola, Semanário Angolense, O País, Folha 8) e fora de Angola (Courrier Internacional), assim como um (“Ver Évora com olhos de Margarida”) in “Partíamos como se não fossemos”, obra em homenagem a Horácio Peixoto de Araújo, editada em 2009 sob coordenação de Inês Espada Vieira.

 

Tem trabalhos publicados em revistas electrónicas, como “O conformismo na poética colonial” - http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=3926, “Xiboletismo na história recente de Angola: Um fenómeno linguístico na sexta-feira sangrenta” –  http://triplov.com/letras/Antonio-Quino/2008/xiboletismo.htm, “O prisma multicultural da arte” – http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=3864, e “A importância das Línguas Africanas de Angola no Processo de Ensino/Aprendizagem da Língua Portuguesa” – pmate2.ua.pt/conferencias/bienal2009/images/.../quinobienal.pdf.
Tem dedicado especial atenção ao estudo da literatura comparada, como demonstra o tema “A visão poética da esperança em Agostinho Neto e em

António Nobre”, trabalho apresentado, em 2008, na Universidade Agostinho Neto para a obtenção do grau de Mestre em Ensino de Literaturas em Língua Portuguesa.

 

SA- Enquanto professor, como é que avalia as literaturas africanas neste momento?


AQ- No pragmatismo de docente na área do ensino de literaturas, diria que vai muito bem, obrigado. Mas deixe que dê a minha opinião enquanto leitor: A literatura é feita por homens e as dinâmicas impostas pelos homens, como os contextos sócio-políticos e mesmo as convulsões sócias, podem projectá-la ou não para terraços ou caves. Aliás, há um conjunto de elementos que no meu entender podem ajudar a olhar melhor o estado das literaturas africanas. Por exemplo, enquanto instituição, a literatura é um corpo vivo entendido como um sistema social. Este corpo vai se formatando ou desformatando em função de processos histórico, político e filosófico. Portanto, se pretendermos falar das literaturas africanas não nos podemos limitar ao texto. O mundo de leitores é imprescindível numa análise como essa. Se o texto fosse o fim último, ficaria feliz, pois África tem pelo menos cinco escritores galardoados com o Nobel da literatura. É um sinal de reconhecimento.
Mas ficar por aí cria uma falsa ilusão, porque a visão aqui funciona de fora para África.

 

É uma leitura externa das nossas literaturas. Voltando à minha condição de docente, estou mais interessado em olhar para o universo de leitores africanos e isso me leva necessariamente à, por exemplo, intelectualidade africana. Jacques Derrida dizia que a literatura é um modelo de uma instituição democrática, pois abarca em si um conjunto diferenciado de leitores, com ideias, visões, experiências e ideologias dípares. Mas até essa instituição tem as suas balizas para funcionar: é preciso que o potencial leitor tenha as competências de descodificar os signos gráficos e de ultrapassar a barreira do analfabetismo funcional. Então, e regressando à questão sobre o estado das literaturas africanas, me reporto à necessidade de ampliarmos o nosso mundo de leitores, ansiando que eles tenham consciência crítica em relação à nossa produção literária e, a partir daí, estabelecermos paralelismos entre o estético e o cultural.


Enquanto tivermos um mundo de leitores exíguo, a nossa literatura continuará dependente de leituras críticas vindas do exterior e, evidentemente, influenciando as instituições literárias em África.  

 

SA- Qual o lugar da literatura angolana no âmbito das literaturas produzidas nos países africanos onde se fala a língua portuguesa?

 

AQ- Angola é referência na lusofonia. Não que a sua produção literária seja melhor, mais ou menos abundante, mas porque o nosso país em si oferece uma série de estímulos ao mundo lusófono levando as pessoas a olharem para a literatura como um contraponto à informação oficial ou oficiosa, tal como acontece noutros países. Além disso, se o texto e o contexto literários circundam o consciente e o subconsciente do homem, por essa via eles condensam a tal consciência colectiva da comunidade reflectida no estar e no ser. Portanto, a simbologia da obra literária angolana representa um cartão postal duma Angola que pode ser real, irreal ou ideal. É este o lugar que ela ocupa no âmbito das literaturas lusófonas. Dito doutra forma, não há uma pirâmide a nível das literaturas cujos degraus são ocupados hierarquicamente. Há sim aspectos que as diferenciam ou as aproximam.


SA- Gostaríamos que estabelecesse uma relação entre as literaturas africanas produzidas em língua portuguesa e as outras veiculadas em francês e inglês.

 

AQ- Para lhe ser sincero, como estudioso, isso foge um pouco o meu domínio. Mas como leitor posso sim dizer que a diferença marcante está na literatura enquanto instituição, que vai abarcar produtoras, editoras, mercados e leitores. Tudo isso, hoje, interfere na massificação do produto literário, independentemente da sua qualidade. Numa era em que a língua inglesa governa, a literatura produzida em inglês tem uma maior projecção. Repare que não me refiro à qualidade.

 

SA- Pode-se falar de angolanidade na literatura de Angola?

 

AQ- Antes, gostaria de perguntar o que é isso de angolanidade. Sinceramente, não sei como responder à pergunta sem saber o que pretende dizer com o termo angolanidade na literatura. Mas, deixa-me arriscar. Talvez se pretenda aproximar a ideia de angolanidade ao conceito de consciência colectiva de Durkheim, como uma soma de crenças e sentimentos comuns à média dos membros duma dada comunidade, formando um sistema autónomo, isto é, uma realidade distinta que persiste no tempo e une as gerações. Porém, julgo que isso nos remete à diferença entre o chamado produto de Angola e o produto angolano, adjectivações utilizadas para identificar o resultado daquilo que se julga ter raiz cultural nacional e a arte de cunho supostamente aculturado. Mas, o que é a pureza cultural? Isso existe? Por vezes esquecemos que a arte não se compadece com fronteiras artificiais, tanto na sua estrutura interna como na externa, muito menos com padrões definidores do nosso e do do outro. A beleza da arte também está na sua universalidade. Portanto, não é a nação que delimita a poesia. É bem verdade que há no ser poético influências, experiências e vivências atmosféricas, contextualizantes e contextualizadas na ideia de nação na obra poética. Mas isso não é estanque nem dogmático, porque os signos presentes nos versos podem ser universais, mesmo representando uma ideia local.

 

Dito doutro modo, a teoria literária comparatista usa muitas vezes o conceito de invariantes para fazer uma descrição redutora ou extensiva do facto literário ou da relação dicotómica de Saussure (significado/significante), em que vamos encontrar aqueles elementos gráficos ou fónicos que possuem matriz nacional – exemplo dos termos Makyezu, Monangambé, kalunga, kinaxixi, etc. – ganham a dimensão de invariantes locais, enquanto que aqueles cujo mundo de leitores é mais extensivo para lá das fronteiras simbólicas de um povo ou nação, mesmo sendo marcadamente nacionais – como os títulos “Havemos de voltar”, “Sagrada Esperança” e “Návio negreiro” – ganham a dimensão de invariantes globais.


Ora, angolanidade não pode ser redutora ao ponto de encarar o invariante local como marca da nossa literatura, nem pensarmos que os invariantes globais simbolizam a literatura extra-angolanidade. Repito que a critatividade e a própria estética não estabelecem barreiras artificiais ou físicas no fazer literário. Não há uma ditadura ou um nazismo para balizar a literatura, nem mesmo na chamada literatura engajada ou na de combate. Se há limite ou barreira, julgo que isso só o artista produz e o crítico e leitores descodificam. Mas lembro que estou aqui a especular, porque continuo sem saber o que se pretende com a expressão angolanidade na literatura.


SA- Em que medida se pode falar dessa matriz e o que é isto de angolanidade?


AQ- Bem, se não consegui responder com a exposição anterior, penso que continuo fora do âmbito daquilo que sustenta o conceito. Mas prometo investigar mais sobre o assunto.

 

SA- Quais são os escritores angolanos com projecção internacional e porquê?


AQ- O que acontece entre nós, angolanos, e também um pouco pelo mundo, é que há escritores que, pela sua projecção sociopolítica, arrastam consigo o seu-eu artístico tornando-o um produto de consumo obrigatório em determinados círculos ou épocas. Foi assim com Agostinho Neto, por exemplo. Por outro lado, há os que respondem aos anseios dos mercados, tendo ao seu lado uma máquina, digo editora, economicamente estável e uma cadeia de marketing forte. É assim com Pepetela, Agualusa, Ondjaki, etc. Finalmente, há casos isolados de autores que fruto da dinâmica e centro de produção e de divulgação da sua obra literária encontram um mercado mais restrito, como é o de Angola, mas que a excelência estética não perdoa aos que não lhes reconhecem qualidades. São casos de um Lopito Feijó, Mendonça, Uanhenga Xitu, Manuel Rui Monteiro, etc. Portanto, é importante reter aqui que a projecção internacional não está implicitamente ligada à qualidade estético-literária. Ou seja, nem sempre o mais lido e traduzido é o que mais arte pôs no seu fazer literário. O produto literário, para ser lido e valorizado, precisa muito mais do que mera vontade do autor. Se alguns conquistaram meritoriamente mercado fora de Angola, aqui entre nós a classe de leitores se resume a grupinhos sem pontos centrífugos, contrastivamente às bonitas estatísticas de cidadãos alfabetizados ou com canudos universitários.

 

SA- Alguns estudiosos das literaturas africanas dizem que a literatura angolana ocupa um espaço privilegiado no conjunto das outras literaturas dos PALOP´s, concorda? Em seu entender, como é que é possível ocupar esse lugar, quando a critica literária angolana e o mercado, que servem de barómetro, não são regulares nem têm peso em Angola?


AQ- É o que tenho dito até aqui, numa sociedade grafocêntrica como a que nos encontramos, alfabetizar não é suficiente, sob o risco de realizarmos constantemente partos de nados mortos. Até pode ser que sejamos mesmo isso, ocupantes do espaço privilegiado, mas a construção de consciências críticas, a elite intelectual, o combate ao analfabetismo funcional e a valorização da nossa literatura passa pela consciencialização duma sociedade e de um mercado de leitores realisticamente mais amplo. Não de forma fictícia, como a feita a partir da avaliação do bom número de indivíduos que compra livros num lançamento de alguma obra literária. De resto, pensar avulsamente que somos potência no conjunto de literaturas dos Palop’s é uma mera arrogância sem vitaminas e que não nos faz engordar.


Para quê pensar em ser potência se aqui dentro não criamos ainda o mundo de leitores que ajuda a valorizar e fazer crescer o fazer literário? Há inertes instituições públicas e privadas que, fazendo pouco, dariam muito para isso acontecer. Afinal, cultura não é só espectáculo musical, patrocinar CD’s de música, concurso de miss, passagens de modelo e talk shows. Veja, pela capital do País, quantas instituições conseguem criar bibliotecas, apoiar a produção e divulgação de literatura angolana?

 

SA- Que papel podem desempenhar as Faculdades de Letras para o resgate da critica literária em Angola?


AQ- Não vamos ter ilusões, que o saber universitário é reflexo duma série de factores, entre os quais as políticas do livro. Portanto, não havendo potenciais leitores, é uma ilusão pensar que a Universidade, tal como a temos hoje, poderá, sozinha, pegar o leme e levar o barco a um bom porto. É ilusão, até porque você não estimula este tipo de saber e olha para o sistema de ensino como um custo e não como um investimento. Não quero desresponsabilizar a Universidade do seu papel no processo de desenvolvimento humano, como agente de reforma social ou, duma maneira geral, na construção duma prática transformadora. Mas a própria Universidade ainda procura firmar-se numa sociedade que não valoriza o saber. Olha, por exemplo, para as condições de trabalho e para o salário dos professores universitários! Repito: é preciso olhar para a pesquisa e investigação como um investimento e, desta forma, valorizar a erudição. São alguns degraus duma escada que nos levará ao resgate da crítica a nível do ensino universitário. Fora disso, não estaremos muito longe de velhas utopias.


SA-Foi criada em 2005 uma comissão multi-sectorial para trabalhar na feitura da história da literatura angolana, que teria a missão de apresentar um draft, em 2009, que infelizmente não conseguiu cumprir com este desiderato. Os proponentes e os membros desta comissão têm uma certa dificuldade em explicar porque não atingiram o objectivo. Em seu entender, como um trabalho desta envergadura é possível?


AQ- Sei que no projecto estão, ou estavam, pessoas idóneas com provas dadas a nível da condução de projectos, fundamentalmente ligados à literatura. Não creio que as coisas desandaram em termos de datas por sua livre vontade. Bem, estou a especular, porque de concreto não estou e nem estive lá e é deselegante criticar um trabalho intelectual alheio sem conhecimento de pormenores do projecto e sua consequente implementação ou não. Mas, recuperando o que disse atrás, a envergadura de um projecto destes não pode ser visto na perspectiva de um talk show ou de um concurso de misses. É um investimento sério, intelectual e de muita responsabilidade. Pensar que de da noite para o dia se vai construir o edifício da história da literatura angolana é pensar de zero a dez, porque quando se nos apresentar o doze a frente estaremos incapazes de dar um único passo.

 

SA- Alguns estudiosos manifestam alguma dificuldade em perceber o que quer dizer com a geração das incertezas, que explicação é que tem para estas pessoas?


AQ- Quem formulou o conceito certamente tem argumentos para o justificar. Eu não. O que mais quero é encontrar certezas na geração da qual faço parte e me revejo.

 

SA- Para terminar, gostaríamos de ouvir que conselho daria aos estudantes angolanos que pretendem aderir à crítica e aos estudos das literaturas africanas?

AQ- Há um vazio enorme, uma espécie de cratera, parida por jovens, e que se vem aprofundando no andar dos anos. Todos queremos escrever, mas poucos querem ler. Não tendo sequer aprendido a andar, querem já entrar em maratonas; mesmo com coxeando, queremos ser mestres num mundo da literatura sem sequer pegar em muletas que são as referências. Ao praticar as várias categorias de leitura, o indivíduo passa pelo processo de aprendizagem por observação e, evidentemente, vai acumulando saberes endógenos necessários a uma posterior produção escrita. E como um texto nasce sempre de um outro texto, um outro processo de aprendizagem, o de imitação, vai permitir ao leitor ir aperfeiçoando a sua produção escrita. Este processo mecânico é o recomendável. É o que eu recomendo: muita leitura. No entanto, tenho observado, com alguma tristeza, a forma como se maltrata a língua na escrita. A complexidade do processo de arrumação dos signos gráficos em consonância com a convenção ou normas do uso correcto da língua exige de nós práticas constantes de leitura de bons autores. Mas poucos querem ler. O próprio esquema de ensino, os conteúdos programáticos e os planos de aula estão moldados para que a leitura, a produção escrita e o processo interpretativo sejam menosprezados. Quem quer ser crítico tem que vigiar esta situação para que no seu auto-didactismo faça dessas fraquezas um pilar de sustentação do seu saber endógeno. Portanto, é preciso ler-se muito para ultrapassar as barreiras do analfabetismo funcional. Se se percebesse a imensidão da riqueza do mundo que há por trás de cada leitura, muitos perceberiam que a democracia de Derrida supera a das teorias das ciências políticas que se revê, entre outros aspectos, em eleições livres.

 
Por Cláudio Fortuna