Luanda - Há poucos anos trás, numa comunidade algures na província da Huila, um idoso veio até junto de mim e de algumas pessoas para perguntar (por meio de um tradutor com domínio duvidoso da língua portuguesa) se podia ter esperança de ter a visita do camarada Agostinho Neto (fazia referência ao presidente fundador da República de Angola) na sua aldeia já que esperava por ele há anos (ouvira falar dele de algumas pessoas que passavam pela aldeia e tinha a convicção que era o maior dos sobas e que governava o resto do território que se estendia para além da sua aldeia e dos locais de pasto do seu gado.


Fonte: Jukulomesso

 

Reconhecia-lhe grande fama em expulsar estrangeiros que ocupam terras alheias). Revelou-me uma preocupação pontual: Quero que ele venha para nos ajudar a parar os avanços dos “estrangeiros” e dos meliantes que assaltam e roubam o nosso gado! – Segundo ele, os estrangeiros invadiam as terras dos seus ancestrais que ele e a sua comunidade exploravam para sua sobrevivência. O caricato está em que o sinal da presença dos estrangeiros que mostrou indicando o dedo para além do horizonte era a sede comunal, uma escola de ensino de base e outros elementos menores que representavam a presença da administração local do Estado, embora distante (numa outra comunidade). Alegou mesmo que os outros (a comunidade abrangida pela administração local do Estado) já tinham sido dominados e que, em consequência, os seus membros passavam fome. Como alternativa vinham roubar o gado da sua comunidade.

 


 Da bandeira do MPLA que flutuava numa árvore ao lado testemunhou dizendo que foi colocada por indivíduos que apareceram na sua aldeia para lhes garantir apoio no combate contra o roubo de gado de que eram sujeitos mas que nunca mais voltaram a parecer. Entendeu tais indivíduos também como estrangeiros interessados em cooperar para a defesa dos seus interesses contra a invasão de outros estrangeiros que integram a administração local do Estado. Da mobilização a que foram sujeitos para colocar os filhos na escola o idoso tinha um claro entendimento: Eles querem nos roubar os filhos para deixarem de pastar o nosso gado e servirem os seus interesses, por isso querem que passem a entrar naquela casa para aprenderem os hábitos deles! – O velho falava furioso, o que se notava pelos nervos tensos e boca espumando. Contive o riso, em várias ocasiões, num esforço espectacular, para evitar ser confundido com um “estrangeiro” indesejado.

 

Este quadro revela não só o choque (tensão axiológica) entre o Direito positivo (Lei) e o, assim dito, Direito costumeiro, como também revela a crise do Estado no que tange a sua capacidade de compreender todo o território nacional. Nota-se a existência de “ilhas” sociais ou comunitárias em que se incubam bolsas de resistência contra a civilização ou mesmo contra a abrangência territorial do Estado e da sua administração. Muito, por causa da incapacidade da extensão administrativa do Estado e, sobretudo, da crise política que revela a intolerância política bem sensível no resto do território angolano. Tais cidadãos, já não levantam problemas de enquadramento jurídico territorial, visto que a administração local do Estado (embora ligeiramente distante) compreende aquela aldeia, mesmo que os seus habitantes, de tal, não tenham conhecimento. Não deixa, porém, de arrepiar os padrões civilizacionais aceitos. Já que a marginalização civilizacional é bem patente nos pronunciamentos do velho que me abordou.

 


Assim fica bem claro que, o Estado, afinal, com todo o seu aparato administrativo, não serve os anseios das populações como julga e justifica publicamente. O velho mostrou-me que os interesses perseguidos pela administração pública não coincidem com os interesses das populações locais. Na verdade, esta situação não é apenas visível ou sensível em comunidades de localização remotas. Mas também nas grandes cidades como Luanda. A questão das passagens aéreas para peões instaladas em alguns pontos da cidade é uma prova evidente disto. Não só não foram previstas passagens para indivíduos com deficiência física como não foram previstas passagens para idosos. Resultado: as pontes aéreas são esteticamente interessantes, mas não servem a maioria das populações que as frequentam todos os dias.

 


Está clara a violação do princípio da colaboração entre agentes e órgãos da administração pública e particulares (pessoas, empresas e instituições privadas) destinatários dos serviços públicos, que teria suprido, através de consultas públicas as comunidades locais, o problema da viabilidade das passagens aéreas e demais infra-estruturas comunitárias.

 


Voltando a questão do velho e da sua comunidade, a realidade sociológica e mesmo jurídica (decantada dos argumentos historicamente ultrapassados), aparentemente caricata, leva-nos a uma profunda reflexão. Interessa, por exemplo, averiguar se o Direito ocidental (tipo kelseniano) que vigora formalmente entre nós a partir de matrizes europeias (por via Portugal), é suficientemente capaz de permitir a emancipação da cultura nacional (na vertente de hábitos e costumes dos povos). Ou se, as opções jurídicas fundamentais reflectem a idiossincrasia dos povos. O problema é suficientemente sério para ser ignorado, já que a sensatez das leis e o sentido de justiça que comportam dependem da sua solução.

 

Por exemplo, debate-se hoje o problema de violência doméstica. Pretende-se que a mesma contemple a repressão de condutas, tidas como violentas para a cultura ocidental, quando, entre os angolanos muitas destas condutas são perfeitamente toleradas até pelas próprias “vítimas”. O meu primo, senhor de uma grande família, quando foi questionado sobre a importância dos “correctivos” sobre as crianças, respondeu: “A surra não educa, mas enquadra!” Tal é a forma como tem administrado as relações e interesses da família, certo dos efeitos positivos daí resultantes. E de facto, se apreciarmos a sua filosofia sem pudores, verificaremos que a educação familiar nos lares pobres é violenta devido a forte propensão dos seus membros em resistir aos comandos superiores dos pais, uma vez que grande parte dos mesmos se sustenta por conta própria através de pequenos “biscates”, para além de fazer da violência um mecanismo de sobrevivência nas relações sociais, tornando-se num “modus essendis et vivendis”. Podemos expor vários motivos como ignorância associada em geral ao analfabetismo e a pobreza, muitas vezes extrema. Mas é a realidade milenar dos africanos completamente contrária a realidade ocidental (europeia, por exemplo).

 

É claro que não pretendemos encorajar a persistência de condutas anti-sociais. Mas a análise sociológica das condutas e a “ratio legis” que lhes subjazem. Portanto, o problema que levanta a crise axiológica do Direito angolano é um problema que cria fissuras epistemológicas graves na percepção dos indivíduos ao ponto de se reflectir na dramática crise de valores que arrasta a actual geração de angolanos ao subdesenvolvimento social e económico, apesar das grandes quantidades de riquezas naturais existentes.