Angola dificilmente avançará como todos nós desejamos, enquanto a minha geração não se esforçar por acabar de vez com o fanatismo político e com as velhas e trágicas guerrilhas partidárias. Os nossos mais velhos perderam muito tempo em discutir partidos. E por causa deste fútil debate, arruinaram o País e desgraçaram os angolanos. Estas violentas e dolorosas discussões deviam ter acabado em Abril de 2002. Por isso, custa-me muito ver que o pessoal da minha geração continua a alimentar a perigosa fantasia de desejar que todos os angolanos admirem apenas os seus ídolos políticos, militem apenas nos partidos que amam e comunguem apenas das suas formas de pensar o País e de viver a angolanidade.

Para o bem de Angola e das gerações vindouras, a minha geração tem de se consciencializar de uma vez por todas que os partidos políticos não são os assuntos mais importantes de Angola. Eles não são e nunca foram a razão principal da Independência e do surgimento da República de Angola.

Qual é, então, a razão de ser do Estado angolano? Qual é o verdadeiro sentido da Independência? Porquê que os angolanos decidiram contestar e combater o colonialismo português? Porquê é que muitos angolanos abdicaram da vida estável que usufruíam na Angola colonial e decidiram aderir à luta anti-colonial? Porque é que muitas famílias entregaram aos movimentos de libertação os seus melhores filhos? Porque é que muitos jovens brilhantes e com um futuro promissor preferiram entregar-se de corpo e alma aos ideais da independência?

Só existe uma resposta para estas perguntas: Por causa da dignidade da pessoa humana. A DIGNIDADE DO ANGOLANO é, por isso e de longe, o assunto mais importante de Angola. Ela está acima de tudo e de todos.

No dia 17 de Janeiro de 1975, 2 dias depois da assinatura do Acordo de Alvor, Agostinho Neto proferiu as seguintes palavras que resumem o grande objectivo da independência: «O que precisamos de fazer é que o homem angolano seja de facto um homem e não um sub-homem, que seja um homem que ande de cabeça levantada e não de cabeça baixa».

Portanto, a luta contra o colonialismo português e a proclamação independência aconteceram por uma única razão: A promoção e defesa da dignidade do angolano. O Estado angolano, os partidos políticos e outras instituições existem apenas para cumprir um objectivo: fazer com que o angolano deixe de ser uma pessoa explorada, oprimida, desvalorizada e condenada a sobreviver na indigência e passe a ser uma pessoa livre, valorizada, respeitada, educada, instruída e capaz de viver uma vida longa e saudável.

Acontece que os indivíduos e os grupos (raciais, étnicos, políticos, económicos, religiosos, etc.) que compõem uma sociedade são incapazes de alcançarem sozinhos a defesa da sua dignidade e a promoção dos seus direitos. Por isso, precisam de uma entidade maior, mais forte e mais organizada para proteger e zelar pelos seus interesses. É por esta razão que as sociedades modernas confiaram esta importante tarefa ao Estado. Assim, todos nós, (nobres ou humildes; matumbos ou civilizados; genuínos ou crioulos; brancos, negros ou mulatos; do Norte ou do Sul; da UNITA ou do MPLA; doutor ou analfabeto; católico ou protestante), precisamos do Estado para sairmos da miséria e termos boa vida, para vivermos neste mundo o mais tempo possível, para aumentarmos os nossos conhecimentos e para garantirmos a nossa segurança e a protecção dos nossos bens.

O ESTADO é, por isso, o segundo assunto mais importante de Angola. Porquê? Porque ele é a super estrutura responsável pela promoção da dignidade da pessoa humana. Aliás, o artigo 2º da nossa Constituição diz que o Estado angolano existe para promover a dignidade da pessoa humana e respeitar os direitos fundamentais dos angolanos.

Mas a promoção da nossa dignidade não pode ser confiada a um estado qualquer. As dolorosas lições da história provaram à humanidade que a dignidade da pessoa humana não é possível com um Estado déspota, autoritário ou totalitário. A nossa sagrada dignidade só pode ser promovida e respeitada por um Estado democrático de direito.

O respeito pela dignidade da pessoa humana impõe ao Estado democrático de direito 2 tipos de atitudes: a primeira é uma atitude passiva. Isto é, o Estado é obrigado a não tomar atitudes que violem os direitos fundamentais dos cidadãos e ofendam os valores que dignificam as pessoas. A segunda atitude é uma atitude activa. Isto é, o Estado é obrigado a canalizar, de forma eficiente, laboriosa e disciplinada, todos os recursos, todos os investimentos e todas as potencialidades do País na criação de condições de vida digna a todos os seus cidadãos. Assim, constitui tarefa fundamental do Estado angolano a criação de condições que contribuam para que os angolanos possam ter boa vida (Economia e Finanças), viver mais tempo (Saúde e Nutrição), aumentar os seus conhecimentos (Educação e Cultura), participar activamente na vida da sua comunidade (Democracia) e usufruir da segurança das suas pessoas e dos seus bens (Paz, Ordem e Justiça).

Mas o Estado não é um edifício luxuoso e monumental que podemos encontrar e admirar na baixa de Luanda. O Estado também não é um desses super-homens que podemos tocar e venerar. O Estado é uma entidade abstracta que só ganha vida e forma através de actos e comportamentos de pessoas concretas. O Estado democrático de direito é um conceito abstracto que só é realizável por pessoas que amam a Democracia e respeitam a dignidade humana. Portanto, são as pessoas concretas que fazem o Estado. As boas pessoas fazem um grande Estado e as pessoas más fazem um mau Estado.

Mas esta nobre e honrosa missão de dar a cara pelo Estado na sempre difícil tarefa de promover a dignidade da pessoa humana e respeitar os direitos fundamentais dos angolanos não pode caber a qualquer um de nós. É uma tarefa reservada aos mais aptos, mais corajosos e mais talentosos. Só que há milhões de angolanos com vontade e capacidade de representar o Estado. E no meio de tanta gente, torna-se complicado procurar, encontrar e eleger os melhores. É por isso que as sociedades modernas precisam dos partidos políticos. Por exemplo, os americanos precisaram da ajuda do Partido Democrata para descobrirem, admirarem e escolherem Barack Obama.

OS PARTIDOS POLÍTICOS constituem, por isso, o terceiro assunto mais importante de Angola. Porquê? Porque são eles que vão tornar possível a promoção da dignidade do angolano. Como? Através do controlo do Estado. É, assim, função dos Partidos descobrir, atrair, seleccionar e apresentar aos cidadãos e aos seus adeptos e militantes as pessoas mais capazes e mais bem preparadas para representarem o Estado. E só através dos Partidos é que os mais aptos e os mais capazes conseguem ter um acesso legitimado, disciplinado e organizado aos cargos públicos e aos órgãos do Estado.

Pretendemos dizer, com tudo isso, que são os dirigentes políticos que dão vida ao Estado. São eles que têm a nobre e honrosa missão de dar a cara pelo Estado na defesa e promoção da dignidade dos angolanos. É por tudo isso que só podem merecer a nossa confiança política, o nosso respeito e a nossa profunda admiração os partidos e os dirigentes que usarem o poder político e o controlo do Estado para valorizarem e dignificarem o angolano, para defenderem os interesses da comunidade que governam e para canalizarem todos os recursos e todas as potencialidades do País na criação de condições que contribuam para o bem-estar físico e espiritual dos angolanos.

Portanto, existe uma hierarquia de assuntos que devem reinar entre nós: Em 1º lugar, acima de tudo e de todos, está a DIGNIDADE DO ANGOLANO. Em 2º lugar está o ESTADO e em 3º e último lugar estão os PARTIDOS POLÍTICOS.

E a minha geração, diante das inevitáveis e sempre acesas discussões partidárias, precisa de colocar sempre as seguintes questões: Porquê é que a independência não tem sido aquilo que todos nós esperávamos? Porquê é que tivemos um dos mais longos e mortíferos conflitos armados? Porquê é que os angolanos estagnaram como seres humanos e continuam a sobreviver na indigência?

Porque houve sempre uma permanente e sistemática inversão da hierarquia dos assuntos mais importantes da nossa existência como País e como Nação. Assim, as questões da DIGNIDADE DO ANGOLANO e do ESTADO foram menosprezadas e deixaram de ter valor. E há 33 anos que as discussões sobre os PARTIDOS dominam e condicionam a nossa breve passagem por este mundo.

MPLA e UNITA mantiveram uma longa, acesa e virulenta discussão em torno da questão de saber quem é o mais importante e o mais capaz para governar Angola independente. Os do MPLA pretenderam deter o poder político e dominar a sociedade angolana por se acharem os mais «civilizados», o mais «capazes» e os mais «evoluídos» dos angolanos. Os da UNITA pretenderam deter o poder político e dominar a sociedade angolana por se acharem os mais «genuínos» dos angolanos, as verdadeiras vítimas do colonialismo português e «legítimos» representantes da maioria.

E durante 33 anos o nosso promissor Pais ficou dependente desta trágica discussão e todos nós acabamos por envolver-nos neste inglório debate. Assim, a filiação política, a crença partidária e os laços ideológicos passaram a definir o angolano e a influenciar a convivência social. Por causa disso, todos aqueles que não eram do nosso partido de eleição perdiam a sagrada condição de seres humanos, de compatriotas, conterrâneos, familiares, amigos ou vizinhos e ganhavam uma vil e desprezível identidade, passando a serem pessoas a desprezar e a abater.

A longa e virulenta discussão entre os fervorosos partidários do MPLA e da UNITA fez com que até hoje não tenhamos sido capazes de construir um verdadeiro ESTADO democrático de direito capaz de unir, conciliar, valorizar e dignificar os angolanos.

E como nunca tivemos um verdadeiro Estado, a promoção da DIGNIDADE DO ANGOLANO nunca existiu. Por isso, o angolano continua a ser uma pessoa explorada, oprimida, desvalorizada e condenada a sobreviver na indigência e está muito longe de ser uma pessoa livre, valorizada, respeitada, educada, instruída e capaz de viver uma vida longa e saudável.

Por causa de tudo isso, a minha geração não pode ceder à tentação de relaxar e cruzar os braços nesta fase que se diz de paz definitiva, de progresso e de democratização. Temos uma importantíssima missão que pode influenciar o novo rumo de Angola e beneficiar as gerações vindouras. Qual é a missão? Acabar de vez com as velhas guerrilhas partidárias e procurar recolocar a hierarquia natural dos assuntos mais importantes de Angola: 1º A DIGNIDADE DO ANGOLANO. 2º O ESTADO. 3º o mpla e a unita.

*José Maria Huambo
Fonte: Semanário Folha8