Luanda - Osvaldo Silva é estudante da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), Brasil, onde finaliza o curso de mestrado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa através do Programa de Estudante-Convênio de Pós-Graduação (PEC-PG) e com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), é o nosso convidado para apresentar à sua avaliação em torno das formas de ensino das nossas literaturas no Brasil, da questão da crítica literária, do papel as Universidade em Angola deviam desempenhar.          

Cláudio Fortuna
Fonte: SA

Como estudante de literatura no Brasil, podia falar-nos um pouco sobre o ensino das literaturas africanas de língua portuguesa no Brasil, particularmente na USP? 
Como sabe, o estudo das literaturas africanas de língua portuguesa no Brasil data de há mais de três décadas. No âmbito daquilo a que se designa por estudos africanos nas universidades brasileiras, a literatura sempre ocupou um lugar de destaque. Este destaque representa em grande medida o resultado de uma iniciativa institucional que teve os seus primeiros momentos na USP. Neste sentido, a USP assumiu um papel de vanguarda... Estudiosos como Maria Aparecida Santilli e Fernando Mourão são referências obrigatórias. Este dado é decisivo, pois aponta para o início da formação daquela a que podemos considerar como parte da primeira geração de críticos e professores das nossas literaturas no Brasil, dentre os quais posso destacar Benjamin Abdala, Rita Chaves e a minha orientadora, professora doutora Tania Macêdo. É claro que, dos anos 70 e 80 pra cá, muita coisa mudou no que diz respeito à pesquisa e ao ensino. Acredito que hoje o contexto seja um tanto ou quanto diferente... Se antes a pesquisa estava restrita a um pequeno número de especialistas e o interesse consistia quase que exclusivamente em registar e analisar os marcos da formação e consolidação dos nossos sistemas literários, muito ligado ao surgimento dos nossos países como nações independentes, hoje se somam vários outros factores que contribuem para a presença das nossas literaturas no Brasil. Um deles, provavelmente o de maior relevância, é a existência da lei 10.639 (hoje 11.645) que veio tornar obrigatório o ensino da História, da Geografia e da Literatura de origem africana no Brasil. Trata-se de uma lei que passou a vigorar ainda no primeiro mandato do “Governo Lula” e que visa consciencializar a sociedade brasileira das suas origens africanas, combatendo assim a invisibilidade do negro e a negatividade de certos estereótipos que foram criados em relação às populações afrodescendentes. Portanto esta lei passou a incentivar o ensino das literaturas africanas de língua portuguesa no Brasil, desde o ensino básico até ao universitário. De modo que a iniciativa editorial cresceu bastante, visto que passou a ser necessário atender a uma demanda por material didáctico e sobretudo por textos literários. Hoje, com maior presença do que alguns anos atrás, os escritores africanos de língua portuguesa figuram em antologias e livros didácticos destinados à educação básica no Brasil. Por outro lado, a crescente edição das obras destes escritores vem formando já um público leitor cujo interesse pelas nossas literaturas passa por diversos temas, desde aqueles mais sérios e acalentados pela academia, como a representação da crise das utopias libertárias em África, até àqueles mais exóticos fomentados pelos media. Paralelamente a isto o número de especialistas vem crescendo consideravelmente, e o número de eventos académicos é também muito maior. Quanto a USP, este crescimento é bem notável pelo interesse dos estudantes dos cursos de graduação, nas dissertações e teses, congressos e até mesmo pela presença de escritores em seminários dirigidos à comunidade académica em geral, algo que antes raramente acontecia.      


Quais são os escritores africanos de língua portuguesa, e sobretudo angolanos, mais estudados no Brasil?
Olha, são vários! Dentre os angolanos temos (José) Luandino (Vieira), Agostinho Neto, Manuel Rui, Pepetela, Ondjaki, Boaventura Cardoso, (José Eduardo) Agualusa, João Melo, Uanhenga Xitu, Ruy Duarte de Carvalho, Óscar Ribas, Ana Paula Tavares... Quanto aos dos outros países africanos de língua portuguesa, os nomes mais notáveis são (José) Craveirinha, Noémia de Sousa, Virgílio de Lemos, Eduardo White, Mia Couto, Paulina Chiziane e Ungulani Ba Ka Kosa, de Moçambique;  Manuel Lopes, Ovídio Martins, Corsino Fortes, Filinto Elísio e Vera Duarte, de Cabo Verde; Filinto de Barros, da Guiné Bissau; Alda do Espírito Santos e Conceição Lima, de S. Tomé e Príncipe. Mas nota que citei aqueles nomes de maior presença na USP, quer ao nível dos cursos de graduação quer dos cursos de pós-graduação do Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, no qual estou inserido. Porventura haverá outros nomes cujas obras sejam estudadas em outras universidades brasileiras nas quais se vêm desenvolvendo trabalhos sobre as nossas literaturas, como é o caso da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), PUC-Minas, (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais), PUC-São Paulo (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) UNESP (Universidade Estadual Paulista), UFF (Universidade Federal Fluminense), UFBA (Universidade Federal da Bahia), UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Universidade (Estadual) de Londrina, UNEMAT (Universidade Estadual do Mato Grosso)... Esta é uma realidade sobre a qual tudo o que sei é muito pouco, porque deriva do contacto que algumas vezes tenho oportunidade de manter com colegas de outras universidades em Congressos, Encontros e Colóquios fora e dentro de São Paulo.


Dentre os escritores angolanos que não citou, há algum que, em sua opinião, mereceria à atenção da academia brasileira?
Acho que todos os escritores sejam dignos de estudo, até aqueles considerados menos conseguidos, nem que seja apenas para lhes revelar as mazelas. Agora, se você me pergunta que escritor angolano possui uma obra representativa e densa que serviria muito bem para demonstrar ainda mais a extensão da nossa diversidade literária, mas que ainda assim, por aquilo que sei, é pouco ou nada lido e estudado no Brasil, eu lhe responde que é Henrique Abranches.                     


Como é que estão hierarquizadas as literaturas africanas de língua portuguesa na academia brasileira e em particular na USP?
Pelo que observo, não existem hierarquias... Todas elas são estudadas e ensinadas de maneira igual, horizontal, porque parte-se do princípio de que todas as obras, todos os escritores, independentemente de terem esta ou aquela nacionalidade, têm a mesma importância científica e relevância académica. Contudo, o que eu noto é que, dentre estas literaturas, a literatura angolana é aquela que desperta maior interesse no seio da comunidade académica brasileira. Talvez isto seja em parte possível de comprovar pelo número de dissertações e teses que tem como corpus de análise obras de escritores angolanos. Suspeito que ainda não exista estatística sobre isto no Brasil, mas julgo que não deve ser assim tão difícil verificar através de uma busca no banco de teses das universidades disponível na Internet. Em todo o caso, esta tendência não tem nada que ver com uma preterição institucional e sim com outros factores. Em primeiro lugar, a existência de um número relativamente maior de professores especialistas que se dedicam ao estudo da literatura angolana e que estão disponíveis para tutorar ou orientar trabalhos sobre a nossa literatura. Em segundo, o facto de a literatura angolana ter uma maior divulgação no Brasil, seja pela presença dos nossos escritores em eventos culturais e académicos seja pelo grande número de obras publicadas por editoras brasileiras. E ainda neste ponto, é preciso não esquecer o trabalho que vem sendo levado a cabo pela União dos Escritores Angolanos. O trabalho de editoração, a venda de livros em eventos culturais e académicos no Brasil e a disponibilização de obras na Internet para o domínio público são iniciativas assinaláveis e que marcam a diferença pela positiva. No fundo isto só vem confirmar a dinâmica demonstrada pela nossa produção literária em relação às outras.     


Ainda assim é voz corrente que a literatura angolana tem pouca projecção internacional. Em seu entender qual seria a melhor via para se melhorar este quadro?
É claro que ela tem pouca projecção internacional se comparada a literaturas maiores – ou seja, literaturas com uma instituição e tradição literárias bem consolidadas. Mas aí já é um outro problema que não se resolve, como deve compreender, simplesmente com boas intenções e iniciativas da União (dos Escritores Angolanos). Isto tem que ver com questões relativas à limitação do mercado literário da língua portuguesa e porventura ao prestígio internacional do nosso próprio país. É necessário que os nossos autores sejam traduzidos para outras línguas para que a difusão da nossa literatura aumente significativamente lá fora. Um exemplo elucidativo, e mesmo entre nós, é o de (José Eduardo) Agualusa que recebeu em 2007 um prémio de prestígio na Inglaterra, promovido pelo jornal The Independent... Dentre os escritores angolanos, certamente ele é aquele com maior projecção internacional, o que só acontece porque as suas obras estão traduzidas principalmente para o inglês. Em escala maior, talvez isto fosse possível com a existência de uma política de Estado que visasse simultaneamente a projecção da imagem do nosso país lá fora e o apoio à edição no estrangeiro, como fazem outros países.  


Em 2005, foi criado um grupo multidisciplinar para estudar a história da literatura angolana. Parece que o projecto inquinou, passo o termo. Tem alguma informação sobre o mesmo? Em sua opinião, o que deve ser feito para que se tenha um projecto mais bem conseguido sobre a história da literatura angolana?
O que sei sobre esse projecto é o que foi tornado público durante algum tempo. De lá pra cá, tudo o resto são especulações alimentadas, com certeza, pela falta de informação da parte do Ministério da Cultura que era ou ainda é a entidade responsável por tal projecto. Se a comissão encarregada de redigir a história da literatura angolana foi extinta e o projecto abortado, as suas razões deviam ser do mesmo modo anunciadas publicamente. Quero com isto dizer que o Ministério da Cultura devia, salvo informação contrária, agir com maior transparência e responsabilidade pública. Em todo o caso, ainda sou daqueles que continuam achar que um projecto desta natureza devesse ser de iniciativa académica e não governamental. Penso que se assim fosse assinalaríamos dois momentos importantes: por um lado, a academia angolana assumiria um protagonismo necessário quanto ao estudo da nossa literatura, e por outro, seria mais um passo com vista à autonomia relativa da nossa instituição literária em relação ao campo político. É claro que não está aqui em causa a oportuna iniciativa do então Ministro da Cultura e muito menos a independência intelectual e a idoneidade científica dos especialistas que compunham o grupo... Longe disso! Contudo, a verdade é que sabemos que os critérios políticos quase sempre se situam aquém dos critérios literários, artísticos. E esta verdade é quase absoluta para o nosso contexto actual, como vimos a propósito da polémica em torno da penúltima atribuição do Prémio Nacional de Cultural e Artes, na categoria de literatura.

Como é que poderíamos criar o cânone literário em Angola?
A formação ou criação de qualquer cânone literário, ou mesmo de qualquer outro tipo de cânone, demanda, resulta de interesses vários. Isto não é nenhuma novidade! O que é desejável, e isto é importante para o nosso caso, é que estes interesses sejam os mais consensuais possíveis, ou no mínimo que os critérios de selecção sejam os menos arbitrários possíveis. Por isso penso que a formação do cânone literário em Angola deve resultar de amplo debate, principalmente entre os especialistas da área (das letras) e das áreas afins. O que é preciso evitar é que as obras ou os escritores sejam considerados, incluídos ou excluídos, em razão de critérios que tem que ver com a conjuntura política... Até porque o que normalmente se pretende é que o cânone seja uma base de leitura, uma selecção de obras de referência ou representativas da nossa dimensão cultural, social e histórica, tendo assim uma finalidade pedagógica. Definir o nosso cânone literário é ao mesmo tempo definir o que se quer ensinar às novas gerações, o que se quer que elas saibam. Isto quer dizer que a formação do cânone também envolve questões éticas e que tem que ver com a democratização da nossa educação, dos nossos conteúdos de ensino.  


E para a criação do nosso cânone literário, as obras devem necessariamente espelhar a angolanidade?   
Se entendermos angolanidade como uma noção que define o carácter ou o sentido nacional, sim, com certeza! Porém, o mais importante é termos consciência de que é necessário problematizar constantemente esta noção, pois nenhuma identidade é fixa, atemporal. Todas elas são temporal e espacialmente construídas, ou seja, todas elas atendem a uma demanda histórica. Sei que é banal dizer, mas somos muitas vezes tentados a pensar o contrário... Não existe nada inscrito no nosso genes que diz que somos angolanos; a angolanidade, como todo carácter nacional, é o produto de um processo sócio-histórico singular que continua até hoje. A angolanidade que se expressa na poesia de Viriato da Cruz, de Mário António ou mesmo na de um Agostinho Neto parece-me ser claramente diferente da angolanidade que se presentifica na narrativa de João Melo, por exemplo. Os tempos não são os mesmos... Ser e sentir-se angolano hoje é claramente diferente do que era nos anos 50 do século passado. Daí que as representações literárias sejam também distintas. É óbvio que podemos encontrar aqui e ali linhas de continuidade estilística ou de ordem compositiva, como se diz muitas vezes existir entre a poesia de (Agostinho) Neto e a de José Luís Mendonça. Mas José Luís Mendonça é uma coisa e Agostinho Neto é outra no que respeita à configuração literária do carácter nacional angolano. Aliás, podemos ainda encontrar grandes dissemelhanças entre escritores que escrevem numa mesma epóca. Veja por exemplo o caso de José Eduardo Agualusa e Boaventura Cardoso, ou de Ruy Duarte de Carvalho e Manuel dos Santos Lima. Existe aí a mesma angolanidade? Não, penso que não, mesmo a despeito das correntes ideo-estéticas as quais estes autores possam vir a ser filiados. São formas diversas... Não vejo como entre as obras destes escritores possa existir uma essencialidade que as defina, algo de genuíno e imutável que as liga. O que os liga é mais uma dialéctica do que outra coisa... Mas repare que não estou a dizer que não existam traços, temas comuns entre os nossos escritores, ou que não existam elementos culturais comuns que nos identificam a nós como angolanos. É obvio que eles existem, derivam de uma experiência histórica e literária comuns, e acho desnecessário enumerá-los aqui. O que estou a tentar dizer é que estes elementos ou traços identitários ganham significações diversas no quotidiano de cada um de nós ou na obra de cada um dos nossos escritores. O que pressupõe que existem diferentes formas de vivenciarmos ou ficcionalizarmos o nosso sentimento de pertença. Acho que ganharíamos muito mais se percebéssemos como dialéctica a noção de angolanidade fora e dentro da literatura, tendo sempre em vista a evolução do processo sócio-histórico angolano. E um cânone literário que se quer representativo precisa, em meu entender, ser o resumo deste processo.


Num colóquio internacional sobre literaturas africanas de língua portuguesa, realizado no final do século passado na cidade do Porto, em Portugal, quando se abordou a questão da angolanidade, cabo-verdianidade e moçambicanidade, notou-se que alguns estudiosos sentiram um certo arrepio ao se abordar as coisas nestes termos. Também sente algum arrepio neste domínio?
Arrepio!? De maneira alguma...! Até onde entendo, e como já lhe disse, a questão não se coloca no termo angolanidade em si, que pode muito bem ser uma categoria operatória válida, mas sim no sentido a-histórico, conservador ou mesmo reaccionário que alguns lhe atribuem. Bem, resumindo: existem entre nós duas concepções dominantes, ou se quiser hegemónicas, do carácter nacional ou da angolanidade. Os seus defensores são conhecidos. Elas excluem-se mutuamente. Uma define a angolanidade como o conjunto de traços culturais essenciais pré-existentes à presença cultural portuguesa – ou seja, aqui é a matriz cultural da maioria bantu que predomina –, enquanto a outra entende que a angolanidade só passa a existir a partir do momento em que se efectivam os laços culturais no contexto da sociedade colonial, formando assim uma matriz crioula que nos caracteriza a todos. Ora como vê, ambas as concepções estão preocupadas com as origens, em determinar uma matriz identitária. Na verdade, e ao contrário do que parecem, elas são bem parecidas, ambas são totalitárias, pretendem definir a identidade nacional como imutável, sempre atrelada a uma essência ou a uma origem que lhe dá forma e sentido. Hoje mais do que nunca sabemos que as origens são invenções discursivas ou fruto de recriações imaginárias. O mito do “mundo que o português criou”, defendido por Gilberto Freyre, não é assim tão diferente, por exemplo, do mito da “authenticité africaine” propalado pelo discurso negritudinista de (Léopold Sédar) Senghor e outros. Determinar a essência ou o substrato de uma identidade nacional parece-me sempre um exercício arbitrário e até mesmo perigoso, na medida em que, na maior parte dos casos, em vez de esclarecer acaba representando obstáculo para que os povos se tornem livres de preconceitos não apenas em relação a outros povos, mas também a eles mesmos. Se você observar com atenção a nossa vida quotidiana, vai reparar que as nossas identidades culturais, espaciais, sociais e até mesmo raciais são reinventadas, renegociadas a todo instante. Este processo é mais difícil e interessante de rastrear, e é isto o que a literatura tem feito. Aqui penso especialmente em Predadores de Pepetela, pois o que este romance nos propõe a partir da sua forma diegética não é apenas uma crítica corrosiva ao estado de subcapitalismo perverso e predatório em que vivemos, mas também uma espécie de definição sociológica do caráter nacional. Vladimiro Caposso, o protagonista, é um dos verdadeiros tipos sociais angolanos da actualidade e o que o seu perfil nos diz é que ser angolano hoje – pelo menos para as camadas sociais em ascensão e vislumbradas com as ilusões da modernidade ocidental – é aliar a origem humilde ao oportunismo de toda a espécie, a mediocridade à ostentação, o espírito liberal ao clientelismo... Portanto um mar de escândalos, de tensões e contradições. E repare que em outras obras, muito anteriores a esta, Pepetela configurou outros tipos sociais como protagonistas, pautados por outra ética, como o menino Ngunga, o Ulume (de Parábola do Cágado Velho) e o Aníbal, o Sábio d’A Geração da Utopia. O mesmo talvez verificássemos na obra de Manuel Rui se comparássemos os meninos protagonistas de Quem me dera ser Onda ao protagonista de Janela de Sónia... Penso que há muitas lições a tirar da nossa experiência literária dependendo da perspectiva de análise que se adopta, mas a principal delas é certamente que devemos prestar bastante atenção à dinâmica da vida nacional como um todo, a sua dialéctica, pois no fundo é ela quem nos permitirá definir as marcas da nossa singularidade.                                       


No capítulo da poesia, ainda continua actual aquela frase de David Mestre segundo a qual Agostinho Neto, Alda Lara, António Jacinto, Viriato da Cruz e Alexandre Dáskalos são os cinco poetas verdadeiramente angolanos? 
Obviamente que não... O que é isso de “verdadeiramente angolanos”?! Ora se disse isto, exactamente nestes termos, provavelmente David Mestre se referia aqueles que ele considerava como os maiores ou os mais relevantes poetas da chamada “geração de 50”, ou seja, se referia a um momento particular do nosso percurso literário. Ele próprio foi um poeta inquestionável, de uma dimensão extraordinária, mas nem por isso foi mais ou menos angolano do que os cinco citados. O mesmo poderíamos dizer em relação a alguns poetas ainda da contemporaneidade: João Tala, João Maimona, (E.) Bonavena, José Luís Mendonça, Lopito Feijóo... A meu ver, a questão não se coloca em termos de verdadeiro ou falso. No plano literário, são qualificativos insustentáveis. De todo o modo, trata-se de uma opinião pessoal, sem relevância crítica, da qual se concorda ou discorda. Não há nada por discutir. Se bem visto, é uma frase diferente no conteúdo, mas igual na forma daquela que escandalizou muita gente há poucos anos atrás, em que um leitor foi de opinião que (Agostinho) Neto, António Jacinto e (António) Cardoso são poetas rasos, medíocres. Para o raciocínio crítico, o mais importante é aquilo que lhe tenho dito... O mesmo que lhe disse em relação à noção de angolanidade pode ser aplicado à noção de valor literário. O valor em literatura é sempre transitivo e nunca imutável, já que ele depende da consciência estética de uma determinada época, de uma determinada comunidade literária, que julga as obras de acordo com critérios específicos e à luz de objectivos determinados. Na verdade, tudo depende do lugar e da situação histórica a partir da qual falamos. Embora a tradição literária permaneça, a tendência, mais cedo ou mais tarde, é que ela seja reavaliada, questionada e mal ou bem superada. Aliás, nada nos garante que não venhamos a ter uma mudança substancial nos nossos padrões de gostos culturais e literários que faça com que os nossos netos ou bisnetos passem a considerar aquela poesia dos anos 50 do século passado como mera tradição, sem qualquer qualidade estética actual. Talvez não estejamos muito longe disso... Noutras palavras, é de todo questionável a tese de que o valor literário se encontra a priori inscrito na obra ou que seja, desde logo, um dado da sua propriedade interna. Enfim... Mas mais valeria imaginarmos, por exemplo, o que pensaria David Mestre acerca da actual poesia feita por esta novíssima geração no seio de projectos como “Lev’Arte”, não acha?


Qual é a interpretação que faz da expressão “Geração das incertezas” defendida pelo professor Luís Kandjimbo?
Bem, não teria muito para lhe dizer... Até onde sei, porque está lá num dos ensaios de Apologia de Kalitangi, com essa expressão Luís Kandjimbo pretende caracterizar e definir a sua própria geração à luz do contexto social e político em que ela se desenvolveu. E este contexto, como sabemos, é o da ditadura monopartidária instituída logo após a independência, com toda a sua atmosfera de violência e de privação das liberdades intelectuais. De resto, parece-me uma expressão de grande utilidade autoreflexiva, através da qual o ensaísta apresenta uma visão bastante crítica, desmistificadora mesmo, de um período decisivo da vida nacional.       


Tendo em conta que a oralidade joga um papel fundamental na nossa comunicação quotidiana, principalmente nos espaços rurais, como avalia o estado actual da literatura oral em Angola?  
Olha, no que diz respeito ao seu processo de produção e transmissão, eu penso que este ramo da nossa literatura vem sofrendo transformações consideráveis. A migração de grande parte das populações rurais para áreas urbanas, principalmente como consequência do impacto desagregador dos longos anos de guerra civil, certamente gerou uma alteração profunda na estrutura e na rotina social e cultural das comunidades rurais, que, como sabemos, são os autores colectivos por excelência deste tipo de literatura. Aliás, algumas destas comunidades chegaram mesmo a deixar de existir por completo no seu meio rural. Postas no contexto urbano, estas populações se confrontaram com hábitos e prioridades radicalmente diferentes das anteriores. A dinâmica natural da vida numa cidade é quase sempre incompatível com a perpetuação da literatura oral enquanto “tradição viva”, para usar aqui a expressão de (Amadou) Hampâté Bâ. Ainda assim, vale pensar que pode haver a possibilidade de com a migração para os espaços urbanos uma parte desta literatura oral tenha sobrevivido, o que seria para já algo interessante de ser estudado. Quanto ao trabalho de pesquisa neste campo, sei que internamente se tem feito alguma coisa. Conheço, por exemplo, das recolhas e estudos feitos por Américo (Correia) de Oliveira sobre diversos géneros da literatura oral angolana. Sei também que se têm feito pesquisas ao nível dos cursos de licenciatura. Em tempos ainda tive em mãos uma monografia interessante, defendida recentemente no ISCED de Luanda, em que se propõe uma análise estruturalista de contos em kimbundu, de autoria de Nsimba Guida. De todo o modo, com excepção do trabalho de Héli Chatelain, de Óscar Ribas e também de António Fonseca, que chegou a publicar um estudo a ter em conta sobre esta matéria, parece-me não haver mais estudos de referência que representem tentativas de teorização, e isto falta.                      


Ainda no capítulo da recolha e pesquisa da literatura oral, Óscar Ribas continua ser o nome de maior referência dentre os estudiosos angolanos?
Sim, sem dúvida! Da literatura oral e não só, pois Óscar Ribas ainda é, e penso que continuará a sê-lo durante largo tempo, uma figura incontornável no que diz respeito à pesquisa do folclore angolano em geral. Talvez devéssemos juntar a ela a figura de Raul David, um nome pouco referido até mesmo entre nós, mas que também desenvolveu e legou-nos um trabalho exemplar neste domínio. Mas falar da importância do trabalho destas duas figuras, destas duas autoridades da nossa cultura popular, é também pensar no que se tem feito para continuá-lo e senão mesmo superá-lo. E neste sentido, acho que se tem ainda muito por fazer.


Se atendermos que a crítica literária acaba por ser um barômetro para medir a qualidade literária, não há um paradoxo no facto de que, mesmo não tendo uma crítica literária regular interna, continuemos a ter uma produção literária pujante?
Bem, em primeiro lugar, e se me permite, não concordo inteiramente com uma das premissas da sua questão. Ao contrário, vejo que existe sim uma crítica literária regular entre nós. O que se passa é que esta crítica é insuficiência para a dinâmica do nosso panorama literário actual e ainda não tem a notabilidade e talvez o prestígio desejáveis. Esta crítica é feita nas monografias de licenciatura e agora nas dissertações de mestrado, nos artigos académicos publicado aqui e lá fora e também nos jornais. Sei que há pessoas que tem feito isto com uma certa regularidade, como os professores Francisco Soares, Manuel Mwanza, Jomo Fortunato, Abreu Paxe e também o ensaísta Nelson Pestana. Por outro lado, é também importante perceber a função da crítica... Ela é um meio de consagração literária, dentre outros, mas não serve para exercer pressão sobre os autores. A leitura crítica é uma leitura possível. A relação que existe entre produção crítica e produção literária, ou entre crítico e autor, não é a mesma que existe, por exemplo, entre bolsa de valores e mercado financeiro. Neste sentido, ela é mais uma baliza que quando muito visa orientar o leitor, seja ele o público leitor em geral, o editor ou o próprio autor. Portanto considero não ser tanto um paradoxo... A pujança da nossa literatura, como disse e bem, resulta e resultará sempre em primeiro lugar do trabalho exigente dos escritores, para o qual a crítica poderá ou não contribuir.        


Que papel as faculdades de letras, em particular os cursos de literatura, podem jogar para o resgate da crítica literária em Angola?
Não só podem como devem ter um papel central neste capítulo. Se nos referimos à existência de uma crítica especializada, o contributo destas instituições consistirá essencialmente, como é óbvio, em formar futuros críticos e desenvolver pesquisas nesta área. Mas para isto é necessário que antes uma série de condições exista. É necessário que haja docentes qualificados na área, bibliotecas com a bibliografia indispensável, programas que atendam a interesses científicos locais e universais actuais...  É necessário ainda, e isso é mesmo de grande relevância, que esta formação esteja aliada à criação de um clima propício ao surgimento de ideias, um clima de debate e reflexão constantes sem o qual o trabalho crítico não existe, não sobrevive. E para isto, se estamos a falar de uma área de formação relativamente nova no país, acho que é indispensável contar com a parceria de universidades estrangeiras, ou pelo menos daquelas onde os estudos sobre a nossa literatura estão hoje bem mais avançados. Sem estas e outras condições, penso que estaremos a alimentar falsas expectativas quanto às possibilidades de haver uma crítica especializada suficiente e de qualidade entre nós. Contudo, há que notar ainda que a existência de muitas destas condições não depende única e exclusivamente da gestão interna das faculdades ou das universidades como um todo. São questões que envolvem outras esferas do poder. A propósito, permita-me dar-lhe um triste e pequeno exemplo: há o caso de uma colega minha que está agora a terminar o seu doutoramento no Programa de Estudos Comparados da USP. Esta pessoa, que tinha uma bolsa concedida pelo governo brasileiro, pretendia vir a Angola fazer um estágio numa das nossas universidades públicas que incluiria, dentre outras atividades, apresentação de seminários nos cursos de licenciatura. Ela pediu o visto de estudante junto ao consulado de Angola em São Paulo vai pra aí nove meses... Ainda quer saber o que aconteceu? O que aconteceu foi que ela simplesmente perdeu a bolsa porque não conseguiu apresentar o visto até hoje, quase dez meses depois! E o mais absurdo em tudo isso, impossível mesmo de acreditar, é que o consulado, pelo que tenho acompanhado, não dá qualquer explicação sobre o caso. Em consequência disto é uma oportunidade de diálogo enriquecedor que se perde por causa de um entrave burocrático a outro nível.                          


Qual tem sido o contributo da literatura angolana para o universo da língua portuguesa?
Enorme é o contributo, pois a nossa literatura é detentora de uma força notável. Autores como (José) Luandino Vieira, Manuel Rui, ou ainda Boaventura Cardoso são lidos em quase todo o espaço da língua portuguesa. São escritores, cada um deles, com uma linguagem literária muito peculiar, já que a nossa literatura consegue alcançar esta potencialidade estética, pondo em evidência as inúmeras possibilidades de recriação da oralidade, dentre outros contributos. Portanto os escritores angolanos, de uma maneira geral, têm contribuído para que a língua portuguesa seja recriada artisticamente. Agora, para que este contributo seja realmente perceptível entre nós, é preciso pensar em ampliar o número de leitores de literatura angolana dentro do nosso próprio país, quer através de programas que elevem e consolidem os níveis de alfabetização quer através de iniciativas que tornem os livros acessíveis às pessoas. Convenhamos que não será com campanhas ou feiras de venda de livros que se resolverá o problema do acesso ao livro e da cultura de leitura em Angola. Trata-se de um impulso, mas ainda é um terço da metade... Para além do subsídio aos preços dos livros, do incentivo fiscal ao investimento nesta área e do apoio à edição interna, algo que é de todo indispensável e urgente é termos uma rede de bibliotecas municipais ou comunitárias, um espaço de acesso público e junto das comunidades. Isto sim massificaria a leitura e colocaria a nossa literatura mais próxima das pessoas, dos potenciais leitores, o que faria com que ela deixasse de ser – porque ainda é, verdade seja dita – um privilégio e se tornasse um bem comum.   


Para aquelas pessoas que pretendem navegar pela crítica literária, quais são os requisitos necessários para se fazer crítica literária de qualidade?
Olha, o primeiro requisito é sem dúvida ser um leitor assíduo e exigente, a bagagem de leitura e a sua diversidade são factores cruciais e determinantes. Um segundo requisito talvez seja a formação especializada na área das letras, pois com a formação académica o crítico estará, julgo eu, em melhores condições de avaliar e optar pelos instrumentos de análise mais convenientes, sejam eles de filiação formalista, psicanalítica, fenomenológica, semiótica, materialista histórico ou outra. Ou seja, não existe crítica literária sem o domínio dos conceitos e do método que o crítico vai fazer uso para analisar o texto literário. Daí em diante é o trabalho de oficina, que requer dedicação e tempo de maturação, pois uma crítica de qualidade não surge “a três pancadas” – como às vezes dizemos. É preciso tempo..., principalmente para o nosso caso, em que, muitas das vezes, nós, os estudantes, levamos connosco para a formação superior debilidades enormíssimas que as universidades por sua vez não só não suprimem – até porque este não é o seu papel – como lhes acrescentam outras. Portanto é preciso tempo e exigência pessoal...