Luanda - “Colar ardente”. Uma retrospectiva dos casos de justiça por mãos próprias que grassam por Luanda, nas últimas semanas apontam para o crescimento deste fenómeno, que, volta e meia, polariza as atenções dos cidadãos, da Polícia e de vários segmentos de conhecimento da vida nacional. A verdade é que, o caso que ficou conhecido como ‘colar ardente’ voltou a franquear-nos a porta e já faz contas de somar, tendo em conta o número contabilizados


Fonte: A Capital

Num intervalo de poucas semanas, o fenómeno ‘colar ardente’, consubstanciado na queima de que pessoas vivas, por suposta prática delituosa, voltou a entrar para o léxico dos populares e, senão tanto, também dos relatórios policiais, pela já preocupante frequência com que as mesmas têm estado a ocorrer.


Os bairros Palanca, Imbondeiro, Combustíveis, Viana e Paraíso são até ao momento, numa ordem aleatória, os mais ‘endémicos’ no que a esta prática diz respeito. A grande preocupação manifestada pelas autoridades é que a moda venha a pegar e estender-se aos demais bairros de Luanda.


E pelo andar da carruagem, a ‘praga’ pode atingir o país, se medidas profilácticas, como defendeu o sociólogo Lukombo Nzatuzola (ler entrevista), não forem tomadas em tempo julgado oportuno.


Num dos casos reportados por este jornal, ocorrido no mês de Fevereiro, dois supostos meliantes foram surpreendidos no bairro Palanca, em actividade delituosa. Sem que se alertasse a Polícia, foram, pura e simplesmente, submetidos a uma impiedosa sessão de espancamento pelos  populares, antes que estes decidissem por queimá-los vivos até à morte.


Os promotores de tão mórbida decisão, até agora desconhecidos, ignoraram todo o tipo de pedido de perdão pronunciado pelas vítimas e resolveram, por sua conta e risco, fazer justiça por mãos próprias de uma forma tão cruel, quanto se pode imaginar.


O local para execução, inclusive, foi escolhido a dedo: defronte ao triângulo existente a escassos metros da administração comunal do bairro Palanca, onde, por incrível que pareça, está localizada uma recauchutagem. De tal forma que tiveram o trabalho facilitado, pois tinham a mão de semear pneus de sobra, para servir de ‘colar’ para a hedionda operação.


Os munícipes partiram da presunção de que os elementos ‘carbonizados’ seriam meliantes, uma vez que bem ao lado dos corpos foi encontrada uma aparelhagem de som, que, presumivelmente, os meliantes terão furtado. Ademais, segundo afirmaram, a onda de assaltos é o ‘pão de todos dias’ naquelas paragens, onde se assiste o fraco patrulhamento por parte da Polícia local. Daí à decisão de fazer justiça por mãos, a fronteira é curta.


Naquela altura, o administrador comunal do Palanca, José Praia Tondela, terá dito que a atitude tomada por alguns moradores era a todos os níveis condenável. “É crime nos termos da nossa Constituição, de tal forma que já saímos à rua, para sensibilizar as pessoas a conduzir os possíveis marginais às esquadras em situação desta natureza, para que estas tomem a medida necessária”, referiu.


Este crime parece ter morrido no esquecimento, dado que os seus autores, por força de uma rigorosa investigação, continuam a monte e até mesmo a passearem impunes pelo bairro.


Histórias arrepiantes


Já no bairro Imbondeiro, ao Cazenga, as informações recolhidas de populares apontam que o indivíduo queimado em plena luz do dia era mesmo um conhecido meliante. Era alguém que no fatídico dia foi visto em fuga, transportado numa moto do tipo rápida, depois de, supostamente, ter assaltado um cambista de rua, na companhia de um amigo.


Para o seu azar, na altura em que encetava a fuga, caiu da motorizada e viu-se, em fracção de segundos, alcançado pelos seus perseguidores, que, de imediato, o espancaram sem apelo, nem gravo. Pouco depois, uma voz se fez ouvir entre a multidão: ‘queimem’, mesmo com a 14„ Esquadra do Hoji-ya-Henda a poucos metros do local dos acontecimentos.


Fartos da sevícia aplicada ao rapaz, o pneu a arder atravessado ao pescoço acabou por cumprir com a tarefa de casa. O homem foi quase reduzido a cinza, pela acção das altas labaredas que o consumiram por completo. Não teve oportunidade para defender-se.


No bairro Combustíveis, na rua do Alfa 5, o “modus operandi” foi praticamente o mesmo. Um autêntico papel químico do que acontece noutros pontos de Luanda, onde a prática é recorrente. Neste facto, os moradores alegaram que o suposto meliante teria, na companhia de um amigo, tentado assaltar uma farmácia, algo que não chegou a acontecer dada a pronta intervenção dos moradores que neutralizaram os presumíveis assaltantes.


Como nos casos já relatados, o suposto meliante foi, inicialmente, espancado por uma turba de gente revoltada, que não mediam esforços para alcançar o corpo do mesmo, com uma infinidade de objectos contundentes (afinal, pedra não se compra), sempre que este tentasse escapar das ‘garras’ dos seus algozes.


E no final, lá surgiu, uma vez mais, a macabra ideia: alguém, sem pejo, muniu-se de gasolina e fósforos, para, de forma malévola, tirar a vida ao cidadão que, bem pensado, poderia ser presente às autoridades policiais.


Merecia, de facto, uma segunda oportunidade para redimir-se. Mas, não lhe foi dada esta hipótese: atravessaram-lhe a engenhosa e mortífera criação da periferia: o ‘colar ardente’. Morreu carbonizado.


Já no bairro Paraíso, um outro jovem viveu um inferno, antes de perder a vida nas mesmas circunstâncias, depois de acusado de tentativa de assalto a uma residência.


Em todos os casos relatados, infelizmente, a Polícia Nacional apenas apareceu no local dos acontecimentos para remover os cadáveres das vítimas, sem se dar ao trabalho de, ao menos, realizar um profundo trabalho de investigação, para localizar ou identificar os autores de tais atrocidades e conduzi-los à barra do tribunal.

‘Olho por olho, dente por dente, não resolve o problema’

A visão sociológica de Lukombo Nzatuzola, para quem é preciso agir quanto antes, para contrapôr a tendência de crescimento em espiral deste macabro e inquietante fenómeno

 

Reforçar a educação moral e cívica junto das organizações, das administrações, da comunidade, das igrejas, das escolas, onde as pessoas encontrem espaço para dialogar, faz parte da solução, segundo o sociólogo.


O que dizer do reaparecimento de casos de queima de supostos meliantes?

Isto de resolver situações de delinquência ou de roubo entre os membros da sociedade, sem passar nas mãos dos agentes da ordem, do tribunal ou outras instituições, que devem decidir sobre a matéria, deve ser objecto de séria reflexão. É um fenómeno que se registava no passado e que, podemos dizer, já tinha abrandado. Mas, ultimamente, estes casos voltaram a aparecer, o que, para já, deve constituir uma grande inquietação para a sociedade em geral, para o cidadão comum, para as instâncias judiciais e os agentes da ordem, que deveriam fazer com que a aplicação da lei prevalecesse. Isso revela que, a nossa sociedade está em crise. Denota que, alguma coisa tem estado a falhar, quanto às medidas que devem ser cumpridas e na forma como devem ser aplicadas. Em outras palavras, neste caso, recorre-se à antiga lei `olho por olho, dente por dente', que não é a melhor forma de encontrarmos soluções, para este tipo de situações. Isto são consequências das fragilidades e incumprimentos das instâncias policiais e judiciais.


Que bases sociológicas podem sustentar esta prática?


Sociologicamente, observamos que esta situação afecta determinados grupos de marginais que são de uma determinada faixa etária. Não posso dizer, taxativamente, se acontecem mais na periferia ou no centro da cidade, como também não posso, igualmente, dizer se o alvo é ou não a sociedade considerada da elite. Isto porque os marginais, muitos deles, têm origem em família sem meios de subsistência, que não conseguiu garantir uma formação que garantisse a esses jovens uma ocupação. As razões são várias: dificuldades sociais, a guerra, o meio onde se insere ou teve a sua socialização, a zona onde actua, se é ou não na periferia, se o alvo dos assaltos é uma população considerada opulenta ou carenciada. São elementos que devem ser levados em consideração para, ao nível sociológico, falar-se com maior propriedade.


Será que a população perdeu confiança na Polícia?

A partir do momento em que a pessoa agarra um gatuno e não quer mais encontrar soluções, junto do posto policial ou esquadra no seu bairro, é a prova mais que evidente, de que as pessoas acham que não vale a pena confiar na Polícia. Isto porque se entregar o gatuno à Polícia, poderão fingir que está preso ou detido e, num determinado tempo, curto ou médio prazo, voltar a aparecer no bairro, repetir as mesmas acções e até a desafiar as pessoas que, anteriormente, os levaram à Polícia. Entretanto, podemos concluir que esta falta de confiança é que leva as pessoas, a fazer justiça por mãos próprias.


Que solução?

Reforçar a educação moral e cívica junto das organizações, das administrações, da comunidade, das igrejas, das escolas, onde as pessoas encontram espaço para dialogar. Estas acções devem ser levadas a cabo ao nível dos quartéis e esquadras policiais, no sentido de educar os agentes de que a aplicação da lei tem de ser um facto. Não vale a pena insistir na cultura da gasosa, porque isso retira a confiança das pessoas de falta de cumprimento das suas tarefas por parte dos agentes da Polícia. Os polícias alegam que auferem um salário irrisório, como argumento para o recurso à práticas pouco ortodoxas para satisfazer as suas necessidades. Quer dizer que deve fazer-se, um trabalho integrado, com todos os intervenientes deste processo, que permitam uma satisfação condigna, para não haver culpa a recair apenas para um dos lados. Quer seja a Polícia, o cidadão, os juízes, o provedor de justiça ou o meliante, que não tem emprego e, por isso, envereda pela forma mais fácil de ganhar a vida. Deve-se criar oportunidades, para que ninguém enverede por caminhos nocivos.

 

Diz-se que, casos do género acontecem em zonas habitadas, maioritariamente, por cidadãos congoleses democráticos. Isso diz-lhe alguma coisa?

Isso não deixa de chamar atenção, pelo que nos devemos questionar o seguinte: por que é que estas acções, só estão a acontecer em zonas, maioritariamente habitadas por pessoas oriundas do Congo Democrático? Será que o próprio meliante é também do Congo Democrático? Se não for, por que razão ele ataca em zonas onde essas pessoas vivem? Será que ele acha que os congoleses democratas é que têm dinheiro? O que os leva a atacar apenas pessoas do Congo Democrático. Por que o grupo alvo dos meliantes reage desta forma? A partir das respostas que encontrarmos, poderemos encontrar as possíveis soluções para este fenómeno. Será que, as pessoas originárias da RDC têm mais dinheiro e, por isso, os meliantes os atacam? Será que este povo reage assim, porque perdeu a confiança nas nossas instituições policiais e judiciais? Estas respostas é que vão nos permitir saber, onde reside o mal. Entretanto, a partir dessas respostas poderemos encontrar as soluções mais adequadas.

 

Que outros subsídios deixa para compreender o fenómeno?

Deve-se saber, efectivamente, em que circunstâncias esses actos foram realizados, uma vez que quando se queimam os supostos bandidos, há pessoas a presenciar. Não são queimadas às escondidas: Os seus restos mortais são encontrados em local público. Quando a acção estava a ser perpetrada nesses locais, vieram pessoas assistir a cena. Por isso, a Polícia deveria ter pistas, para obter as informações complementares para responsabilizar os autores. É necessário um trabalho investigativo mais abrangente. Mas, como tal não foi feito, ninguém ainda veio a público, dizer que já foram identificados os autores desses crimes.


Polícia só sabe de três casos

Subinspector Nestor Goubel. A revelação feita pelo porta-voz interino do Comando Provincial de Luanda encerra alguma preocupação: dos cinco casos que este jornal registou este ano, apenas três chegaram ao conhecimento daquele comando policial e igual número de pessoas (três) estão já a contas com a justiça, acusados de praticarem justiça por mãos próprias. Ou seja, atearam fogo sobre o corpo dos três homens, por suposta acção marginal. Eis algumas ocorrências só ao nível da cidade de Luanda:


CASO Nº 1


O primeiro caso registado pela corporação data do dia 28 de Fevereiro, quando, à calada da noite, algures no bairro Palanca, município do Kilamba Kiaxi, populares frustraram um assalto protagonizado por três supostos marginais, que procuravam entrar numa residência. Até aqui nada de anormal. Mas, o pior estava para acontecer: sem ao menos comunicarem à Polícia sobre o sucedido, colocaram dois dos três marginais entre pneus, despejaram petróleo e... fogo com os mesmos.


CASO Nº 2


Três meses depois, isto é, a 29 de Maio, a história repetiu-se. Desta vez no município de Viana, onde um suposto marginal que tentava assaltar, em plena via pública, a carteira e o telefone de um transeunte, servindo-se de uma faca que trazia em riste, conheceu um fim inimaginável, após ter sido neutralizado. Quando se esperava que fosse encaminhado para uma esquadra mais próxima, -sabe-se lá por que carga de água! - estes decidiram resolver a situação com aquilo que melhor sabem fazer: reuniram os pneus, colocaram o suposto meliante no meio, deitaram petróleo e mesmo com o meliante aos gritos, a suplicar por clemência, atearam fogo sobre ‘o colar’ que, de modo ardente, carbonizou-o minutos depois.


CASO Nº 3


E o ‘fenómeno’ não parou: no dia 25 de Outubro, novamente em Viana, desta vez no bairro da Fofoca, foi a vez de outros três assaltantes conhecerem a fúria dos populares. Após terem assaltado várias residências, semanas antes, julgaram que tinham o domínio do bairro e da vida dos seus moradores. Ledo engano. Compreenderam que, afinal, o sol não brilha todos os dias. Surpreendidos, os três comparsas acabaram cercados e imobilizados pelos agastados populares. Foram queimados sem dó, nem piedade. Para os autores daquele acto, o mal foi cortado pela raiz, mesmo acabando por incorrer num outro crime, bem mais hediondo.


APELO

Nestor Goubel exorta à sociedade, no sentido de abdicar da prática de justiça por mãos próprias, porque existem órgãos próprios para o fazer. “Justiça por mãos próprias é um mal maior e não se justifica”, afirmou. Dos três casos relatados, apenas o ocorrido no município do Kilamba Kiaxi é que resultou na detenção dos autores de tais práticas. Já nos demais casos, apesar de localizados, os seus autores, até agora, desapareceram do mapa.