Luanda - Arrancou no sábado último, 21 de Janeiro, a maior festa do futebol do continente berço, o CAN Orange 2012, co-organizado pelo Gabão e pela Guiné Equatorial. A cerimónia de abertura foi uma festa cheia de luzes e cores quentes e alegres, características da cultura do nosso continente, dançadas entusiasticamente ao som dos ritmos escaldantes da nossa África e ainda assim, com um toque bastante hodierno, conferido pelas mais modernas técnicas de projecção de imagem, luz e fogos-de-artifício, enfim, um espectáculo de arregalar os olhos de qualquer amante da vida.


Fonte: Club-k.net

A propósito disto, acompanhei pelo canal 1 da TPA, há poucos dias e na véspera do início do CAN, a entrevista a um funcionário da ANGOP (Agência Angola Press) que, enfunado de um patriotismo vesgo, tecia comentários à volta do certame, da participação de Angola no evento e dos aspectos organizativos da competição.


Na visão do nosso compatriota, Angola teve o mérito de ter organizado um CAN exemplar, de tal sorte que elevou a fasquia da qualidade na organização de eventos desta natureza a nível do nosso continente (nisto estamos de acordo, eu estava lá) ao passo que a organização conjunta do Gabão e Guiné-Equatorial enferma de vários problemas e defeitos (nisto não concordamos nem discordamos, eu não estou lá) mas que estes eram próprios dos africanos (nisto decididamente não concordamos, eu sou africano).


Ohooo! Então nós, os africanos somos já desorganizados? Como foi então que Angola, um dos 54 países de África, situado na costa austral do continente (só para que conste), conseguiu o feito de organizar um CAN exemplar, tão apaixonadamente enaltecido pelo nosso ilustre compatriota? Como foi então que, meses depois, no mesmo ano, a África do Sul, nosso país vizinho, realizou uma das mais bem-sucedidas copas do mundo de futebol dos últimos tempos? Não somos mais africanos? Fomos banidos do continente berço? Socooooorro! União Africana, ONU, OTAN, Al-Qaeda… alguém nos ajude! Mas, espera aí! E agora então somos quê? Será que somos asiáticos? Ahh! Se calhar agora entendo porquê que vejo tanto chinês (ou vietnamita, sei lá) a cada virar de esquina! Não, eu quero mesmo é ser africano!


Este episódio faz-me lembrar um outro, ocorrido há já alguns anos. Numa manhã de um dia qualquer, uma senhora liga para um programa da Rádio LAC (Luanda Antena Comercial) a reclamar que havia comprado uma pizza num dos supermercados de Luanda e só quando chegou a casa percebeu que a mesma estava deteriorada. Quando voltou ao supermercado para apresentar a sua reclamação, a resposta da funcionária foi: e agora? Qual é o problema? Isso é Angola!

 
Parece ser de senso comum que África e, por consequência, Angola é sinónimo de desorganização, corrupção, maldição, confusão e todos os outros males terminados em ão. O que parece mais engraçado ainda, é que são os próprios nativos que volta e meia o reafirmam.


Estudos em psicologia social demonstraram que as pessoas têm a tendência de aceitar ou apropriar-se de características que lhes são atribuídas por outros, tornando-as parte da sua personalidade ou do seu comportamento. Por exemplo, se repetidamente tratarmos uma criança de “indisciplinada” ou “teimosa”, ela poderá, com o tempo, adoptar este comportamento como parte normal da sua personalidade e agir de acordo com ele, aceitando-o desta forma.


Esta tendência pode resultar da propensão natural do homem de proteger a sua integridade psicológica, desculpando a sua própria consciência, o que na teoria da psicologia psicanalítica chama-se de “mecanismos de defesa do ego”. Uma dessas estratégias, a racionalização, consiste em justificarmos o nosso fracasso na realização de determinado objectivo, atribuindo a causa do fracasso a factores exógenos a nós próprios e que estão fora do nosso controle.


É comum observarmos entre nós, que quando alguém se atrasa para uma reunião ou outro evento, achamos a situação aceitável, alegadamente porque “nós, os africanos, somos assim”. Quando cometemos uma infracção, tendemos a dizer: “não liga, isto é Angola”. Mais do que isso, assumimo-lo a tal ponto que, se programarmos um evento para as 16 horas, anunciamo-lo para as 14 horas, porque as pessoas só começarão a aparecer duas horas mais tarde; andamos sempre com um trocado a mais no bolso, na perspectiva de podermos cometer uma infracção e termos de corromper o polícia; enfim, assumimos que “nós, os africanos, somos mesmo assim”.


A atribuição de causalidade pode ter consequências distintas. Se, por um lado, atribuímos a causa do nosso fracasso a factores que estão fora do nosso controlo, podemos nos sentir deprimidos e simplesmente não reagirmos para mudar a situação. Se, por outro lado, atribuirmos a causa do fracasso a factores que possamos controlar, vamos nos esforçar mais e teremos um desempenho melhor.

 
Já há muito tempo, está mais do que provado que a capacidade intelectual dos seres humanos não difere em função da tonalidade da pele ou da origem étnica. Apesar de ser influenciada por factores do ambiente sociocultural, a nossa capacidade intelectual não é determinada por estes. São vários, e seria fastidioso enumerá-los aqui, os exemplos de africanos e de indivíduos de ascendência africana que são casos de sucesso nos mais variados sectores da vida: nas artes, no desporto, na política, nos negócios, nas letras e na ciência. Portanto, está mais do que na hora de abandonarmos este tipo de linguagem conformista e depreciativa do homem africano e começarmos a mudar a nossa atitude e a nossa postura diante do trabalho e daquilo que são as nossas responsabilidades na vida, a fim deixarmos um legado de igualdade e dignidade às gerações futuras.


Bem-haja o CAN, bem-haja o continente africano!


“Emancipate yourself from mental slavery, none but ourselves can free our minds…” (Liberte-se a si mesmo da escravidão mental, ninguém, senão nós mesmos, pode libertar as nossas mentes) – Bob Marley.


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Wilson & Linville, 1985, citado em Introdução à Psicologia, Davidoff, Linda L., 3º ed., Pearson Makron Books, São Paulo, 2001