Luanda - A Doutora Beatrix  Heintze, investigadora da História e Etnologia de Angola e da África Centro-Ocidental, que, ao longo de quarenta anos, desenvolveu o seu trabalho no Instituto Frobenius em Frankfurt am Main (Alemanha), tendo sido também editora de todas as publicações do Instituto durante trinta e cinco anos, esteve em Luanda a participar do IV Encontro sobre a História de Angola,  numa profícua iniciativa do Ministério angolano da Cultura, que decorreu no final do mês Agosto do corrente, foi a margem deste evento que o Semanário Angolense aproveitou a grata oportunidade para ouvir, os argumentos de razão à volta da sua obra intitulada « Angola nos séculos XVI e XVII» cuja edição em português já está disposição dos leitores de língua portuguesa Angola, estes e outros motivos, presidiram à conversa que o Semanário Angolense manteve com uma das mais respeitadas investigadoras da nossa história, no velho continente, eis a conversa.
             
  
Fonte: SA

Ela adoptou ritos e leis sanguinárias

SA- Dr.ª B. Heintze, que influência as identidades africanas podem ter nos processos de coesão nacional de Angola?

BH- Acho que podem ser muito importantes, porque Angola é uma nação muito jovem e, depois de muitas décadas de guerra, deve haver um sentido de unidade e de identidade nacional. As identidades africanas podem ajudar a consolidar essa unidade, mas espero que os angolanos tenham uma solidariedade não somente étnica. Porque, depois de muitos séculos de escravidão e de opressão, existe agora uma oportunidade para terem um futuro mais positivo e estarem mais unidos; as rigorosas distinções entre as etnias foram muitas vezes criadas só pelos colonialistas. Por exemplo, quando se lêem atentamente as obras de Henrique Dias de Carvalho vê-se que naquela altura as distinções entre os Lunda, os Chokwe e os Mbangala ainda eram bastante fluidas. As distinções étnicas não são muito importantes para uma nação, o que importa é que um grande Estado como Angola preserve também, neste mundo moderno, o essencial da sua diversidade cultural sem menosprezar as diferenças que vem da sua História. Mas para se formar uma “angolanidade” é preciso conhecer a sua própria história e cultura e não esquecer as suas riquezas culturais, incluindo as línguas angolanas, em que ainda faltam muitos dicionários e gramáticas. Quanto à cultura, a divisa talvez pudesse ser: unidade e solidariedade baseadas na diversidade histórica.

 

SA- Dr.ª B. Heintze, ao longo da sua comunicação fez várias vezes referência aos Mbangala. Parece-nos que eles tinham a característica de serem um povo guerreiro e combativo. O que nos pode dizer em função das suas pesquisas? 

BH- Há muito tempo, isto é nos séculos XVI e XVII, no princípio de sua formação, os Mbangala eram guerreiros, também estimulados pelo comércio dos escravos na costa atlântica. Tinham nessa altura uma ideologia guerreira com leis e ritos muito sanguinários; depois, por volta de 1630, fundaram o seu Estado e reino na baixa de Cassange, e depois não foram tão diferentes dos outros povos vizinhos. Tornaram-se agricultores e comerciantes afamados, misturaram-se com os outros povos, e tiveram uma posição estratégica perto do Kwango, entre os povos do Oeste e os do Leste deste rio. No século XVIII, ou mais tarde formava-se pouco a pouco, a Leste do Kwango, o grande Reino dos Lunda, denominado pelo grande historiador belga-americano Jan Vansina o “commonwealth lunda” (porque não foi um reino no sentido habitual). Então passou a haver de um lado do Kwango as regiões dominadas pelos Lunda, e do outro as regiões conquistadas ou fortemente influenciadas pelos portugueses. Por consequência, coube ao reino dos Mbangala no Kwango uma posição central entre o Oeste e o Leste deste rio. Os Mbangala conseguiam controlar todo o comércio que passava pelo seu país e impedir qualquer comunicação directa entre os Lunda e os portugueses até ao menos metade do século XIX.

 

SA- Qual era a semelhança que existia entre os Mbangala e os Lunda?

BH- São povos diferentes, têm uma língua e cultura diferente; os Mbangala falavam naquela altura um kimbundu um pouco diferente dos Mbundu à Oeste, no Ndongo; os Lunda falavam a língua lunda; embora ambas as línguas sejam línguas bantu, são bastante diferentes uma da outra. Mas havia também semelhanças entre estes povos. Por exemplo, em relação ao seu sistema de parentesco político, havia aquilo que os académicos chamam de “parentesco posicional” e “parentesco perpétuo”, que criaram uma rede ficcional de “parentesco” político no tempo e no espaço, um sistema que existe em toda esta região da África Central, e também entre os Mbangala, Chokwe e Lunda. O comércio de grande distância em que participaram primeiro os Mbangala e depois os luso-africanos (os chamados “Ambaquistas”), Chokwe e outros povos, criava também novas relações e conflitos entre os povos do interior do continente. No foco deste comércio distante, cada vez maior entre a costa atlântico e o interior, estava primeiro a exportação de escravos de um lado e a importação de têxteis e armas do outro; com o fim oficial do tráfico de escravos em 1836, procurou-se na costa cada vez mais o marfim, e mais tarde a borracha. Mas no interior da África Central os escravos continuaram de ser procurados ainda entre os africanos durante quase todo o século XIX. Os Mbangala compravam os escravos a leste do Kwango vendendo os homens aos portugueses e integrando as mulheres na sua própria sociedade. Estas relações intensas foram muito importantes. Penso que eles criaram a ideia de uma origem comum, e ajudavam, ao menos de vez em quando, a tornar as relações comerciais mais seguras.

 

SA- Dr.ª B. Heintze, o que é abordado neste seu livro sobre Angola nos séculos XVI e XVII?

BH- Este livro é o resultado de estudos feitos já há muito tempo e estou muito satisfeita por ter sido agora publicado aqui em Angola em português, porque sempre defendi a tese de que não valia a pena escrever sobre estes assuntos só em alemão; para mim o mais importante é dar a conhecer os meus trabalhos aqui em Angola. Quando eu comecei a estudar a História de Angola, fui a Portugal no fim do regime Salazarista. Naquela altura, era um grande tabu falar do tráfico português de escravos. Questionava: “Então não havia comércio de escravos em Angola?” Não era um assunto a discutir. Para mim que estudei na universidade dos anos sessenta uma Etnografia muito estática e sem historiografia documental crítica foi uma grande revelação poder encontrar no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa centenas de caixas cheias de documentos tratando do tráfico de escravos em Angola desde o século XVI. Por esta razão cresceu em mim a convicção de que não me seria possível continuar com a Etnografia de então. Eu deveria primeiro conhecer e estudar a História de Angola mais recuada através dos documentos existentes. Consegui receber bolsas para poder trabalhar nos arquivos de Lisboa e outros arquivos de Portugal, e conclui que não era possível escrever sobre as culturas actuais de Angola sem conhecer aquela História longínqua. Também aprendi que naquela altura quase todos os livros foram escritos do ponto de vista colonial; David Birmingham, Joseph Miller, eu e muito poucos outros investigadores fomos dos primeiros académicos na Europa e nos Estados Unidos, que tentamos escrever a História de Angola com base nas mesmas fontes, mas o mais possível do ponto de vista dos Africanos. Porque até então, as coisas só eram vistas na perspectiva dos colonizadores; foi por isso que tentei escrever sobre a escravatura e sobre a influência da Administração portuguesa em Angola, sobre a cultura material. Foi também muito importante terem sido publicadas, alguns anos mais tarde, aquelas imagens de pinturas feitas por Cardonega e Cavazzi, que foram as primeiras pinturas conhecidas do século XVII e que nos fornecem um conhecimento visualizado do mito do primeiro rei do Ndongo. Estas pinturas contêm também estes ornamentos muito interessantes e muito importantes que se encontram pintados sobre o trono e nos têxteis da corte do Ndongo, ornamentos que foram também encontrados no século XX, a Leste de Angola, nos desenhos ou ideogramas de areia (os sona) dos Chokwe, Luchazi e Ngangela, e que representam com as suas explicações toda uma filosofia, os valores centrais e uma grande parte do saber histórico destas sociedades, sendo contadas aos jovens aquando dos ritos de iniciação.

 

SA- As fontes em África, orais e até mesmo as escritas, têm sido um grande problema para os investigadores europeus na interpretação da História de África, pela falta de fontes escritas. Como é que conseguiu fazer a recolha de material para desenvolver este seu projecto de investigação?

BH- No tempo em que fui estudante ninguém trabalhava nos arquivos portugueses e o meu professor dizia-me que teríamos ir consultar os arquivos em Lisboa, ver o que existe sobre Angola e sobre a África Central em geral. Naquela altura, eu não sabia o que havia de encontrar. Na Alemanha por exemplo, ainda havia livros sobre a História do Reino do Congo escritos apenas com informações em alemão tiradas dos livros de exploradores em África, faltando toda a investigação e pesquisa dos documentos existentes nos arquivos. Havia ainda historiadores europeus que diziam que África era um continente sem História. Quando pude estudar esta grande quantidade de documentação em Lisboa, tive a certeza: Temos que escrever a história de Angola do ponto de vista dos africanos com estes documentos. Como naquela altura em Angola houve primeiro a guerra de independência e depois a guerra civil e como não sou uma pessoa muito prática e nunca tive uma saúde muito estável, uma pesquisa de campo não me foi possível. Mas em Portugal consegui descobrir muitas coisas novas, sobretudo um grande código em dois volumes do governador de Angola Fernão de Sousa (1624-1630). A partir daí escrevi uma reinterpretação da história do reino do Ndongo na primeira metade do século XVII. Para fazer aquele trabalho foi preciso fazer toda a transcrição difícil deste volumoso corpo de documentos. Depois de acabar com a minha investigação, pensei que seria pena de não publicar também essa fonte importantíssima para a História de Angola do século XVII, facilitando assim aos próprios angolanos e outros investigadores o seu uso. Não tive muitas esperanças de conseguir, mas finalmente encontrei uma casa editora mesmo na Alemanha que publicou essa fonte em dois volumes, em português (1985 e 1988)! Como essa publicação foi um grande sucesso, agora já está esgotada. Talvez seja possível um dia fazer uma reprodução facsimile (porque nesse tempo ainda não havia manuscrito digitalizado). Geralmente, na Alemanha de então, não havia muito interesse por Angola. Mas fui ter com a nossa casa editora que propôs dar vinte cópias dessa obra a Angola e a Embaixada de Angola em Berlim predispôs-se a garantir o seu transporte para Angola sem qualquer custo. Assim foi possível terem aqui esta fonte sobre os séculos XVI e XVII.

 

SA- Nesta sua obra, a senhora fala em Estado do Ndongo e não Reino do Ndongo porquê?

BH- O Reino foi um Estado e vice-versa. Pode-se utilizar os dois conceitos. Os relatos do governador Fernão de Sousa são muito importantes para a História do Ndongo – eu mesmo diria que é uma das mais importantes fontes da primeira metade do século XVII. Por isso acho que hoje não se pode escrever a história sem fazer uso desta fonte. As suas informações estão ligadas sobretudo ao começo da década de 1620, ou até mesmo antes. Porque ele relata também em pormenor a grande guerra contra o Ndongo começada por um dos governadores anteriores com a ajuda dos Jaga/Mbangala. O rei do Ndongo de então era o irmão da famosa rainha Njinga a Mbande, que sendo combatida pelos Portugueses teve de refugiar-se numa ilha do Kwanza; depois houve algumas tentativas de reconciliação, mas todos os governadores portugueses, incluindo o próprio Fernão de Sousa, não ousavam concluir o tratado discutido. Neste período a Njinga terá vindo duas vezes para Luanda como diplomata, para tratar desta paz e terá sido baptizada aí, em 1622, com o nome de Ana de Sousa. Penso que já naquela altura ela era uma personagem excepcional. Depois da morte do seu irmão, ela teria recebido as insígnias para as guardar, enquanto o filho do seu irmão era ainda pequeno demais para governar. Foi este o primeiro passo para ela ascender ao poder, visto que até então nunca houvera uma mulher a governar este reino. Mas Njinga foi muito ambiciosa e era possuidora de um grande talento diplomático na luta pela sua sobrevivência política. Sem escrúpulos, com dureza e crueldade conseguiu contrariar todos os condicionamentos de género e impor o seu direito ao cargo de governante. Juntou-se aos Jaga (mais tarde conhecidos como Mbangala), cujos ritos e leis sanguinários ela adoptou. Njinga não ficou com grande poder de armas, mas tinha influência bastante para se sempre impor de novo, não hesitando na escolha de seus meios. Todas as pessoas ao seu redor que eventualmente pudessem representar algum perigo, ela mandava matar. Tal como o seu irmão, também Njinga tentou fazer a paz com os portugueses, mas sem ter de se tornar vassalo deles. Naquela época, havia mudanças frequentes dos governadores portugueses, cada um deles prometendo um tratado de paz, que no entanto nunca foi realizado.

 

O problema da rainha Njinga foi que os portugueses tinham avançado um dos seus presídios mais a Leste, à Ambaca, que era muito próximo do centro de poder do Ndongo. Um dos pontos mais importantes do tratado previsto era que este presídio de Ambaca deveria ser retirado. Todos os governadores sucessivos concordaram que deveria ser assim, mas ninguém teve a coragem de o fazer. Porque para os portugueses, retroceder significava mostrar fraqueza, e por isso não aconteceu. Quando chegou Fernão de Sousa, ele também queria fazer paz para promover o comércio dos escravos. Ele foi um dos poucos governadores de Angola que teve um carácter integro; antes do seu mandato, havia muita corrupção no governo português em Angola e a escolha de Fernão de Sousa pela Coroa foi feita porque se estava à procura de uma pessoa integra. Mas este governador não ousava tomar decisões por si mesmo, sem consulta e parecer prévios da Coroa. Foi por isso que chamei a Fernão de Sousa o “cunctator” (hesitador). Como se sabe, o correio entre Angola e Portugal/Espanha levava nesta época muito tempo. Finalmente Fernão de Sousa convenceu-se de que não tinha alternativa senão instalar outro rei no Ndongo e fazê-lo vassalo português. Com a resistência de Njinga contra esse rei que ela e os seus julgavam ilegítimo, e com a paragem do comércio de escravos, Fernão de Sousa julgou poder começar “uma guerra justa” contra a Njinga. A rainha juntou-se com os Jaga/Mbangala para se salvar, primeiro com Casa Angola, depois com João Cassanje. Fernão de Sousa recebeu a notícia de que este último disse à Njinga: se ela queria juntar-se a ele havia de ser sem a sua lunga (que era um gongue grande e insígnia da guerra), que ele havia de governar e não haverá dois senhores no seu quilombo, e que ela havia de ser a sua mulher. – Após Njinga ter sido definitivamente expulsa pelos portugueses do seu reino ancestral do Ndongo, ela conquistou o Reino de Matamba junto ao Kwango e criou aí uma nova base para o seu domínio. Aliada aos Jaga/Mbangala ou aos holandeses constituiu depois, durante décadas, uma séria ameaça para os portugueses. Mas tal como para estes, o comércio de escravos serviu também para ela como base material e política do exercício do seu poder. Morreu em Matamba no ano de 1663, em paz com os portugueses e reconciliada com a fé católica. A rainha Njinga foi certamente a maior política da história de Angola e para os angolanos modernos, esta figura invulgar tornou-se um símbolo da resistência angolana contra o domínio colonial português. E assim parece que já faz parte da sua memória cultural.

 

SA- Temos a impressão que nesta sua obra, terá faltado uma fonte fundamental para um estudo sobre a história de África no geral e de Angola em particular, que é a fonte oral; até que ponto é que acha que seria importante incluí-la neste seu valioso estudo?

BH- Bem! Os dois grupos de fontes são igualmente importantes, mas têm qualidades diferentes e podem ser utilizadas de modos diferentes. Respondem a diferentes questões. Quando nós temos notícias escritas de fontes antigas, sabemos que são sempre feitas de uma perspectiva europeia e muitas vezes colonialista. Mas sem elas faltar-nos-iam muitos conhecimentos essenciais da História desta parte de África. Por outro lado, existem algumas informações nos documentos dos séculos XVI e XVII tiradas de tradições orais que são muito valiosas para nós. Mas muitas vezes trata-se de compilações sem informação sobre quem, quando e onde essas tradições foram relatadas. Como as tradições orais são adaptadas, com o decorrer do tempo, às necessidades e pontos de vista actuais, causam-nos grandes dificuldades de interpretação quando queremos saber alguma coisa exacta dos séculos passados, como tentei de mostrar no exemplo da História antiga dos Jaga/Mbangala (em 2007 na revista americana History in Africa). Mas apesar disso, é uma grande pena que as décadas de guerra em Angola tenham impedido a recolha profissional de tradições orais. No entanto sei que há agora tentativas de documentar tudo o que ainda existe.

 

Quero dar um pequeno exemplo. Em meados do século XIX foi registada uma tradição oral postulando entre outras coisas que o Jaga Cassanje teria encontrado Njinga em Luanda e que foi o Jaga que foi o protagonista de toda esta história envolvendo os três interveniêntes. No entanto, pelos documentos sabe-se que nenhum Jaga encontrou a rainha Njinga em Luanda. Esta informação oral não se deve tomar literalmente, mas ela pode exprimir simbolicamente uma vista africana desejada do passado e das relações entre os Jaga/Mbangala, Njinga e os Portugueses. Portanto tal interpretação não se pode generalizar, será sempre preciso de analisar todos os dados que temos. Por exemplo, é muito difícil para nós escrever a História dos séculos anteriores da Lunda, porque aí faltam os documentos antigos. Como já disse, creio que todos elementos de cada sociedade e cultura estão sujeitos a um processo permanente de mudança. Mudam como todos os elementos da nossa cultura e de nosso ambiente orgânico e inorgânico. Também mudam os sistemas de parentesco e as tradições orais. Só a escrita fixa e divulga, imprimindo-a, essa versão escolhida e muito especial para sempre. A minha convicção é muito contrária ao que se ensinava antigamente na universidade: Lembro-me que enquanto fui estudante, falava-se do “presente estático”, que dizia que a cultura dos chamados “naturais”, “indígenas” ou “primitivos” nunca mudava desde há meio milhão de anos, e que seria preciso esperar ainda inúmeros anos até que eles se tornarem “civilizados”.

 

Felizmente, já há algumas décadas que não mais se diz isto. Hoje sabe-se, por exemplo, que houve sociedades que mudaram em pouco tempo o seu sistema de parentesco patrilineal para um sistema matrilineal. Da mesma maneira entendemos hoje o universo (ao menos os académicos das ciências naturais), sabemos que este não foi sempre o que conhecemos agora. O nosso universo foi resultado do big bang, que ocorreu há milhões de anos antes de nós: depois houve sempre muitas transformações, houve mesmo mundos que desapareceram e outros que nasceram; as plantas que se desenvolveram e os animais, e nós, os homens, também; acho que é uma lei geral do nosso universo. Mas para mais uma vez responder à sua pergunta: Tal como os textos documentais, também as tradições orais constituem parte da nossa cultura e são importantíssimas para a investigação histórica e todas devem ser recolhidas onde ainda existem. Mas sem omitir as informações sobre o contexto especial de cada um. Podem ensinar-nos muitas coisas valiosas, entre elas, como um grupo de um certo tempo e lugar viu a sua História e as suas relações com os seus vizinhos. Por isso utilizei recentemente com grande ênfase as tradições orais dos Lunda, Chokwe e Mbangala, documentadas por Henrique Dias de Carvalho na Lunda, na década de 1880. O importante e excepcional do seu testemunho é que no seu tempo estas tradições não só faziam parte de entrevistas de investigação, mas eram ainda utilizadas na grande política interétnica para evitar conflitos armados.

 

SA- Nos últimos tempos quais têm sido os seus objectos de pesquisa?

BH- Agora, já estou reformada, já não tenho o apoio financeiro do meu Instituto, já não posso viajar tanto, mas acho que existem hoje muitos jovens com muito paciência, com possibilidade de fazerem pesquisas de campo e de arquivos. Espero que muitos deles venham a realizar projectos de M.A. e doutoramento nos arquivos de Angola que ainda esconde muitos tesouros a descobrir. Quanto a mim gostaria publicar uma versão portuguesa de dois manuscritos e vários artigos, num livro sobre a História da África-Centro Ocidental no século XIX, isto é, principalmente sobre a região a Leste do Kwango. Um outro projecto seria a edição dum grande manuscrito que foi oferta ao Instituto Frobenius: Trata-se do longo diário do militar e geógrafo alemão Alexander von Mechow acerca da sua expedição ao Kwango (1879-1881); ele foi aplaudido pelo seu mapa muito pormenorizado deste rio. Ficou entusiasmado com paisagem, mas infelizmente não se interessou muito pelos homens e suas culturas. Como já publiquei (em alemão) os escritos de dois outros exploradores alemães, de Max Buchner na Lunda (1878-1882) e de Alfred Schachtzabel na região dos Ngangela e Chokwe no Sudeste de Angola (1913-1914) – publiquei este último texto com notícias pessoais do espólio do autor e com as imagens dos objectos recolhidos por ele durante a sua expedição – talvez fosse também um projecto útil para os angolanos preparar uma versão portuguesa destes livros para uma futura publicação. Como as fontes sobre a História e Etnografia de Angola estão escritas em mais de oito línguas seria irrealista pensar que os investigadores angolanos devem e podem aprender todas estas línguas para conhecer estas fontes, mesmo quando parecem ser indispensáveis.

 

SA- Qual é o conselho que gostaria de dar aos novos investigadores angolanos?

BH- Há! Que façam o melhor que puderem, espero que possa haver bons professores e que mantenham o seu idealismo, porque acho que um dos grandes tesouros que tem este país são os jovens que se interessam pela História de Angola; estive alguns anos atrás em Luanda para dar umas palestras. Realizaram-se no período da tarde e eu perguntei aos estudantes como é que eles fazem a sua vida estudantil. Responderam-me que durante o dia trabalham para ganhar a vida e poder pagar a universidade e no final da tarde têm os cursos da Universidade, e a Universidade permite-lhes com estes cursos pós-laborais estudar: Isto impressionou-me muito, é fantástico, para quem conhece o trânsito em Luanda, em que é preciso perder-se muitas horas para chegar de um lado ao outro. Espero que este entusiasmo e interesse pela a História e cultura do seu país não se percam e que nunca faltem os meios para a investigação científica e a publicação das fontes e análises importantes!


* Cláudio Fortuna