Luanda  - O Tribunal Constitucional de Angola absolveu na última sexta-feira, 27, o réu António Manuel Gamboa Vieira Lopes, antigo delegado de Luanda do Serviço de Inteligência e Segurança de Estado, condenado em primeira e segunda instância, por autoria moral do crime de homicídio, de Alves Kamulingue (do célebre e triste Caso Cassule e Kamulingue), por, entre outros motivos, ausência de provas.

Fonte: OPais

Beyond the Reasonable Doubt (Para além da dúvida razoável)

O Tribunal Constitucional no acórdão 464/2017, além de mencionar uma série de erros e vícios processuais, que se destaca, a própria insuficiência na formação do corpo de delito (houve uma má instrução do processo), considerou, em síntese, quer o Tribunal Provincial de Luanda, quer o Tribunal Supremo, basearam a sua condenação ao réu António Viera Lopes em uma presunção de culpa, sem que, no processo, se fizesse a devida prova, de que o mesmo foi o “mandante” do crime de homicídio.


Por conseguinte, o Tribunal Constitucional entendeu (e bem) que estava errada a conclusão do Tribunal Provincial de Luanda e acolhida pelo Tribunal Supremo (que depois agravou a pena), que o facto dos réus António Vieira Lopes e António Mota (aquele que alegadamente recebeu a ordem para matar o infeliz), terem trocado vários telefonemas naquele dia fatídico e ter sido o primeiro a dar a missão de “acompanhamento” ao segundo, era prova suficiente e bastante para considera-lo como culpado da autoria moral, do crime de homicídio de Alves Kamulingue.


O Tribunal Constitucional analisado o processo, não encontrou nenhuma prova, material ou testemunhal relevante, que António Vieira “ordenou” que o infeliz fosse assassinado. Assim, a condenação foi baseada em uma (ilegal) presunção de culpa, violando, desta forma, o princípio da presunção de inocência, cuja consequência, pelas dúvidas evidentes que se mostraram no processo, passaria pela aplicação do in dúbio pro réu.


A violação do princípio da presunção de inocência é uma questão que ainda tem sido negligenciada em Angola e deve ser corrigida. É comum, em muitos processos judicias, alguns deles, mediáticos, os réus serem condenados, sem que, nos autos, se faça a devida prova dos crimes que os mesmos são acusados.
Parte-se, à partida, de uma presunção de culpabilidade do réu, tendo o mesmo que provar, muitas vezes, em juízo, a sua inocência, quando a Constituição e a lei obrigam que seja aquele que acusa (Ministério Público), a provar a culpabilidade.


Infelizmente, esta conduta de inversão do ónus da prova, algumas vezes, é “acolhida” tacitamente pelos Tribunais, e, em consequência, no final, ainda que haja indícios pouco sólidos e dúvidas razoáveis (resoanable doubt) ou relevantes (palavra usada pelo TC); ou por mera “presunção” ou mesmo “intuição” de culpa, acabam por condenar os réus. Viola-se assim, com base nestas “presunções” ou “intuições” de culpabilidade, um dos standards basilares do Direito Penal moderno, que as condenações devem ser baseadas em juízos de certeza, para além da dúvida razoável (beyond the resoanable doubt).


O Direito Processual Penal rege-se pelo princípio da verdade material (real). Os processos crimes têm de se basear nas provas que são produzidas e apenas devem ser submetidos em juízo, quando, com base nas mesmas, há um juízo de certeza que certo sujeito cometeu um crime. Se assim não for, existirá a insuficiência do corpo de delito e levará a nulidade do processo. Como ensinam TERESA BELEZA E FREDERICO PINTO “não existe um processo penal válido sem prova que o sustente, nem um processo penal legítimo sem respeito pelas garantias de defesa”.


Assim, entende-se, a partir da fórmula anglo-saxónica, beyond the resoanable doubt (para além da dúvida razoável), que estabelece que as condenações criminais devem ser baseadas em provas, que produzam um juízo de certeza, para além da dúvida razoável. A dúvida constitui uma dúvida real, baseada na razão, no senso comum (do homem médio ou razoável) e na imparcial apreciação de todas as evidências produzidas no caso. A dúvida tem de ser uma dúvida, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária.


Para estudiosos como JAMES Q. WHITMAN, a regra que as condenações criminais devem se basear em provas que geram um juízo de certeza, para além da dúvida razoável, é um dos pilares do Direto moderno. Para compreender o que é dúvida razoável e associarmos ao caso em análise, busquemos o ensinamento do italiano ORAZIO LONGO que afirma “…a dúvida razoável não é uma mera dúvida possível, tendo em vista que qualquer acto do ser humano conectado a um juízo moral, é aberto a dúvidas possíveis e imaginárias. A dúvida comum é aquela que após a formação de provas ainda deixa na mente do magistrado uma condição que não deve ser considerada como próxima a certeza moral e a firme convicção. O conceito de firme convicção pode ser compreendido como uma “certeza esmagadora”, e se constitui pela linha de diferença entre a dúvida razoável e aquela imaginaria e fantástica”.


Apesar de as condenações serem baseadas por lei em juízos de certeza, Michele Taruffo alerta que a certeza é um estado psicológico, estritamente subjetivo, que pode existir mesmo em relação a um facto absolutamente falso. Um juiz que condena ou que absolve porque tem certeza, sem correlacionar sua conclusão com a prova nos autos, comete arbitrariedade e não permite conhecer seus fundamentos, ou permite de forma precária, o que igualmente retira a legitimidade de sua decisão.


O princípio para além da dúvida razoável é hoje aceite como um pilar do Direito moderno. É comumente citado, a título de exemplo, na jurisprudência do Brasil (AP 521, Rel. Min. ROSA WEBER, Dje-025, pub. 06-02-2015) e Portugal (Acórdão do processo 443/12.7 da Relação de Guimarães). Trata-se, em respeito do princípio da presunção da inocência, de um standard que assegura que as pessoas não sejam condenadas por “presunções” ou “ilações”, sem que, no processo, haja prova de culpabilidade suficiente, para formar um juízo de certeza, para além da dúvida razoável, que certo sujeito cometeu um crime.


Por conseguinte, caberá ao julgador mostrar, para eventual condenação, que uma dúvida concreta (por exemplo, um álibi sustentado em defesa) está superada, ou de que se trata de uma dúvida abstrata, teórica ou desalinhada com o facto julgado. Existindo uma possibilidade de soluções alternativas, com diferentes explicações racionais e plausíveis, deverá aplicar-se (por força da presunção de inocência) a mais favorável para o acusado.


Como vemos, da análise do acórdão do Tribunal Constitucional, no caso Cassule e Kamulingue, podemos chegar à uma conclusão semelhante. Assim, sufragamos o entendimento que o facto dos réus António Vieira Lopes e António Mota (aquele que alegadamente recebeu a ordem para matar o infeliz), terem trocado vários telefonemas naquele fatídico dia e ter sido o primeiro a dar a missão de “acompanhamento” ao segundo, não era prova suficiente e bastante (para além da dúvida razoável) para considera-lo como culpado da autoria moral, do crime de homicídio de Alves Camulingue.


Não havendo gravações do conteúdo das conversas telefónicas ou não tendo, no processo, prova testemunhal directa (que só poderia ser dada pelo réu António Mota, que negou, em juízo, ter recebido de António Vieira Lopes, a “suposta” ordem para assassinarem Alves Kamulingue), que o réu António Vieira Lopes fora o mandante do crime, não é possível chegar a este juízo de certeza, que o mesmo foi o autor moral. Existem várias explicações possíveis sobre o alegado conteúdo das conversas e, manda o princípio da presunção de inocência, que seja aceite, desde que seja razoável, aquele que mais beneficia o réu.


Por conseguinte, entendemos, sem analisar neste artigo se o réu cometeu ou não o crime (que é competência dos Tribunais), que à luz das regras jurídicas constitucionais e processuais penais, que a decisão do Tribunal Constitucional foi acertada.

*Docente da Universidade Católica de Angola