Luanda - 1. Nota prévia. O Executivo angolano colocou em consulta pública seis Propostas de Lei referentes ao pacote legislativo autárquico, no âmbito do processo de implementação das Autarquias Locais em curso, nomeadamente a Proposta de Lei sobre a Institucionalização das Autarquias Locais, a Proposta de Lei Orgânica sobre as Eleições Autárquicas, a Proposta de Lei sobre a Transferência de Atribuições e Competências do Estado para as Autarquias Locais, a Proposta de Lei das Finanças Locais, a Proposta de Lei da Tutela Administrativa sobre as Autarquias Locais, a Proposta de Lei sobre a Organização e o Funcionamento das Autarquias Locais.

Fonte: Club-k.net

Ainda a propósito da implementação das Autarquias Locais em Angola

Sem prejuízo da bondade e oportunidade do quadro legislativo essencial das Autarquias Locais, que se mostra absolutamente essencial à sua implementação, a questão que me têm colocado nos corredores académicos onde tenho passado, em palestras e conferências, é saber como ficam as matérias ligadas às Instituições do Poder Tradicional. Colocando a questão de outro modo, os estudantes questionam o seguinte: Se a Constituição da República de Angola (adiante CRA) prevê a existência de três elementos do Poder Local (Autarquias Locais, Instituições do Poder Tradicional e Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos), porque é que o Executivo só está a dar relevância às questões respeitantes às Autarquias Locais? Se a CRA não estabelece hierarquia entre os referidos elementos do Poder Local, por que razão o Executivo dá primazia às Autarquias Locais, relegando as Instituições do Poder Local Tradicional para segundo plano? E mais: como fica a questão do terceiro elemento do Poder Local (Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos)?

Sendo uma matéria ligada ao Direito Público-Político, sinto-me à vontade para, publicamente, me pronunciar sobre a mesma, pois constitui o meu campo de investigação científica. Para o efeito, dividirei a minha comunicação em três momentos: num primeiro momento, farei o enquadramento histórico e constitucional do Poder Tradicional; num segundo momento, tratarei das duas

visões sobre o Poder Local no contexto angolano; e, num terceiro momento, deixarei as minhas conclusões e sugestões sobre o tema.

Delimitado o âmbito e lançadas as premissas, segurem-se bem, pois iniciaremos uma sempre apaixonante viagem pelo mundo do Direito Público- Político.

2. Poder tradicional na história

2.1. Período pré-colonial

No período anterior à colonização do território que hoje é Angola existiam vários reinos. Esta forma de organização política, fortemente centralizada na pessoa do Rei, era bastante sólida. Contudo, os soberanos dos reinos de Angola, apesar de constituírem o garante da paz e simbolizarem a unidade dos reinos, eram auxiliados por entidades locais desconcentradas. No reino do Congo, por exemplo, havia os manis, que, de forma desconcentrada e descentralizada, desenvolviam importantes funções administrativas de um dos maiores e mais emblemáticos reinos pré-coloniais. Por isso, é falsa a ideia de que nos reinos pré-coloniais não havia Poder Local, ou que estes se confundiam com o poder dos soberanos. Na verdade, estes reinos achavam-se com uma estrutura de tipo feudal, onde encontrávamos várias entidades, pequenos reinos ou sobados, a prestarem vassalagem aos grandes reinos.

Assim, a estrutura dos reinos no período que antecedeu a colonização oferecia um Poder Local fortemente marcado pela existência de “feudos”, “reinos (pequenos e fracos)” ou sobados, legitimados pela tradição e que exerciam poderes administrativos e culturais nas respectivas localidades.

Portanto, estamos diante de uma realidade que hoje designamos de “autoridade tradicional”, ou, no dizer de alguns autores, “instituições organizatórias tradicionais”, ou ainda “instituições tradicionais”.

3. Período Colonial

O período colonial em Angola durou cerca de quinhentos anos. Neste longo período de administração colonial, importa distinguir duas fases, de acordo com o regime jurídico.

3.1. Primeira fase da colonização – período absolutista

Há duas correntes de opinião para caracterização do Poder Local neste período (1482 a 1822): a primeira é a do juspublicista português Marcello Caetano, que considera que as instituições municipalizadas criadas nesse

período em algumas localidades do actual território de Angola eram uma “réplica” ou decalque do modelo de poder de carácter municipalizado em vigor nesse período em Portugal; a segunda corrente, defendida pelo juspublicista angolano Carlos Feijó, refuta os argumentos da primeira corrente, considerando que as municipalidades criadas nesse período tinham um carácter diverso das existentes na metrópole.

De facto, as municipalidades que foram criadas no dealbar da colonização não eram, de todo, semelhantes às suas congéneres existentes nesse período na capital portuguesa (também designada de “metrópole”). Em boa verdade, utilizavam-se as mesmas expressões (município, senado, câmara, cidade, vila, freguesia, etc.) que eram utilizadas na divisão e organização administrativa em Portugal, antes de este país anexar a colónia de Angola (tornando-a juridicamente uma colónia), todavia o significado era diferente. Por exemplo, como adverte Carlos Feijó, “as instituições municipalizadas não eram representativas das populações locais, até porque foram criadas para dar resposta a dois desígnios: a cooperação e a solidariedade, para fazer face às lutas e à necessidade de manter portugueses nos territórios ocupados”.

3.2 Segunda fase da colonização – período liberal

Importa dividir esta segunda fase do período colonial, tendo em conta o regime jurídico colonial, nas seguintes sub-fases:

i) Período de implementação dos Códigos Administrativos Coloniais (1820 a 1910). Assistiu-se, nesse período, à jurisdição da colonização portuguesa em Angola. A metrópole fez aprovar diversos códigos administrativos que vinculavam a então província de Angola. Esses Códigos, uns centralizados e outros descentralizados, uns uniformes e outros especializados, definiam juridicamente o modo de estar e a conduta das populações nas colónias ultramarinas;

ii) Período de consolidação dos Códigos Administrativos Coloniais (1911 a 1930). Com a instauração da República, em 1910, e a consequente conformação constitucional de 21 de Agosto de 1911, o modelo de especialização consagrado nos códigos administrativos passou a vigorar de facto nas colónias ultramarinas. O regime ou modelo de especialização é aquele que atende à particularidade de cada província ultramarina, ou seja, a administração portuguesa achava-se descentralizada e possuía leis que atendiam à especialidade das civilizações de cada província;

iii) Período de desenvolvimento dos Códigos Administrativos (1930 a 1972). Neste período, assistiu-se à aprovação de vários códigos coloniais que acentuaram a tendência de especialização da colonização portuguesa em Angola. Desde logo, em 1930, aprovou-se o Acto Colonial, pelo Decreto n.o 18570, de 8 de Julho; a Carta Orgânica do Império Colonial Português, pelo

Decreto n.o 23118, de 15 de Novembro de 1933; a Reforma Administrativa Ultramarina (RAU) foi aprovada pelo Decreto-lei n.o 23229. Para Carlos Feijó, “na RAU, é de destacar o enquadramento das chamadas ‘autoridades gentílicas’ e respectivas populações na administração colonial, segundo os usos e costumes locais. O enquadramento do poder tradicional acentua-se com a publicação, em 1954, do Estatuto dos Indígenas, que permitia a regulação, pelos usos e costumes locais, das relações (mesmo políticas e administrativas) entre os indígenas”. No período de 1960 a 1972, assistiu-se -- fruto das pressões internacionais contra o colonialismo em geral e o colonialismo português em particular, com incidência nos seus territórios coloniais ultramarinos -- à eliminação da ordem jurídica do hostilizado Estatuto do Indigenato pelo Decreto-lei n.o 43893, de 6 de Setembro, e a aprovação do Decreto n.o 43896, de 6 de Setembro de 1961, que, no dizer de Carlos Feijó, reconhece, por um lado, que “não era aconselhável impor a fórmula municipalista sem que se verificasse primeiro os pressupostos da sua implementação”, e, por outro lado, que “é necessário dar forma e expressão a certas formas do institucionalismo local que podem articular-se, com vantagem, no esquema geral da administração, com respeito manifesto pela tradição e pelos hábitos das populações”. Dito de outro modo: era urgente organizar as regedorias, “de forma a fazer participar os vizinhos na gestão dos interesses comuns, de acordo com processos tradicionais”. Já na última etapa do período colonial, assistiu-se à aprovação de duas importantes leis orgânicas do ultramar e estatuto político-administrativo, o primeiro em 1963 e o segundo em 1972, respectivamente, que, segundo alguns autores, “situava as províncias ultramarinas entre autarquias e Estado federado”.

4. Período monolítico

Este período tem o seu início com a independência de Angola, em 11 de Novembro de 1975, e termina em 1992, com a publicação da LC de 16 de Setembro.

Para análise do Poder Local nesse período da história recente de Angola, é aconselhável proceder à seguinte distinção: o Poder Local na Constituição e o Poder Local na lei. Passamos, pois, a escalpelizar cada um desses dois aspectos.

5. O Poder Local na Constituição (1975)

A Constituição de 1975 consagrava a criação de um Estado democrático de Direito que assentava, entre outros, no princípio da descentralização administrativa, no princípio da iniciativa local e na criação das autarquias locais. Este desiderato constitucional ficou, então, prejudicado pela opção pelo marxismo-leninismo, adoptado pela revisão constitucional ocorrida a 7 de Fevereiro de 1978. Como refere Carlos Feijó, “a teoria marxista-leninista sobre o Estado não admitia a existência de outra pessoa colectiva pública distinta do

Estado, muito menos territoriais ou autarquias locais”. Contudo, de acordo com os princípios e regras hermenêuticas constitucionais, as autarquias locais poderiam ser criadas com o referido quadro constitucional. Por outro lado, o princípio da iniciativa local permitia o reconhecimento do poder tradicional (autoridades tradicionais) e as outras formas de participação dos cidadãos. Portanto, a Constituição de 1975, mesmo com a revisão de 1975, não impedia a criação e o reconhecimento de um Poder Local em Angola.

O Poder Local na lei

Infelizmente, fruto do contexto marxista-leninista e da disciplina partidária baseada num sistema de partido único, o legislador ordinário ignorou o Poder Local. Discordamos, com respeito, de Carlos Feijó, quando considera que, no período monolítico ou revolucionário (como designa), se reduzia o Poder Local às comissões populares, ou quando afirma que “esta nova concepção de Poder Local assentava num sistema unitário centralista aparentemente binário, isto é, poder igual para assembleias populares (órgãos deliberativos) e comissariados (órgãos executivos)”. Em boa verdade, não se tratava de Poder Local. As assembleias populares (órgãos deliberativos) e os comissariados (órgãos executivos) não eram, summo rigore, órgãos do Poder Local. São, como a própria lei os designa, órgãos locais do Estado. O Poder Local não existia na legislação nesse período. A Lei dos Órgãos Locais do Estado a que faz referência não tratava do Poder Local, mas sim dos órgãos desconcentrados do Estado. Em rigor, aquela Lei não visava regular ou definir o regime jurídico do Poder Local. A Lei n.o 7181, de 4 de Setembro (LOLE), tinha o único propósito, dentro da filosofia marxista-leninista seguida pelo partido único, de estabelecer o quadro jurídico dos órgãos locais do Estado.

6. Período democrático

Vários foram os acontecimentos que influenciaram as alterações constitucionais ocorridas em 1991 e 1992. Podemos, desde já, recensear os acontecimentos seguintes:

i) A alteração do sistema de direcção centralizada da economia em Angola (1985);

ii) O fim do sistema socialista em Angola (1987);

iii) Os acordos tripartidos de Nova Iorque, que puseram fim à invasão do território angolano (1988);

iiii) A queda do muro de Berlim e o fim da Guerra Fria (1989); v) Os acordos de Bicesse (1991).

A revisão constitucional ocorrida em 1991 não trouxe nada de novo no que toca ao Poder Local. Por seu turno, todavia, a revisão constitucional de 1992 criou as bases constitucionais do Poder Local que vamos, de seguida, analisar.

Em primeiro lugar, a LC de 1992 não fez o enquadramento mais adequado do Poder Local. Começando pelo capítulo referente ao Poder Local, observamos, desde logo, um desfasamento entre a epígrafe do capítulo e o conteúdo do mesmo. Se o capítulo é dedicado ao Poder Local, não se deveria tratar, como faz a Constituição, nos artigos 145.o e 148.o, de matérias ligadas aos órgãos locais do Estado. Em segundo lugar, “a formulação do artigo 145.o não parece feliz, por sugerir um enquadramento das autarquias locais no Estado. Na verdade, elas (autarquias) não são Estado, embora disponham de poderes públicos. São, sim, pessoas colectivas públicas distintas do Estado”. Em terceiro lugar, contrariamente ao que Carlos Feijó classifica de “dupla ideologia do Poder Local”, consideramos ser um erro do legislador constitucional o facto de que este, como ressalva adiante Carlos Feijó, “erradamente, entende o Poder Local como compreendendo as autarquias locais e os órgãos administrativos locais”. De facto, o legislador constitucional errou quando colocou no mesmo “balaio” as autarquias locais e os órgãos locais do Estado. Na verdade, entre estas duas figuras jurídicas há diferenças substanciais. As autarquias locais são pessoas colectivas públicas que resultam de dois princípios constitucionais, nomeadamente: o princípio da descentralização administrativa e o princípio da autonomia local; já os órgãos administrativos locais são estruturas locais da pessoa colectiva Estado e resultam do princípio constitucional de desconcentração administrativa (ou desconcentração de poderes). Portanto, não há que confundir: as autarquias locais são pessoas colectivas, e os órgãos locais do Estado são “órgãos”. Da mesma forma, não se deve confundir a administração local do Estado, que, a nosso ver, deveria ter um capítulo próprio na LC, com a administração local autárquica. A primeira é exercida pelos órgãos locais do Estado, designadamente pelo Governador Provincial, nos termos do artigo 148.o da LC, e pelos demais órgãos e estruturas administrativas estabelecidas nos termos da lei (administradores municipais e comunais, etc.); a segunda é exercida pelos órgãos autárquicos que serão criados nos termos da lei específica. Entretanto, importa ainda dizer que os órgãos locais do Estado são nomeados e os órgãos autárquicos serão providos por eleições.

Por outro lado, um dos aspectos referentes ao tratamento constitucional do Poder Local que tem feito correr rios de tinta, por não estar suficientemente tratado na LC, é a problemática da divisão administrativa para efeitos das autarquias locais. O texto constitucional (artigo 55.o) deixou ao critério do legislador ordinário a definição do espaço territorial para efeito das autarquias locais. Do mesmo modo que deixou ao critério do legislador ordinário o nível territorial para efeitos de “acomodação” dos órgãos locais do Estado, também a LC não fixa o “assentamento” territorial das autarquias locais. Assim, a divisão administrativa, para efeitos das autarquias locais, será definida na Lei-quadro do regime jurídico autárquico.

7. O Poder Local e o processo constituinte

Depois da revisão constitucional ocorrida em 1992, da qual resultou a aprovação da Lei n.o 23192, de 16 de Setembro, da LC, houve pelo menos dois processos constituintes (inconclusivos), cujas comissões constitucionais, encarregadas de procederem aos trabalhos preparatórios de revisão constitucional, aprovaram, em matéria atinente ao Poder Local, os seguintes princípios:

i) O princípio da autonomia local;

ii) O princípio da descentralização administrativa;

iii) O princípio da desconcentração administrativa;

iiii) O princípio da descentralização e desconcentração financeira;

v) O princípio do Estado unitário;

vi) O princípio do exercício harmonioso do poder e a promoção e consolidação da unidade nacional;

vii) O princípio da eleição por sufrágio universal, livre, directo, secreto, igual e periódico dos órgãos representativos do Poder Local.

Parece não haver grandes divergências na doutrina angolana quanto à definição do Poder Local com base nestes princípios. Contudo, a nível político, dá-nos notícia Carlos Feijó que “as discussões, na comissão constitucional, acentuaram demasiado o aspecto político, em detrimento do rigor técnico- jurídico. O problema quase que se reconduziu à eleição ou não dos Governadores Provinciais”. E mais: durante a discussão, ainda segundo Carlos Feijó, “da matéria atinente ao Poder Local em particular, assistiu-se a um interessante debate sobre a descentralização. Uns defendiam uma efectiva autonomia política, administrativa e financeira das unidades político- administrativas (províncias e Estado) no âmbito de uma real descentralização e desconcentração do poder”. Outros defendiam “a autonomia local, a descentralização e a desconcentração administrativas, no quadro de um Estado unitário e da promoção e consolidação da unidade nacional”. Na verdade, conclui Carlos Feijó, “estava em questão saber se se optava por uma autonomia e uma descentralização política, ou apenas por uma autonomia e uma descentralização administrativa, e, em última instância, por um Estado federal ou unitário”.

8. O Poder Local na Constituição da República de Angola de 2010

O Poder Local vem consagrado no Título VI da CRA, que contempla três Capítulos. O Capítulo I, referente aos Princípios Gerais, fala sobre órgãos autónomos do Poder Local. O artigo 213.o dispõe que "a organização democrática do Estado a nível local estrutura-se com base no princípio da descentralização político-administrativa, que compreende a existência de formas organizativas do Poder Local, nos termos da presente Constituição”. No n.o 2 dispõe que "as formas organizativas do Poder Local compreendem as Autarquias Locais, as instituições do poder tradicional e outras modalidades específicas de participação dos cidadãos, nos termos da lei”. Como se vê, a Constituição opera com um conceito de Poder Local abrangente, que compreende a existência de três elementos ou formas organizativas, nomeadamente as Autarquias Locais, as Instituições do Poder Tradicional e Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos.

8.1. Origem do conceito de Poder Local consagrado na Constituição de 2010

É da autoria do Professor Virgílio de Fontes Pereira o conceito alargado de Poder Local, consagrado na nossa Constituição, vertida na sua tese de mestrado intitulada “O Poder Local: da Imprecisão Conceptual à Certeza da sua Evolução” (obra nunca publicada, mas defendida em Portugal, em 1998). Mais tarde, um outro autor angolano, o Professor Doutor Carlos Feijó, não só acompanhou o pensamento de Virgílio de Fontes Pereira, como desenvolveu este conceito, na sua tese de mestrado intitulada “Autonomia das Autarquias Locais e a Tutela do Estado em Angola -- da Autonomia Perdida nos Períodos Colonial e Revolucionário (1482-1992) à Autonomia Frustrada no Período Democrático Actual”, obra trazida a público pela Editora Mayamba, em 2017. Carlos Feijó, como Coordenador da Comissão Técnica encarregada da elaboração da Constituição de 2010, introduziu, na ordem jurídica, a ideia do triunvirato do Poder Local em Angola. Em boa verdade, estes autores partiram da realidade sociopolítica angolana para construírem um conceito de Poder Local que não tem paralelo na doutrina, nem no Direito comparado. Na esparsa doutrina e nos ordenamentos jurídicos de outros países, não encontramos um conceito que abarque as três vertentes do Poder Local consagrados na nossa Constituição. Esses pensadores angolanos não só criaram um conceito novo e alargado de Poder Local, como introduziram o mesmo no nosso ordenamento jurídico, mediante a sua consagração na Constituição de 2010. Se no plano teórico e jurídico-formal temos uma tripla ideia do Poder Local, na realidade, o Poder Local ainda não está institucionalizado.

De seguida, vamos analisar sucintamente os três elementos do Poder Local propostos pelos citados autores (Virgílio de Fontes Pereira e Carlos Feijó), perfilhados por nós e acolhidos na nossa Constituição.

8.1.1. Lei Orgânica do Poder Local

A Assembleia Nacional aprovou, no final da legislatura passada, a Lei n.o 15/17, de 8 de Agosto, a Lei Orgânica do Poder Local. Esta lei, que vem estabelecer os princípios gerais que informam o Poder Local em Angola, é um diploma generalista, confuso, e pouco acrescenta à definição do quadro normativo da visão tripla do Poder Local consagrado na CRA. A referida Lei elenca uma dúzia de princípios que os três elementos do Poder Local devem observar, sem distinguir a variação da aplicação nos mesmos. Por exemplo, o n.o 4 do artigo 33.o da Lei Orgânica do Poder Local dispõe que as instituições do poder tradicional e demais modalidades específicas de participação dos cidadãos também estarão sujeitas à tutela administrativa. Essa solução, que não tem respaldo constitucional, afigura-se duvidosa, perguntando-nos se não levará à desvirtualização de elementos do Poder Local, nomeadamente das instituições do poder tradicional. Qual será o tipo de tutela que exercerá o Titular do Poder Executivo sobre as Instituições do Poder Tradicional (tutela de legalidade ou tutela de mérito)? E mais: qual o sentido e alcance da tutela administrativa consagrada no n.o 3 do artigo 33.o da Lei Orgânica do Poder Local? O diploma em análise não responde. Julgamos que aqui andou mal o legislador ordinário, que confunde as Instituições do Poder Tradicional com as Autarquias Locais e Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos. Em rigor, as Instituições do Poder Tradicional não são meras entidades administrativas, são entidades pré-estaduais, que se regem na base do Direito Costumeiro. Por isso, não é admissível que uma entidade administrativa (o Titular do Poder Executivo) intervenha nas regras do Direito Costumeiro, nem sequer para fiscalizar a conformidade dos actos das Autoridades Tradicionais com as regras do Direito Costumeiro. Dito de outro modo, estando as Instituições do Poder Tradicional e o respectivo Direito Costumeiro reconhecidos (catalogados, sistematizados), somente os tribunais devem ter competência para sindicar esta realidade administrativa (e o respectivo Direito Costumeiro). No fundo, o que queremos dizer é que, num Estado Democrático de Direito, que reconhece a existência da pluralidade jurídica (Direito Estadual e Direito Costumeiro), só os tribunais possuem condições para poder aferir a observância não só do que se passa em cada esfera dos respectivos Direitos em vigor no sistema jurídico, como fiscalizar a interacção entre as Instituições do Poder Tradicional e as entidades que actuam na base do Direito Estadual, designadamente o Estado, as Autarquias Locais, e Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos.

Assim, se algum “súbdito” quiser contestar a violação de uma regra do Direito Costumeiro por um acto praticado por uma autoridade tradicional, não deve ser o Presidente da República a intervir neste diferendo, mas sim os órgãos judiciais. Pensamos que a consagração da tutela administrativa na Lei Orgânica do Poder Local é um crime “lesa-pátria” e é uma medida que não tem acolhimento constitucional e vai contra os princípios mais profundos do Estado Democrático e de Direito que pretendemos construir em Angola.

A Lei Orgânica do Poder Local, que parece ter sido elaborada e aprovada à pressa, para além da incongruência dos princípios nela consagrados (um dos quais exemplificámos), ficou muito aquém do que deveria consagrar. Por exemplo, esperávamos que a Lei Orgânica do Poder Local viesse responder e desenvolver algumas questões que não estão suficientemente tratadas na

Constituição, em matérias relativas ao Poder Local. A Lei Orgânica não define o conceito de Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos, limitando-se a dar como exemplo desse importante elemento do Poder Local as Associações de Moradores (artigo 39.o). Este diploma legal não desenvolve o modo de implementação do Poder Local de forma sistematizada, o que evitaria a sobreposição de um dos seus elementos relativamente aos outros; de tal sorte que hoje assistimos à priorização da institucionalização das Autarquias Locais em detrimento dos outros elementos do Poder Local (Instituições do Poder Tradicional e Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos). Esta medida, vertida na Lei, é também uma das manifestações da visão monolítica do Poder Local que o Estado (Executivo e Assembleia Nacional) tem e que só lhes permite ver "a árvore e não a floresta". Sugerimos, portanto, que a Lei seja revista e que contemple as seguintes soluções:

a) Estabelecer o princípio da institucionalização simultânea e sistematizada dos três elementos do Poder Local;

b) Catalogar os princípios de acordo com a natureza de cada elemento do Poder Local;

c) Definir os três elementos do Poder Local;

d) Estabelecer as bases para a consagração da Lei Quadro do reconhecimento das Instituições do Poder Tradicional e do Direito Costumeiro (catalogado e sistematizado de acordo com cada comunidade);

e) Fixar os princípios e regras fundamentais para o reconhecimento das Instituições do Poder Tradicional e do respectivo Direito Costumeiro;

f) Estabelecer o princípio da judicialização do controlo das Instituições do Poder Tradicional e do Direito Costumeiro;

g) Institucionalizar o Poder Local tendo em conta a demografia e o desenvolvimento socioeconómico das regiões do país;

h) Definir ou redefinir as circunscrições administrativas para efeitos da institucionalização do Poder Local.

8.1.2. Autarquias Locais

A CRA avança o conceito de Autarquias Locais, que é mais ou menos consensual na doutrina por nós seguida. Nos termos do artigo 17.o da CRA, “as autarquias locais são pessoas colectivas territoriais correspondentes ao conjunto de residentes em certas circunscrições do território nacional, que asseguram a prossecução de interesses específicos resultantes da vizinhança, mediante órgãos próprios representativos das respectivas populações”. Não é aqui a sede própria para teorizarmos sobre as autarquias locais, até porque o pacote legislativo que vai institucionalizar as autarquias em Angola está em consulta pública. Vale, por isso, o conceito aqui avançado.

8.1.3. As Instituições do Poder Tradicional

A CRA adoptou a designação “Instituições do Poder Tradicional” em detrimento da designação “autoridades tradicionais”, que, antes de 2010, era a mais usada no léxico político e jurídico angolano. Na base dessa alteração está a ideia de que “instituições do poder tradicional” é um conceito mais amplo do que “autoridade tradicional". Entendia-se por “autoridade tradicional”, ou ainda “poder tradicional”, segundo Virgílio de Fontes Pereira, “o poder exercido no seio da organização político-comunitária tradicional, através de autoridades designadas, de acordo com os valores e normas consuetudinárias locais, visando a satisfação dos interesses (próprios) específicos, definidos no seio do agregado populacional baseado no território da comunidade". Como se vê, o poder tradicional é um poder pré-estadual, isto é, existia antes do aparecimento do Estado angolano (e mesmo antes do Estado colonial português), e, por isso, não surge de criação legislativa, mas é operacionalizado no ordenamento jurídico mediante um reconhecimento adequado previsto pela Constituição (artigo 223.o e seguintes da CRA).

8.1.3.1 Dados estatísticos para efeitos de reconhecimento

Desde a independência de Angola e até aos dias de hoje, o número de Autoridades Tradicionais em Angola tem aumentado de forma vertiginosa e assustadora. Sendo uma realidade pré-estadual, não faz sentido que elas se multipliquem de forma exponencial, com se estivesse a seguir o nosso crescimento demográfico. Segundo Carlos Feijó (obra citada), à data da independência estavam registadas 15.000 Autoridades Tradicionais, e a organização dos clãs em Angola comportava entre 200 a 300 pessoas, submetidas à liderança da respectiva Autoridade Tradicional. Ainda segundo Carlos Feijó, à data da elaboração da sua tese de mestrado (1999), existiam em Angola 25.000 Autoridades Tradicionais registadas. Actualmente, segundo a Direcção Nacional das Comunidades e Instituições do Poder Tradicional do Ministério da Cultura, estão registadas pelo Estado angolano cerca de 40.000 Autoridades Tradicionais. Estes números astronómicos revelam o descontrolo por parte do Estado, que permitiu o surgimento de muitas entidades que, em rigor, não se enquadram no conceito de Instituições de Poder Tradicional defendido na doutrina angolana.

Como se vê, há a necessidade de o Estado definir em lei e estabelecer os requisitos para o reconhecimento adequado, nos termos da CRA, não só das Instituições do Poder Tradicional, como dos respectivos direitos costumeiros.

8.1.3.2. Reconhecimento


Em Angola, nem no período colonial, nem no período pós-independência, nem

mesmo nos dias de hoje se procedeu a um verdadeiro reconhecimento das Instituições do Poder Tradicional e respectivos direitos costumeiros. É indissociável o reconhecimento das Instituições do Poder Tradicional dos respectivos direitos costumeiros. Daí que o reconhecimento consagrado no Capítulo III, do Título IV, do Poder Local (artigo 223.o e seguintes) da Constituição deva ser feito por uma Lei de Bases ou Lei-quadro de que devem constar, dentre outras, as seguintes matérias:

a) Definição do Poder Local;

b) Papel das Instituições do Poder Tradicional;

c) Conceito do reconhecimento do Poder Tradicional e do Direito Costumeiro;

d) Requisitos para o reconhecimento das Instituições do Poder Tradicional e do Direito Costumeiro;

e) Mecanismo de relação entre as Instituições do Poder Tradicional, Estado e outras entidades públicas, com relevância para as Autarquias Locais e Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos.

No fundo, o reconhecimento será o acto (ou procedimento) que permitirá a operacionalização na ordem jurídica angolana do Direito Costumeiro e transformará as Instituições do Poder Tradicional em verdadeiras instituições públicas.

8.1.4. Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos

Este terceiro elemento do Poder Local, consagrado constitucionalmente, não é desenvolvido nem na Constituição nem na doutrina angolana. Se os dois elementos anteriormente citados do Poder Local (Autarquias Locais e Instituições do Poder Tradicional) mereceram Capítulos e artigos na Constituição, as Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos tiveram apenas uma referência no n.o 2 do artigo 213.o da Constituição.

Apesar de ser “um elemento pobre” do Poder Local, e não havendo hierarquia na Constituição entre os três elementos do Poder Local, é necessário que o legislador ordinário densifique, em Lei, o sentido e o alcance deste instituto constitucional.

Quanto a nós, resta-nos, na senda dos seus criadores, dar pistas do que significam, na verdade, Outras modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos. Entendemos que Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos são pessoas colectivas de fins específicos, criadas pelas populações em determinadas circunscrições administrativas, de carácter associativo ou cooperativo, que visam a prossecução de interesses dos seus associados. São os casos das cooperativas regionais ou locais, as ONG locais, associações de moradores (nos termos da Lei Orgânica do Poder Local), entre outras. Não tendo ainda um quadro legislativo que defina o sentido e alcance deste instituto jurídico, lançamos aqui um repto ao legislador para que, no quadro da implementação do Poder Local em curso, se concretize este desiderato constitucional.

9. As acepções do Poder Local em Angola

Em Angola existem fundamentalmente duas correntes de opinião sobre o Poder Local. A primeira, que defende uma visão tripla do Poder Local (Autarquias Locais, Instituições do Poder Tradicional e Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos), defendida pelos autores Virgílio de Fontes Pereira, Carlos Feijó e Lazarino Poulson, que foi acolhida na Constituição de 2010; e outra corrente, que tem uma visão monolítica do Poder Local, que é defendida pelo Executivo angolano, no quadro da implementação das Autarquias Locais em curso.

9.1. Visão tripla do Poder Local

Segundo os autores Virgílio de Fontes Pereira, Carlos Feijó e Lazarino Poulson, o Poder Local em Angola compreende a existência de três elementos (ou formas organizativas), designadamente as Autarquias Locais, as Autoridades Tradicionais e Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos. No quadro da construção do Estado Democrático e de Direito em Angola, o Poder Local resulta do princípio da autonomia local, que atende dois pressupostos:

- Reconhecimento de uma realidade pré-estadual que goza de autonomia, fundamentada no Direito Costumeiro, que ainda persiste em Angola;
- Criação ex novo de entidades que permitirão às populações a sua auto- governação e auto-regulação dos seus interesses específicos, mediante a criação das Autarquias Locais e Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos.

No quadro do reconhecimento das Instituições do Poder Tradicional, há dois aspectos importantes a destacar:

- Reconhecimento das entidades propriamente ditas (Reis, Sobas, Seculos, entre outras categorias de autoridades tradicionais);

- Reconhecimento do Direito Costumeiro ou Consuetudinário (os usos e costumes e a nossas tradições, entre os vários povos de Angola, no que concerne ao Direito da Família, Sucessório, Fundiário, entre outros).

O Estado deve fazer um diagnóstico e um estudo aprofundado dos vários direitos costumeiros, correspondentes às várias etnias e povos de Angola, e fazer corresponder as Instituições do Poder Tradicional aos respectivos direitos. Por exemplo, ficaríamos a saber que o Rei Ekwikwi do Bailundo (uma instituição do poder tradicional) corresponde ao Direito Costumeiro do Bailundo, com regras específicas previamente sistematizadas e reconhecidas pelo Estado angolano. Haveria, portanto, uma sistematização do Direito Costumeiro reconhecida secundum legem, nos termos da CRA. Sugere-se, portanto, que a Assembleia Nacional aprove uma Lei-quadro ou uma Lei de Bases de reconhecimento do Direito Costumeiro e das Instituições do Poder Tradicional. Esta corrente defende ainda que os três elementos do Poder Local devem ser criados e reconhecidos num processo sistematizado, de modo a que haja uma coexistência pacífica entre os mesmos. Por exemplo, a implementação em velocidades distintas das autarquias locais e do reconhecimento adequado das instituições do poder tradicional é susceptível de criar conflitos positivos e negativos entre estes dois elementos do Poder Local, ou, quando não, levarão à confusão e mesmo à marginalização de um pelo outro, como o que ocorre, por exemplo, em Moçambique, onde a implementação das autarquias locais relegou para segundo plano as instituições do poder tradicional. Por esta razão, esta corrente defende a simultaneidade da conformação tripla do Poder Local em Angola, criando um quadro jurídico sistematizado e harmonizado dos três elementos do Poder Local.

9.2. Visão monolítica do Poder Local

Esta corrente, que não tem autores doutrinários, tem sido seguida pelo Estado angolano (Executivo) no processo de implementação das Autarquias Locais em curso. O Conselho da República deliberou, indicando o ano de 2020 como sendo o período para a realização das primeiras eleições autárquicas em Angola, marcando, desse modo, o início da institucionalização deste importante elemento do Poder Local. Desde o dia 1 de Junho do corrente ano, o Executivo angolano, através do Ministério da Administração do Território e Reforma do Estado, colocou sob consulta pública seis diplomas que constituem o pacote legislativo essencial para a institucionalização das autarquias locais. Esta corrente dá maior relevância às Autarquias Locais, em detrimento dos outros dois elementos do Poder Local, nomeadamente das Instituições do Poder Tradicional e de Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos.

O Estado ainda não definiu um quadro legislativo para a implementação harmoniosa dos três elementos do Poder Local. Desse modo, à velocidade que está a efectuar a institucionalização das autarquias locais, vai deixar para trás os outros dois elementos do Poder Local, podendo provocar acidentes graves e ferir de morte importantes activos da autonomia local.

A construção teórica da tripla vertente do Poder Local, criada por autores angolanos e acolhida pelo legislador constituinte, não é uma mera utopia, pois a realidade tem demonstrado que tanto as Instituições do Poder Tradicional como as Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos estão vivas e se fazem presentes. O que falta aqui é uma definição clara do papel de cada um desses elementos do Poder Local e um tratamento adequado a nível legislativo e procedimental do Estado para com estas entidades.

Sem prejuízo do tratamento que o Ministério da Cultura pode dar às Instituições do Poder Tradicional, a transferência de parte das matérias ligadas ao Poder Tradicional do Ministério da Administração do Território e da Reforma do Estado para o Ministério da Cultura revela uma incompreensão do Executivo relativamente a estas matérias. Essa bifurcação do Poder Tradicional em dois departamentos governativos e o acelerar das tarefas da implementação das Autarquias Locais sem uma definição clara do quadro normativo das Instituições do Poder Tradicional revela bem o carácter monolítico da visão estadual. Não é grave que seja o Ministério da Cultura a cuidar de matérias ligadas ao Poder Tradicional, como ocorre em muitos países africanos. Preocupante é o destaque que uma e outra matéria merecem na agenda política do Executivo e da Assembleia Nacional. A sobreposição das Autarquias sobre as Instituições do Poder Tradicional é pública e notória e o silêncio sobre Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos é “gritante”. Por exemplo, coloca-se, hoje, a questão respeitante ao facto de uma Autoridade Tradicional – um Soba – poder, ou não, concorrer a um cargo numa Autarquia Local. O Projecto de Lei Orgânica sobre as Eleições Autárquicas sob consulta pública não impede que um Soba ou outra Instituição do Poder Tradicional (Autoridade Tradicional) possa concorrer a um cargo na Autarquia. Achamos que este é um exemplo flagrante da incompreensão do Executivo sobre o sentido e alcance do conceito constitucional de Poder Local. Se partimos do princípio que as Autarquias Locais são um Poder Local paralelo ao Poder Tradicional, logo deve haver incompatibilidade entre eles. O Soba, por exemplo, se for eleito Presidente de uma Câmara Municipal, por qual dos Direitos se vai ele reger: pelo Direito Estadual ou pelo Direito Costumeiro? Terá, obrigatoriamente, de observar as normas estaduais que regem o funcionamento das Autarquias Locais. Mas, estando ele a exercer uma função pública com base no Direito Estadual, pode pôr em risco a sua autoridade na comunidade tradicional que representa. Aqui prevalece a máxima secular: "Os Reis reinam, mas não governam”. A possibilidade de uma Autoridade Tradicional exercer funções nas autarquias ou mesmo noutra entidade pública põe em risco a sua autoridade perante a sua comunidade tradicional. Os insucessos de governação, o escrutínio público, a possibilidade de serem caricaturados, de serem contrariados no debate político, atentam contra o prestígio de um soberano ou de uma autoridade que se reja com base no Direito Costumeiro. O prestígio e o poder de uma Autoridade Tradicional é aferido pelas regras do Direito Costumeiro e somente por elas. Daí que estes devam exercer em exclusividade a sua função nas comunidades que representam, sem prejuízo de auxiliarem o Estado e outras entidades públicas em tarefas específicas, que não ponham em causa o seu papel de Autoridade Tradicional.

10. Conclusão

Aqui trazidos, depois desta longa, mas gratificante, viagem pelo mundo do Direito Público-Político, resta-nos tão-somente concluir, respondendo à questão colocada ab initio: Se a Constituição da República de Angola prevê a existência de três elementos do Poder Local (Autarquias Locais, Instituições do Poder Tradicional e Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos), porque é que o Executivo só está a dar relevância às questões respeitantes às Autarquias Locais?

Há duas correntes de opinião sobre o Poder Local em Angola. Uma que tem uma visão tripla do Poder Local e outra que tem uma visão monolítica. O Executivo tem uma visão monolítica do Poder Local no quadro de implementação das Autarquias Locais em curso, em detrimento dos outros dois elementos do Poder Local, nomeadamente as Instituições do Poder Tradicional e Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos. Não acompanhamos a visão do Executivo e perfilhamos a visão de que o Poder Local é um triunvirato que deve ter um quadro legislativo claro, sistematizado e harmonioso, de forma a evitar conflitos, confusão e até marginalização de um dos seus elementos.

11. Sugestões

Ao Estado angolano sugerimos:

- A criação de um quadro sistematizado do Poder Local, que contemple os seus três elementos:

a) Autarquias Locais (Proposta de Lei sobre a Institucionalização das Autarquias Locais, Proposta de Lei Orgânica sobre as Eleições Autárquicas, Proposta de Lei sobre a Transferência de Atribuições e Competências do Estado para as Autarquias Locais, Proposta de Lei das Finanças Locais, Proposta de Lei da Tutela Administrativa sobre as Autarquias Locais, Proposta de Lei sobre a Organização e o Funcionamento das Autarquias Locais; outra legislação complementar);

b) Instituições do Poder Tradicional (Lei-quadro ou de Bases para o reconhecimento do Poder Tradicional; Lei de Bases para o Reconhecimento do Direito Costumeiro ou Consuetudinário; e demais leis complementares);

c) Lei de Bases das Outras Modalidades Específicas de Participação dos Cidadãos e demais leis complementares.

- A criação do quadro legislativo dos três elementos do Poder Local deve ser feito em simultâneo, para haver harmonização e coexistência pacífica entre os mesmos, embora a sua implementação possa ser gradual.

Tudo isso só é possível, Se Pensar Direito!

BIBLIOGRAFIA
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- Curso de Direito Administrativo, vol. 1, 2.a edição, Coimbra: Almedina, 2005. ALEXANDRINO, José Melo

- “O Poder Local na Constituição de Angola: os princípios fundamentais”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2010.

FEIJÓ, Carlos

- A Autonomia Local e a Organização do Poder Territorial em Angola, Luanda: Casa das Ideias, 2013.

- Tese de mestrado intitulada “Autonomia das Autarquias Locais e a Tutela do Estado em Angola: da Autonomia Perdida nos Períodos Colonial e Revolucionário (1482-1992) à Autonomia Frustrada no Período Democrático Actual”, obra trazida a público pela Editora Mayamba, em 2017.

GUERRA, José Morais

- “Em defesa do Direito Consuetudinário angolano”, in MAT, 1.o Encontro Nacional sobre a Autoridade Tradicional em Angola, Ministério da Administração do Território, Luanda, 2004.

NASCIMENTO, Ascânio do

- Direito das Autarquias Locais, Análise ao Direito Constitucional Autárquico, Luanda: Casa das ideias, 2018.

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- Tese de mestrado intitulada “O Poder Local: da Imprecisão Conceptual à Certeza da Sua Evolução”, policopiado, Lisboa, 1998.

POULSON, Lazarino

- As Autarquias Locais e as Autoridades Tradicionais no Direito Angolano, Luanda: Casa das Ideias, 2009.

- Autarquias Locais no Direito Angolano, Luanda, Novos Cérebros, 2018.